segunda-feira, 9 de junho de 2008

Guiné 63/74 - P2925: Pensar em Voz Alta (Torcato Mendonça) (12): Pensar camarada...!



Torcato Mendonça
ex-Alf Mil
CART 2339
Mansambo
1968/69


1. Mensagem do nosso camarada Torcato Mendonça de 7 de Junho de 2008, com mais uma das suas já famosas e sempre bem-vindas dissertações.

Caríssimos Editores:
Não vos tenho escrito.
Há por aqui escritos mas… ficam.
O do nosso III encontro nunca foi… o Silva, depois do desaparecimento do José, o malandro ficou em Fá Mandiga e de lá não sai…
Temos as Estórias de Mansambo paradas (nada se perde)… depois saltei, na vã tentativa de desbloquear e aterrei nas férias de Janeiro/69 (salvo seja) e entrei numa doce recordação… estão a ver… teria quarenta???... E se conto e sai pela Net??? E se… pois… e se ela… olha ainda hoje sinto a Matilde. Caso sofrido e disso não falo mais. Ainda se sente… Escrever, recordar não é fácil. Para mim não é. Há escritos que deixam marca. Por isso nada tenho dito e vão esperando. Além disso têm saído escritos bem melhores. Os meus são de pena ou tecla corrida… um debita letras.

Para verem a dificuldade anexo umas reflexões. Dou um toque no título. Se leio ainda fica.

Mas vou desbloquear as estórias de Mansambo e o Silva vai sair de Fá. Malandro. Mas antes vai contar muito… depois vai até Mansambo e o mais que se verá…

O País hoje está feliz. Até que enfim! A bola… eles não sabem que o sonho… já não me lembro… não interessa. Somos uma potência futebolística e o Ronaldo é nosso… é isso que interessa.

Abraços e bom fim-de-semana.

2. Pensar Camarada…! - (Pensar em Voz Alta)
Por Torcato Mendonça

Para ti Camarada, para ti, que prematuramente partiste… e para vocês Camaradas que comigo andaram, pelejaram, sofreram, riram e festejaram pouco. Vieram quase todos. Outros ficaram lá, na Terra deles e continuaram… até quando?

Algo se passa. Sente-se. Parece ter havido uma, chamemos-lhe, inflexão pós III Encontro. Temos ainda a questão: - A guerra estava militarmente perdida?

Parece que o pensamento de um camarada estava certo: é questão infindável. Discute-se, debate-se, confrontam-se ideias e, sem darmos por isso, afastamo-nos de assuntos mais tristes.

Dizia-me, na Ortigosa, o Mário Beja Santos – estás tão azedo, tão tristonho… Talvez seja isso e eu esteja a ver mal… estou a azedar…

Sinto a tal inflexão bloguista e talvez não exista. Pois, nos intervalos, voltamos a ler estórias contadas, vividas, sentidas. Memórias de um tempo que foi meu, teu, nosso. Sem pretensões, sem tentar pôr salto alto ou bicos de pés. Parece-me por vezes sentir isso. Deformação minha, erro meu, má fortuna, amor por uma terra vermelha e ardente…

Talvez o III Encontro tenha sido, isso sim, um Marco. De Organização e Camaradagem foi. Subjectivo claro. Assumo a afirmação. Assumo aliás todas as que faço, concordantes, discordantes com… desalinhadas ou como queiram classificar. Sinto certo afastamento Tertuliano. Será?

Escrevo e não teclo, ou teclo sem escrever, como agora, e fica por aí.

Surgem-me, no entanto, várias questões e penso, reflicto e não sei. Assim:

Uma questão prende-se com a guerra – colonial, do ultramar, de libertação. Porquê? Guerra do ultramar ou colonial, para nós antigos combatentes e de libertação para os Guineenses. Haverá dúvida? Temos, legitimas divergências na designação colonial/ultramar. Respeito a designação do ultramar. Mas, para mim é colonial. Dizias isso, lá na Guiné? Parvoíce se assim questionado. Claro que não, para mais problemas já bastava assim. Pode é dizer-se, pode!?, que a guerra na Guiné contribuiu para acelerar a queda do regime e deu algum contributo ao golpe em 25 de Abril.

Se já havia a divergência no comentário e na designação, então agora piora tudo. Deixemos Abril, por ora. Mas:

Terá libertado ou foi só o nome, guerra de libertação para os Guineenses claro. Não temos conhecimento, ou eu não tenho, o que o Povo da Guiné pensa sobre isso. Ou haverá conhecimento? Ou havendo não é conveniente dizer que o Povo não se libertou ainda. Ou libertou? Hoje vive melhor do que no tempo colonial, pois, além da liberdade, tem o desenvolvimento que propícia uma vida melhor? Será que tem? Mesmo a liberdade terá sido alcançada?

O Povo está sempre pronto a receber os portugueses, tenham eles sido velhos combatentes ou não. Refiro-me mais aos militares e a outros não enfeudados com o colonialismo, porque houve colonialismo. Aquele Povo, aquelas gentes são assim… e os velhos sabem como nós fomos e somos. Para os mais novos funciona a educação oral. E as elites, a classe dirigente? Como pensam? Ontem no DN o general Tagma N´Waié, Chefe do Estado-maior General da Guiné-Bissau, – “expressou alguma reserva á escolha de um general, da antiga potência colonial, para chefiar a missão europeia”… DN 4 de Junho/08 pag. 17.

Podemos ver, esta tomada de posição, pelo menos, de duas formas. De qualquer forma subsiste sempre, para mim, a dúvida anteriormente apontada: o que pensa a classe dirigente? É somente uma reflexão que faço na solidão e, se passada à tecla, não vai sair em torrente caudalosa. Sai antes em palavras cautelosas. Penso porque existo, tenho o direito a opinar mas não, isso não, a expressar publicamente o fruto dessas reflexões.

Ou o e-mail que me é enviado por um camarada não racista. Coloca ele a questão, quanto a mim pertinente: só os brancos são racistas? E os negros e outros? Para quem, como eu, que aceita haver só uma raça, independente da cor, que sentido faz? Há só a raça humana. É utópico ou estúpido, eu pensar assim e não querer aceitar que muitos pensam de forma diferente. Independentemente da cor da pele. Essa a realidade, infelizmente, que urge combater.

Outra questão, a que se prende com a guerra porque cada um passou. Melhor dizendo, foi obrigado a passar. Complexo o tema de a minha, a tua, a dele. Ou o tormento de viver alguns meses seguidos em abrigos.

Sabes isso camarada… eu sei que sabes.

Terrível, desgastante e a torcer o corpo todo. Digo isto porque, depois de estar cerca de três meses em Fá, na Guiné sempre dormi em abrigos. Excepto nas passagens por Bambadinca, Bissau e em alguma cama paga. O resto foram em abrigos, melhores ou piores. Alguns com direito a banho e musica, ou seja, na época das chuvas caía água por cima e por baixo alguma rã atrevida cantava.

Pouco confortável camarada, pouco confortável.

Sei que passaste pior, em mais duras condições e, ainda por cima a isso não estavas habituado. Mas suportavas. Eu e os meus camaradas fomo-nos habituando. Aguçamos o engenho e a arte. Tínhamos roupeiros, paióis pequenos e outros locais de arrumação. Simples… escavávamos um buraco, nas paredes, em terra, dos abrigos e lá metíamos, de roupa a munições e diversos. Casa de banho e sanita a mais perto era em Bambadinca, a sede do batalhão para o qual trabalhávamos. Isto nas Tabancas e na sede da companhia… eu conto:

Em Mansambo, quando construíamos o aquartelamento (oito abrigos e anexos) recebíamos o material por colunas auto. Um dia, junto ao material veio um engenheiro. O Capitão mandou-me chamar. Lá fui contrariado. Descansava recuperando de uma emboscada ou patrulha do dia ou noite anterior.

Eu sei que sabes camarada, eu sei que sabes que é chato estar uma noite à espera e nada. Aparecem mosquitos, macacos e do In. Nada!

Falei com o engenheiro e vi os papéis. Trazia o projecto de instalações higieno-sanitárias; casas de banho, sanitários e complementos. Se fosse hoje talvez tivesse hidromassagem. Mas tinha tratamento de efluentes. Era de tal maneira eficaz que quase se podia beber água depois de tratada. Do género mija aqui e bebe acolá. Nós tínhamos uns bidões ligados em série e, por debaixo estavam os duches. A água, de lá saída regava uma minúscula horta. Tinha um contra, a bateria de bidões nos ataques, invariavelmente era furada…tapavam-se os buracos a capim e alcatrão. Sanitas também não tínhamos. Três valas em paralelo e duas tábuas e uma pá por vala. Prático, eficaz e pouca privacidade.

Estás a ver camarada, estás a ver. Um tipo punha os pés na tábua e…

Não se recusou, directamente, o projecto do engenheiro. Que sim… se tivéssemos dificuldades diríamos. Foi-se o engenheiro no dia seguinte e, por azar, sofreu uma emboscada ali perto. Lá fomos tentar ajudar. Estava sentado, um olhar triste e disse-me: - "Saio pouco mas, quando saio acontece quase sempre isto". Azarado o engenheiro. Arrumado o assunto da emboscada, lá foi o pelotão e o engenheiro. O projecto não me lembro o destino que levou. Nunca foi concretizado.

Vivia-se bem e comia-se melhor. Um dia a amibiase atacou-me e, como fui destacado para Candamã, na passagem por Bambadinca falei com o Dr. Payne, o saudoso Payne. Ouviu, receitou de pronto e aconselhou dieta: tomas isto e a dieta tem que ser feita. Talvez tenha cofiado a barba e perguntei: Oh Payne para dieta aconselhas: feijão-frade, catarino, branco, manteiga… com chispe holandês ou com cavala portuguesa?

Eu sei que comeste o pão que o diabo amassou, bem pior que nós.

Por pão… estive tempos e tempos sem lhe ver a cor, quando andava pelas tabancas. Até tive um desejo, um forte desejo e sonhava com aquilo. O aquilo era uma sandes com manteiga e fiambre e, para beber, uma Coca fresca, quase gelada. Um dia satisfiz o desejo. Entrei no bar, pedi o desejo. Até disse para trazer a Coca junto da sandes. Salivava pior que o cão do Pavlov. Veio o pedido e o sorriso do soldado barman. Agarrei a Coca e deitei devagar.

Estás a ver camarada, estás a ver… pouca espuma. Depois agarro cuidadosamente na sandes e desilusão a minha. Aperto e espalmei a sandes, género duas bolachas com recheio. Olhei e perguntei: – "Que merda é esta? - É da Caritas meu alferes, farinha da Caritas. Porra, de quem?" - A desilusão foi tal que saí mais que… isso camarada, isso, eu sei que acertavas no palavrão.

Porque falo nisto se tu sofreste mais, nesta guerra de diz tu digo eu e o Solnado podia nela ter-se inspirado. Que violência ou má-língua. Bolas, aquilo por vezes chiava fino. Pois claro, com tantos tiros e granadas. Um tipo com aquela barulheira toda, nem tinha tempo para ter medo.

Tiros não ou tiros sim? Sabes mais disso do que eu. Tiveste certamente ataques terríveis, montaste emboscadas e sofreste outras. Fizeste outra guerra mais consentânea com quem percebe daquela arte. Eras miliciano, mas podias ser profissional. Seriam os profissionais melhores? Estavas na primeira comissão e podias estar na décima. Era-te indiferente.

Olha camarada eu ouvi tiros, ouvi caírem granadas disto e daquilo. Não digo que não atirei. Não. Atirei para acertar, provocar baixas ao inimigo, destruir e aniquilar. Mandei atirar o mais possível para destruir e provocar baixas. Sei que na guerra não se mata – aniquila-se ou provocam-se baixas. Por vezes eram mais de papel do que reais. Mas estava, estávamos, prontos a abater. A princípio causa certa confusão. Depois é rotina. A morte até tem aquele cheiro adocicado e provoca um silencio enorme á volta de quem morre.

Lembraste camarada?

Um militar morto, frio, ali estendido e o silencio… ou ferido e aquele cheiro adocicado a entranhar-se ou, caso tivesse morrido e ficasse carbonizado, diminuía tanto que ficava menino. Lembro um caso: a Moricanhe era uma Tabanca defendida pelo pelotão de Milícia 145. Foi atacada e apareci lá depois. Haviam mortos e feridos. Mas um estava carbonizado e pensei ser menino. Não era. Disseram-me o nome do soldado milícia e eu fiquei a olhar descrente. Conhecia-o e era maior do que eu. Depois compreendi. A água tinha-se evaporado e as extremidades desapareceram. Foi o primeiro que vi. Depois geram-se hábitos, ódios, indiferenças à condição humana… sabes melhor que eu camarada. Sem nos apercebermos estamos prontos a abater, a formiga ou o elefante… ou todos os quadrúpedes e bípedes entre eles… Mexiam-se… logo! Tu não? Claro que não! Sim? Ora bolas… francamente!

Deixou pesadelo nas noites de sono? Acontece. Olha Lagartil 10 – seria esse o nome? Ajudava? Preferia meia de uísque. Também tu camarada?! Bem me parecia que concordavas comigo.

Convergíamos nas ideias, na actuação, no sentir e, porque não nas vivências naquela terra vermelha, por vezes negra com o tarrafe ou em tom verde, com tantos verdes da mata… e os sons… os cheiros… a beleza de um por de sol…?

Pensas que ainda estou louco? Nada disso. Já se passou tanto tempo, tantas vidas… quando vieste que fizeste? Tentaste adaptar-te, viajaste, tentaste esquecer, dormias com mulheres a cheirar bem, bons restaurantes e tudo para entrar na vida normal. Claro limpaste-te e borrifaste-te nos que faziam comissão atrás de comissão ou dos que lá ficaram. Sacana! Não? Fizeste bem. Hoje penso que fizeste bem. Eu fiz isso tudo e borrifei-me. Sacanas. Nem te digo, nem plagio o Neruda – confesso que vivi…. Que queres? Não sou perfeito. Ainda por cima sou um plagiador de frases e pensamentos. O estupor da memória tem um compartimento que armazena, armazena e um dia estoira.

É a bolha. Só escrevo quando me dá na bolha. Hoje deu, alinhei letras em palavras e estas em ideias loucas.

Ah e a bolha é plágio. Vem do Luis Sttau Monteiro; Um Homem não Chora, Angustia para o Jantar; as crónicas no Diário de Lisboa… e, salvo erro no S. Carlos, na apresentação de uma peça de teatro ignorou o PR da altura. Claro que viajou logo até Londres. Lindo! Naqueles tempos de liberdade era assim… Que tem isto a ver com a guerra? Está tudo interligado… Pronto já sei que não gostaste do tratamento dado a Sua Exa. Tudo bem. Aceito sempre um pensamento diferente. Desculpa lá, camarada mas gostei e recordar são prazeres da memória… plágio… espero que aceites o pensamento diferente. Não seremos todos diferentes e todos iguais. Utopia? Não se aplica aqui?!

Tens razão. Dói-me a cabeça, a mona, a meloa. É da loucura. Será loucura?

Passa bem Camarada. Estás no além… olha tenho que, um dia, vir a acreditar nisso… mas, enquanto estiveste por cá, que terrível guerra a que fizeste. Ainda por cima sem luz eléctrica. Será que Candamã já tem luz eléctrica? O quê nem Bissau têm? Porquê?

FND
Jun/08
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Nota de CV:

Vd. poste de 16 de Maio de 2008 > Guiné 63/74 - P2851: Blogoterapia (52): Pensar em voz alta... De quantas mentiras é feita a verdade ? (Torcato Mendonça)

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