sexta-feira, 9 de novembro de 2007

Guiné 63/74 - P2251: Operação Macaréu à Vista - Parte II (Beja Santos) (8): Cartas que levam saudade(s) das terras e das gentes do Cuor


Guiné > Zona leste > Sector L1 > Regulado do Cuor > Missirá > Março de 1970 > Era pós-Beja Santos > Esquartejamento de uma peça de caça grossa (um antílope, segundo me parece) caçado na zona de acção do Pel Caç Nat 54 (que em Novembro de 1969 tinha vindo render o Pel Caç Nat 52, comandado pelo Alf Mil Beja Santos, e tranferido para Bambadinca). Na foto vê-se o comandante do Pel CaÇ Nat 54, o Alf Mil Alves Correia, referido no texto a seguir. Meses mais tarde, o Pel Caç Nat 54 será substituído pelo Pel Caç Nat 63, do Alf Mil Cabral. (LG).

Guiné > Zona leste > Sector L1 (Bambadinca)> Regulado do Cuor > Missirá > Março de 1970> Era pós-Beja Santos > O Humberto Reis, em reforço, com o 2º Gr Comb da CCAÇ 12 (Bambadinca), do destacamento de Missirá, posa para a fotografia com um troféu de caça a seus pés: na ocasião um antílope, apanhado pelos homens do Pel Caç Nat 54 ou algum caçador local. O destacamento de Missirá ficava a norte do Sector L1, já em terras de ninguém. A sul ficava o destacamento de mílicia e a tabanca em autodefesa de Finete, na margem direita do Rio Geba, frente a Bambadinca... No texto a seguir - parte das memórias de Beja Santos nas terras dos Soncó -, o autor começa a despedir-se (e a fazer o luto pela perda) destas míticas paragens e das suas gentes que o marcaram indelevelmente para toda a vida... Pode, em boa verdade, falar-se, a partir de meados de Outubro de 1969, de uma era pós-Beja Santos... (LG).

Fotos: © Humberto Reis (2006). Direitos reservados.


Texto enviado em 19 de Setembro último pelo Beja Santos (ex-alf mil, comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70).


Luis, espero que estejas de boa saúde e a mergulhar no ano lectivo. Para a semana tenho que entregar o livro "Consumo, logo existo" e não sei como vai ser. Ainda por cima, para a semana vou escrever sobre a emboscada e a mina anti-carro em Canturé. Recomeço as aulas no mestrado de Tecnologia e Segurança Alimentar, no Monte da Caparica. Tenho saudades de almoçar contigo e vou desafiar-te. Os livros seguem pelo correio, como habitualmente. Faz os milagres do costume, escolhendo boas ilustrações. Um abraço do Mário.


Operação Macaréu à Vista - Parte II (8) > Memorabilia do Cuor
por Beja Santos


Cartas de um militar de além-mar em África para superiores ali perto e para a namorada em Portugal


(i) Carta para Jovelino Corte Real, comandante do BCAÇ 2852

Meu comandante,

Avizinhando-se a saída do Pel Caç Nat 52 de Missirá para Bambadinca, considero importante deixar-lhe uma “memória” sobre a situação do Cuor, no sentido de o manter habilitado para as decisões que entender dever tomar com o meu sucessor.

Primeiro, a influência do inimigo não decresceu nos últimos quinze meses: os abastecimentos junto dos Nhabijões, Mero e Santa Helena processam-se com regularidade, são vitais para Madina/Belel, a despeito das emboscadas e patrulhamentos que no passado impuseram respeito, não vejo declínio, a astúcia e a necessidade sobrepõem-se ao temor que possar ter de nós.

Percorremos todo o território do regulado, com excepção da área vizinha entre Quebá Jilâ e Madina e podemos confirmar que a norte, acima do rio Passa em confluência com o rio Gambiel, as tropas do PAIGC movem-se à vontade e controlam as populações que lavram as bolanhas. Não exagero dizendo que o inimigo lavra e colhe as suas produções a menos de sete quilómetros em linha recta de Missirá.

É facto que o inimigo nunca emboscou as nossas tropas, não roubou populações que cultivam a bolanha de Finete e reduziu a sua capacidade em flagelar seriamente Missirá. Não embosca pela simples razão que dispõe de informações quanto à forma como nos movemos diariamente até Mato de Cão: nunca percorremos o mesmo itinerário, de dia ou de noite. Dispõe igualmente de informações que mantivemos uma presença efectiva nos patrulhamentos. Podem atacar Missirá ou Finete mas dispomos, por enquanto, de uma boa capacidade de resposta. Estou em crer que em Julho se aperceberam que é preciso trazer muito material e um grande contingente para fazer estragos ou desmoralizar.

Segundo, continuo a considerar que a fixação de populações não se deve circunscrever a Missirá e Finete. Peço-lhe que repense em repovoar Canturé, há populações em Badora e no Cossé prontas a regressar desde que se faça um quartel, haja milícias e armamento. Canturé repovoada garantiria o afastamento das gentes de Madina de Mero e Santa Helena, dificultaria a circulação das colunas de abastecimentos à volta do Geba. O comandante de Bafatá não contestou os meus argumentos, só que foi seu entendimento que os Nhabijões eram a prioridade das prioridades.

Terceiro, perdemos a capacidade ofensiva a partir do momento em que nos retiraram duas secções da milícia de Missirá, mantendo-se a obrigação do patrulhamento diário a Mato de Cão e a emboscada junto do nosso aquartelamento. Não posso envolver a população civil no abastecimento de águas, nem nos reforços nem nas colunas a Finete. Resultado, estamos atados de pés e mãos, não se pode patrulhar e deixar o quartel entregue aos militares doentes e aos civis. Continuo a defender que Missirá precisa de um pelotão de milícias, um pelotão de caçadores nativos e uma ajuda persistente de Bambadinca seja nos patrulhamentos ofensivos seja nas idas a Mato de Cão.

Quarto, o aquartelamento de Missirá possui presentemente um bom dispositivo defensivo, faltam dois abrigos sólidos, os outros são resistentes, só precisam de manutenção. No essencial está tudo desmatado à volta, o arame farpado foi renovado e está sólido. A escola funciona, as idas periódicas ao médico alteraram muito o quadro de doenças que conheci quando aqui cheguei. O relacionamento com o régulo é excelente, não há quaisquer perturbações de maior na convivência entre militares e civis. No entanto, conviria melhorar as condições de vida das populações, sou adepto de se encontrar uma verba para pagar as obras de arranjo e desmatação feitas por civis, sobretudo na região de Gã Gémeos até Canturé e na estrada do Geba, entre Gambana e Mato Madeira. Trata-se de segurança militar e, claro está, segurança para os civis.

Estou inteiramente à sua disposição, como me compete, para o informar de tudo o que julgar importante para melhorar a sua informação sobre o Cuor. Os meus cumprimentos.

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > 1970 > Vista aérea do aquartelamento (e de parte da povoação, à esquerda), tirada no sentido noroeste-sudeste. Em primeiro plano, a pista de aviação, o perímetro em L de arame farpado, o campo de futebol, a antena das transmissões...Ao fundo, do lado direito, frente à grande bolanha de Bambadinca, o edifício do comando em U...

Foto: © Humberto Reis (2006). Direitos reservados


(ii) Carta para o Major Ângelo da Cunha Ribeiro, 2º comandante do BCAÇ 2852 (2)

Meu comandante,

Deve ser do seu conhecimento qual a situação logística que vou legar ao [meu substituto, o Alf Mil, ] Alves Correia. Noutra carta, com data de hoje, informei o nosso comandante dos aspectos militares que não devem ser silenciados. Entregarei ao meu sucessor os diferentes livros com o material à carga, as folhas de pagamentos dos militares de Missirá e Finete, bem como as duas secções destacadas em Cansamange.

Todas as requisições de material de engenharia estão em ordem. As duas viaturas carecem de substituição, estão envelhecidas, permanentemente empanadas, vivemos um calvário nesta época das chuvas. O gerador eléctrico continua aí em Bambadinca, só poderá aqui chegar por duas vias: ser transportado para o Xime e levado numa LDM ou LDG até perto de Mato de Cão ou entre Saliquinhé e São Belchior, tenho pedido insistentemente, nunca obtive resposta; ou fabrica-se uma jangada robusta que o consiga colocar na bolanha de Finete, mas até hoje não conseguimos.

Os abastecimentos em munições estão hoje facilitados com os dois novos paióis, o mesmo se passa com os paióis de combustíveis. O mais grave de tudo tem sido o abastecimento de arroz para os civis o que nos obriga a colunas infindáveis. Não proponho nenhuma solução, pois os civis não têm dinheiro e nós não podemos oferecer arroz em permanência.

O serviço de justiça está actualizado, saímos daqui com todas as diligências obrigatórias efectuadas até ao momento. Não lhe quero esconder que há graves problemas em Finete para resolver: Bacari Soncó devia ser nomeado comandante e escolhidos três sargentos; o armamento é deficiente e continuo a pensar que o inimigo não tem sido mais demolidor porque a população balanta local é enorme e não lhes convém acirrar os ânimos quando precisam de cambar o rio um pouco acima do quartel e até Boa Esperança. Importaria resolver o problema do professor de Finete, oferecer um balneário à população civil e remodelar o conjunto de bidões do chuveiro dos milícias.

Agradeço-lhe muito toda a compreensão que tem tido com os nossos problemas e jamais esquecerei a expressão de Tigre de Missirá que usa comigo. Receba o meu reconhecimento.

(iii) Carta para David Payne Pereira, médico do batalhão

Meu caríssimo David,

Mil anos que vivesse e não esqueceria a profunda dívida que tenho para contigo, tanto pelo bem com que me tratas, como pelo conforto que tens trazido às gentes do Cuor. Não há memória de um médico de batalhão visitar com tanta assiduidade os quartéis do mato, dar consultas seis dias por semana e ver dezenas de doentes todos os dias.

Em breve vou viver aí ao pé de ti mas quero deixar escrito um comovido muito obrigado. Deus te pague o que tens feito pela saúde desta minha gente. Aqui fica a minha admiração e o meu reconhecimento.

(iv) Carta para Herberto Sampaio, oficial de operações

Meu major,

Permita-me que junte algumas considerações sobre a evolução do nosso trabalho no regulado do Cuor. São tudo coisas que conhece perfeitamente, mas prefiro deixar tudo escrito, como se fosse um balanço de todas as minhas preocupações à volta dos pontos mais sensíveis com que o Alves Correia se irá dentro em pouco confrontar.

Antes de mais, independentemente dos militares doentes, é já milagre irmos todos os dias a Mato de Cão e fazermos a emboscada nocturna. Chegamos a sair de Missirá com onze militares válidos e quinze a vinte civis armados para nos reforçarmos em Finete e então seguirmos para Mato de Cão. O Pel Caç Nat 54 terá a sua vida muito dificultada se não se encontrar uma solução de trazer mais milícias para Missirá.

Diz o povo “rei morto, rei posto” e bem gostaria que o meu sucessor tivesse outros meios que eu aqui não encontrei, sobretudo nos últimos meses. Bom seria igualmente que se encontrasse uma solução para as idas a Mato de Cão. Quando aqui cheguei, em Agosto do ano passado, era frequente irmos em média quatro a cinco vezes por semana a Mato de Cão, o que dava possibilidade de conjugar patrulhamentos, vigilâncias e emboscadas. Agora, como desde há largos meses, vamos lá praticamente todos os dias. Quando o quartel ardeu em Março deste ano centrámos toda a energia no seu reaparecimento e nas obrigações da segurança de Mato de Cão. Fomos perdendo gente em Missirá e o meu major criou a obrigação de uma emboscada nocturna perto de Missirá. Nasceu um problema novo: deixámos o mato todo entregue às gentes de Madina.

Peço-vos que revejam esta situação, as próprias populações civis estão inquietas com a presença assídua do inimigo perto de nós, flagelando-nos, sabendo-nos impotentes. É por isso que eu gostaria que o Alves Correia pudesse dispor de outros meios e até vir a poder contar comigo em patrulhamentos nesta região. É este o meu veemente pedido, que submeto à sua consideração.


(v) Para a Cristina Allen

Meu adorado amor,

Desculpa o meu silêncio, é tudo cansaço, a azáfama dos preparativos da partida, conferências de material de tudo o que possas imaginar, desde fronhas e lençóis, passando por pratos e panelas até metralhadoras e víveres armazenados. O meu estado de saúde também está abalado, ainda não me recompus psicologicamente do colapso nervoso do Casanova. O Pires ajuda-me imenso, tem-se revelado um colaborador surpreendente, enquanto um vai a Mato de Cão o outro põe a escrita em dia.

Ainda não se sabe quando terá lugar a nossa transferência para Bambadinca, mas será em breve. Tu perguntas-me na última carta o que vou fazer em Bambadinca e se lá vou ficar até ao fim da comissão. Segundo o comando, vou ficar na intervenção, expressão que quer dizer que posso ir buscar correio, montar seguranças à volta do quartel, emboscar, entrar em operações, fazer colunas, colaborar nos reordenamentos, tudo é possível. Já me disseram que vou para a ponte do rio Udunduma, é uma posição defensiva perto de Bambadinca, uma ponte com uns abrigos horríveis, um sítio sem o mínimo de condições para estar, um quartel que pode ser pulverizado se for bem flagelado.

Mas nada sei sobre o futuro. Não te zangues com o que te vou dizer: sinto imensa tristeza por partir de Missirá. Aqui ainda éramos de algum modo senhores da situação, havia uma relação a construir com as populações, vivíamos juntos, partilhávamos tudo juntos, a começar pelas inquietações e as ameaças constantes.

Em Bambadinca, viverei num quartel a cumprir escalas de serviço. Não sei explicar-te, foi em Missirá que a minha vida mudou, fascina-me toda esta beleza, os permanentes desafios para melhorar o bem estar de militares e civis. Compreendo os soldados, eles têm trinta e seis meses de Missirá, Bambadinca é a miragem do descanso. É escusado dizer-lhes que vão ainda trabalhar mais, depois será tarde, é assim que se aprende.

Amanhã, 15 de Outubro [de 1969], vou a Bafatá de novo tratar dos documentos de que te falei. Se os entregarem amanhã, seguirão logo pelo correio. Não para de aqui chegar correio cheio de fúrias, acusações e até insinuações. Não tenho energia para responder, sinto que perdi capacidade para ter os reflexos prontos, prefiro não responder a ninguém. Estou magoado, concentro-me na música e nos livros.

Li uma comédia assombrosa, “O Ente Querido”, por Evelyn Waugh. Tradução perfeita do Jorge Sena e ilustrações do João Abel Manta, que tu conheces do Diário de Lisboa. É uma sátira violenta no mundo anglo-americano de Hollywood, em que os não competitivos se suicidam ou são atirados para a valeta. O herói, Dennis Barlow, é um poeta que ganha a vida a incinerar animais, ao lado de embalsamadores de seres humanos. No Repouso dos Peregrinos e nos Prados Sussurrantes o que conta é o artifício e a tecnologia: maquilhagem, música ambiente, o automatismo das condolências. Dennis apaixona-se por Aimée, envia-lhe poemas clássicos como se fossem da sua autoria. O Sr. Joyboy, um perito em caracterização funerária, parece ser mais bem sucedido no coração de Aimée. Tudo acaba numa tragédia em tom chocarreiro, em que nos divertimos com o terror da morte. Porque aqui os mortos estão sempre mascarados de vivos, aqui quem ganha sempre é a tecnologia, que resolve todos os problemas da perda da eternidade.

Mas li mais, li os “Poemas Completos” do Manuel da Fonseca [, 1911-1993], um presente do meu padrinho. Gosto muito da prosa dele, o modo sério com que ele ultrapassa as soluções piegas do neo-realismo, e nos faz vibrar com as terras do Alentejo, as charnecas, as navalhas dos malteses, a vida tristonha dos funcionários camarários. Um dos poemas eu já o conhecia de o ter ouvido declamado pela Maria Barroso, com a sua vigorosa expressão dramática, “Estradas”. Começa assim:

Não era noite nem dia.
Eram campos, campos, campos
abertos num sonho quieto.
Eram cabeços redondos
de estevas adormecidas.
E barrancos entre encostas
cheias de azul e silêncio.
Silêncio que se derrama
pela terra escalavrada
e chega no horizonte
suando nuvens de sangue.
Era a hora do poente.
Quase noite e quase dia.

Não achas isto uma perfeição, com este toque de simplicidade? Este livro e o de Evelyn Waugh vão para ti, deixo-os amanhã no correio de Bafatá.

Não esqueço o nosso futuro, os nossos projectos, não te esqueças do que representas para mim, a força que me dás para eu resistir a este turbilhão. Prometo agora escrever mais, parece que estou a sair do desânimo, sinto-me a renascer. Beijos, mil beijos, para quem acaba de fazer exames e nutre por mim a maior ternura do mundo.

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Notas de L.G.:

(1) Vd. post de 26 de Outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2218: Operação Macaréu à Vista - Parte II (Beja Santos) (7): Afundem a armada de Madina

(2) Carinhosamente conhecido, na caserna, como o Major Eléctrico

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