Junto envio o último texto seleccionado sobre a estadia da CCAÇ 2402 em Mansabá.
Já dá para ver o ambiente que se vivia na época.
Um abraço e um bom fim de semana,
Raul Albino
2. A actividade da CCAÇ 2402 em Mansabá
Por Raúl Albino
A actividade principal da CCAÇ 2402 junto ao BCAÇ 2851 em Mansabá consistia na protecção à capinagem e desmatação, efectuada por trabalhadores nativos, para preparar o terreno para a construção de estradas alcatroadas. Essa actividade, que já vinha de Có, viria a prolongar-se durante a estadia da companhia no Olossato, última etapa da nossa comissão na Guiné.
Mas falemos agora neste período em Mansabá. Além do enorme ataque que sofremos logo no início da minha permanência nesta localidade, sede do Batalhão, a nossa principal senão única actividade na zona, foi precisamente a de protecção aos trabalhos de desmatação efectuados por trabalhadores nativos, como fase primeira antes do avanço das máquinas da Engenharia para romperem os caminhos e procederem ao alcatroar das vias, composto por várias fases, que em si também precisavam de protecção.
Foto e legenda © Raúl Albino (2008). Direitos reservados.
A partir desta necessidade, todos os dias pela manhã, vários Grupos de Combate se deslocavam para o ponto em que no dia anterior tinham terminado os trabalhos, para dar seguimento à obra em curso. Ao anoitecer, maquinaria e tropas faziam o caminho inverso em direcção ao quartel para o merecido descanso. Esta descrição parece uma rotina de actividades sem nada de interessante a acontecer, não fosse a particularidade de o nosso inimigo também ter uma rotina conjugada com a nossa e que consistia em esperar que as nossas tropas regressassem ao quartel para, senhores do terreno, aí implantarem um autêntico jardim de minas e armadilhas, especialmente anti-pessoais, com a intenção de desmoralizar as tropas e trabalhadores nativos e assim atrasar a obra. No dia seguinte, perdia-se um tempo enorme a picar a estrada e as áreas periféricas, para levantar ou neutralizar as minas e tudo o que pusesse em risco a integridade dos trabalhadores, militares ou nativos. Todos os dias esta rotina se mantinha, de noite eles semeavam, de manhã nós colhíamos. Isto seria interessante se, volta não volta, não houvesse uma mina ou outra que rebentava, causando mortos ou feridos, tornando grande parte deles incapacitados por amputação de pernas.
O terceiro Grupo de Combate da CCAÇ 2402, que eu comandava, tinha a rara característica de reunir no seu conjunto três especialistas em Minas e Armadilhas, eu próprio, o Furriel Maia e o Furriel Godinho. Em toda a restante companhia só haviam mais dois elementos com esta especialidade, o Alferes Silva e outro furriel do qual não me recordo o nome, um em cada grupo ficando ainda um grupo sem qualquer especialista. Cada mina levantada ou arma apreendida ao inimigo tinha um prémio atribuído pelo Comando. Neste momento só me recordo que uma mina anti-pessoal valia quinhentos escudos e uma anti-carro, salvo erro, dois mil escudos. Devido a esta concentração de recursos e do grande número de contactos com o inimigo que o meu grupo teve, estimei no fim da comissão, que cerca de 80 a 90% dos prémios da Companhia por este tipo de materiais, foram atribuídos ao meu grupo e por todos distribuído. Há que esclarecer uma coisa, os prémios eram atribuídos a pessoas individualmente, mas desde o início que ficou estabelecido entre nós que estes prémios seriam para distribuir pelo pessoal do grupo. A razão que eu tive para estabelecer esta regra é muito simples: Alguém acha que há algum prémio, tenha ele o valor que tiver, que pague o risco de vida de quem tinha, por imposição da sua especialidade militar, de levantar minas para protecção da vida dos seus colegas de armas? Nem pensar! Se ficasse com algum dinheiro para mim, não ia ficar bem com a minha consciência, daí que esta foi a melhor solução que encontrei para o dinheiro não ficar no bolso de alguém que não tinha o mínimo direito a ele e esse seria decerto o seu destino, se eu pura e simplesmente o rejeitasse.
Quem me esteja a ler, pensará que o pecúlio monetário do meu grupo cresceu exponencialmente neste paraíso de minas onde nos encontrávamos nesta altura. Completamente errado, julgo mesmo que este local pouco ou nada contribuiu para esse mealheiro, por uma razão muito simples que se alguém se pusesse a adivinhar, dificilmente o conseguiria. É que todas as manhãs, acompanhando a picagem feita pelos militares, um grupo enorme dos trabalhadores nativos iam, na frente dos militares, imitando os seus gestos, e detectando a grande maioria das minas, levantando-as rapidamente sem qualquer tipo de cuidado e vindo a gritar com elas nas mãos:
- Meu alfero, apanhei uma! - para que ficasse registada em seu nome e poder mais tarde levantar o prémio. É que, infelizmente para eles, quinhentos escudos valia bem o risco de vida. Além destes especialistas de pé descalço, havia também pelotões de sapadores, estes sim, especializados na detecção e levantamento de minas.
Era óbvio que este ritmo tremendo de stress não podia continuar, as tropas existentes não podiam dar mais, estavam arrasadas, no entanto, a única solução era vigiar o local vinte e quatro horas por dia para tentar quebrar este ciclo diabólico. Como as tropas que possuíamos eram insuficientes, recebeu-se o reforço de uma Companhia de Pára-quedistas, tropas especialmente vocacionadas para operações especiais. As operações especiais na Guiné, tinham normalmente a característica de serem intensas, perigosas e curtas. Ora a actividade que se passou a pedir a estas tropas foi a de reforçar os nossos grupos de combate, de forma a permitir a presença permanente de vigilância no local dos trabalhos, de dia e de noite. No entanto as máquinas da engenharia e os nativos tinham de regressar ao anoitecer e voltar de madrugada, obrigando a executar muitos dos procedimentos de picagem que já se faziam anteriormente.
A história que lhes vou contar a seguir, narro-a na forma como eu a registei e analisei através dos relatos que consegui captar de várias fontes. No entanto verifiquei recentemente que alguns militares meus ex-colegas de armas, têm algumas versões ligeiramente diferentes da minha, não no essencial mas de pormenor, daí a minha ressalva prévia.
Houve ainda alguns ataques do inimigo às tropas de protecção da zona, pelo menos dois ou três enquanto lá estive, usando essencialmente tiro de morteiro, lança-granadas foguete e armas automáticas. Mas o que verdadeiramente perturbou estas tropas especiais foi a constante insegurança de todos os dias terem de percorrer trilhos que por regra se encontravam minados. É curioso como o desconhecimento do terreno que se pisa pode causar um estado de espírito de pânico. Foi isso precisamente o que aconteceu. Um belo dia, o Alferes Sapador do Batalhão regressou ao quartel, alarmado, dizendo que um determinado local estava completamente minado e não se podia lá andar. Este desabafo foi feito ao comando do batalhão e o major/2.º Comandante que o ouviu, teve, no meu ponto de vista, a única reacção aconselhada militarmente para esta situação. Depois de o ouvir atentamente, tentou acalmá-lo e ofereceu-se pessoalmente para se deslocar ao local para confirmar as afirmações que o seu sub-alterno alferes lhe estava a fazer. Pensando na lei das probabilidades, o major iria ao local normalmente, acalmaria o alferes e dir-lhe-ia algo como:
- Estás a ver, a coisa não é assim tão dramática como a viste, vamos tentar limpar a área de algumas minas que eventualmente estejam por aí e o local ficará seguro novamente!
Só que desta vez não foi assim, a sorte estava lançada e não era para o lado do major. Contou quem lá esteve que ele acabou mesmo por pisar uma mina anti-pessoal, ficando sem um pé, acabando por ser evacuado para o Hospital Militar. O acidente veio a dar razão ao sentimento de pânico que o alferes sentiu. O rebentamento desta mina fez também dois feridos ligeiros, um deles era Oficial. No relatório oficial do Batalhão indicava que tinham sido levantadas nesse dia 18 minas anti-pessoal. Este acontecimento ocorreu em 8 de Abril de 1969, tendo-se apresentado três dias antes em Mansabá o Pelotão de Sapadores do BCAÇ 1911 com o fim de reforçar as nossas tropas empenhadas na detecção e levantamento de minas, na zona de trabalhos da estrada Mansabá/Farim.
No dia seguinte, 9 de Abril de 1969, nova flagelação do IN à zona de obras causando 8 feridos ligeiros (2 civis). Consequência: chegada de reforço nesse dia do PEL SAP/BCAÇ 1912 e PEL SAP/BCAÇ 2861 que passaram a ter missão idêntica ao PEL SAP/BCAÇ1911, chegado poucos dias atrás.
A 10 de Abril de 1969, a Companhia de Caçadores 2402 a três Grupos de Combate parte para o Olossato, deixando o 3.º Grupo de Combate em Mansabá de reforço ao COP-6 (recém criado), cujo comando foi assumido em 13 de Abril de 69 pelo Ten Cor Pára-quedista Fausto Marques. Na véspera tinha chegado o reforço de uma Companhia de Caçadores Pára-quedista, a 122. Foi no meio disto tudo que eu fiquei, triste e abandonado, deitando contas à vida e sentindo-me cada vez mais insignificante, numa guerra que não tinha encomendado.
Raul Albino
Foto 1 > Troço da estrada Mansabá/K3/Farim que tanto suor e sangue custou a militares e civis que participaram na sua construção.
Foto 2 > Destacamento provisório do Bironque para parque das máquinas da Engenharia utilizadas na construção da estrada
Foto 3 > Instantâneo, real, de uma intervenção de um especialista em Minas e Armadilhas, manuseando uma mina AP AUPS.
Foto 4 > Estrada Mansabá/K3/Farim > Mina AC de origem soviética, levantada no Bironque em 3 de Dezembro de 1971
Fotos e legendas © Carlos Vinhal (2008). Direitos reservados.
3. Comentário de CV
Peço desculpa aos demais camaradas e leitores do nosso Blogue, mas não posso deixar de aproveitar o previlégio de ser co-editor para fazer este comentário visível.
É que ao transcrever este trabalho do nosso camarada, fiquei convencido que a estória era minha. Parece que o Raúl Albino não está a escrever o que se passou com ele e com a CCAÇ 2402, mas sim o que se passou comigo e com a CART 2732.
No tempo do Raúl a estrada alcatroada ficou no Bironque e nós continuámo-la até ao K3, sendo as situação descritas por ele as mesmas. Pessoalmente tive a sorte de nunca ter de intervir no levantamento das inúmeras minas que eram semeadas diariamente nos locais de trabalho, porque tínhamos permanente equipas de Sapadores para o efeito.
A mesma rotina diária da saída pelas 5 horas da madrugada com uma bucha de pão no bolso e regresso às 17 horas para almoçar (?), seguido do jantar às 19.
Emboscadas frequentes, tanto nas deslocações de e para a zona dos trabalhos, como nos próprios locais e, à noite para complemento, ataques não raros ao quartel de Mansabá.
Obrigado Raul por contares por mim a nossa estória comum.
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Nota de CV
Vd. último poste da série de 24 de Agosto de 2008 > Guiné 63/74 - P3146: História da CCAÇ 2402 (Raul Albino) (12): Ataque a Mansabá
1 comentário:
Raúl Albino e Carlos Vinhal, de Novembro de 70 a Fevereiro de 71, também foi essa a minha rotina em Mansabá. Ao lêr o post, recordo as saídas matinais prá estrada, com pão com chouriço no bolso (como diz o Carlos)e voltávamos ao anoitecer depois de ter-mos "fechado a porta"(armadilhado os pontões e qualquer coisa mais). Também nesse periodo os civis da desmatação disputavam as minas, mas não lhe tocavam,chamavam os especialistas, porque talvez tenham aprendido com procedimentos que lhes correram mal.Não podia passar sem vos enviar um grande abraço, pois partilhámos o mesmo "projecto", com o Carlos em simultaneo pois era o anfitrião, e o Raúl um ano antes.
Um grande abraço
César Dias
Furriel Sap do BCAÇ2885
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