quinta-feira, 12 de junho de 2008

Guiné 63/74 - P2934: Estórias de Guileje (13): Com os páras, no corredor da morte: armadilhe-se o moribundo (Hugo Guerra)




























Guiné > PAIGC > Departamento Secretariado, Informação, Cultura e Formação de Quadros do Comité Central do PAIGC > 1966 > Capa e página 23 (?) do manual escolar O Nosso Primeiro Livro.

Créditos fotográficos: ©
A. Marques Lopes / António Pimentel (2007). Direitos reservados.


1. Mensagem, com data de 13 de Fevereiro de 2008, do nosso camarada Hugo Guerra, ex-Alf Mil, hoje Coronel DFA, comandante do Pel Caç Nat 55 e Pel Caç Nat 50 (Gandembel, Ponte Balana, Chamarra e S. Domingos, 1968/70):


Caro Luís e demais camaradas da Tabanca [Grande]:

O assunto é, parece-me, algo melindroso. Verás, por favor, da oportunidade. Não tem nada a ver com uma estória narrada num livro pelo ex-Sarg Pára Carmo Vicente cujo titulo é "Morto o homem, armadilhe-se o cadáver" (*).

Só conheci o Carmo Vicente aqui em Lisboa na ADFA. Acho que partiu as duas pernas ao saltar dum heli e é DFA.

Mas é possível que se tivesse tornado rotineiro fazer isso. Não faço juízos de valor mas o que eu vi foi o que relato.

Quando passares no Corredor [de Guileje], agora que vais à Guiné , saúda esse jovem por mim e pede-lhe para me deixar dormir em paz (**)...

Hugo Guerra


2. Estórias de Guileje (12) >
A minha 2ª ida ao Corredor
de Guileje (***)

por Hugo Guerra


Se da primeira vez ia meio lúcido , meio bêbado , desta vez fui completamente lúcido….. para mal dos meus pecados.

Não recordo o dia mas para o que vou relatar pouco importa. É uma estória com um triste final…

A Companhia era de Páras, porque como bem disse o Idálio Reis o pessoal da [CCAÇ] 2317 [Gandembel, Abril de 1968/Janeiro de 1969] já tinha passado tanto que só as forças especiais reuniam condições físicas e anímicas para ir ao corredor. Os Páras eram rendidos de 15 em 15 dias e, como na altura, o pior local da guerra era Gandembel, tudo o que os tirasse dali era ganho.
Lá fomos até ao corredor montar uma emboscada com a esperança que resultasse. Às primeiras horas da manhã após os pelotões estarem instalados, não se ouvia mais que o silêncio da mata quando o mesmo foi quebrado por conversas em crioulo que denunciaram de imediato a coluna que vinha a chegar.

Em minutos ouve-se um terrível fogachal das NT seguidas de um silêncio ainda mais assustador para mim, que me via pela primeira vez naquelas alhadas.

Fui a correr à frente ver o que se passara e deparei-me com uma cena que ainda hoje faz parte dos meus pesadelos. No local estavam dois ou três mortos e um moribundo cheio de balas no peito. De repente a embriaguez da morte tomou conta de mim e vejo-me a vasculhar os bolsos de um daqueles rapazes e apanho um troféu…… um caderno escolar.

Como tínhamos que retirar de imediato pois estávamos certos que aqueles homens eram só os batedores, vi alguns Páras apanharem os RPG 7 ainda embrulhados em plástico, as armas ligeiras e pistolas e munições, etc.

Poderia dizer que até aqui se tratou dum acto de guerra, normal nas situações que se viviam naquele despudorado horror que todos vivemos.

Mas o que tinha ainda mais para ver e que foi horrível, foi ver um Pára armadilhar o cadáver. Não um corpo qualquer dos que já estavam mortos. Foi do moribundo de quem eu levava o caderno, ainda na mão.

Passados poucos minutos e na retirada para o aquartelamento a poucos quilómetros fomos surpreendidos por uma emboscada do grupo IN que vinha mais atrás dos batedores. Recordo-me de só termos um ferido com uma bala que lhe entrou por baixo dos dedos dum pé e foi sair do outro lado.

À chegada a Gandembel lembro-me de sermos saudados com palmas, mas eu ainda vinha agoniado e mais ainda fiquei quando, ao desfolhar o caderno à procura de indicações estratégicas do IN, dou com uma folha com um desenho de uma casa, como as que nós aprendêramos a fazer na nossa instrução primária e que tinha escrito por baixo “A MINHA CASA”...

Mais um sonho dum jovem, desfeito com uma rajada de tiros.

Nunca mais fui ao Corredor da Liberdade.

Um abraço,

HUGO GUERRA
________

Notas de L. G.:

(*) Vd. postes de:

4 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2915: Com os páras da CCP 122/ BCP 12, no inferno de Gadamael (Carmo Vicente) (1): Aquilo parecia um filme do Vietname

5 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2917: Com os páras da CCP 122/BCP 12 no inferno de Gadamael (Carmo Vicente) (2): Quase meia centena de mortos... Para quê e porquê ?

12 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2933: Com os páras da CCP 122/BCP 12 no inferno de Gadamael (Carmo Vicente) (3): Manuel Peredo, ex-Fur Mil Pára, hoje emigrante

(**) Vd. postes de:

14 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2640: Uma semana inolvidável na pátria de Cabral: 29/2 a 7/3/2008 (Luís Graça) (5): Um momento de grande emoção em Gandembel

16 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2650: Uma semana involvidável na pátria de Cabral: 29/2 a 7/3/2008 (Luís Graça) (6): No coração do mítico corredor de Guiledje

17 de Março de 2008 > Guine 63/74 - P2655: Uma semana inolvidável na pátria de Cabral: 29/2 a 7/3/2008 (Luís Graça) (7): No corredor de Guiledje, com o Dauda Cassamá (I)

17 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2656: Uma semana inolvidável na pátria de Cabral: 29/2 a 7/3/2008 (Luís Graça) (8): No corredor de Guiledje, com Dauda Cassamá (II)


(***) Vd. postes anteriores desta série:

14 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2437: Estórias de Guileje (1): Num teco-teco, com o marado do Tenente Aparício, voando sobre um ninho de cucos (João Tunes)

23 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2473 - Estórias de Guileje (2): O Francesinho, morto pela Pátria (Zé Neto † )

27 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2483: Estórias de Guileje (3): Devo a vida a um milícia que me salvou no Rio Cacine, quando fugia de Gandembel (ex-Fur Mil Art Paiva)

27 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2483: Estórias de Guileje (3): Devo a vida a um milícia que me salvou no Rio Cacine, quando fugia de Gadamael (ex-Fur Mil Art Paiva)

29 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2489: Estórias de Guileje (4): Com os páras, na minha primeira ida ao Corredor da Morte (Hugo Guerra)

30 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2492: Estórias de Guileje (5): Os nossos irmãos artilheiros Araújo Gonçalves † e Dias Baptista † (Costa Matos / Belchior Vieira)

31 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2493: Estórias de Guileje (6): Eurico de Deus Corvacho, meu capitão (Zé Neto † , CART 1613, 1966/68)

11 de Fevereiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2523: Estórias de Guileje (7): Um capitão, cacimbado, e um médico, periquito, aos tiros um ao outro... (Rui Ferreira)

18 de Fevereiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2552: Estórias de Guileje (8): Como feri, capturei e evacuei o comandante Malan Camará no Cantanhez (Manuel Rebocho, CCP 123 / BCP 12)

23 de Fevereiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2574: Estórias de Guileje (9): O massacre de Sangonhá, pela Força Aérea, em 6 de Janeiro de 1969 (José Rocha)

7 de Abril de 2008 > Guiné 63/74 - P2729: Estórias de Guileje (10): os trânsfugas de Guileje, humilhados e ofendidos (Victor Tavares, CCP 121/BCP 12, 1972/74)

31 de Maio de 2008 > Guiné 63/74 - P2905: Estórias de Guileje (11): A besta do Celestino (Zé Neto † , CART 1613, 1966/68)

1 comentário:

Juvenal Amado disse...

Meu camarada.
A tua narração sobre o que passou no Corredor da Morte, é no minimo comovente. A humanidade sobressai das tuas linhas. A constactação de que aquele infeliz guerrilheiro, trazia um livro tão singelo sobre como aprender a falar Português, parecido com que os nós tinhamos nas nossas escolas, mudou possivelmente a tua vida para sempre.
Estou contigo na repulsa da guerra, embora os actos que presenciaste nos doam mais agora, do que na altura.
Matar para não morrer será a lógica que minimiza a nossa dor.
De certo ele vai-te deixar dormir em paz.
Um abraço
Juvenal Amado