1. Mensagem de Amílcar Ventura, ex-Fur Mil da 1.ª CCAV/BCAV 8323, Bajocunda, 1973/74, com data de 26 de Abril de 2009:
PERFIL
Amilcar José das Neves Ventura, tenho 57 anos, nasci a 9 de Dezembro de 1951, em Silves, onde resido.
Tenho o 9.º ano de escolaridade (Curso de Formação de Serralheiro).
Entre Novembro de 1974 a Dezembro de 1984, fui chefe de armazém da Cooperativa de Retalhistas de Mercearias “Alicoop”, em Silves, e depois fui fotógrafo profissional por conta própria, durante 24 anos. Neste período, trabalhei para vários jornais, entre os quais o Record, o Correio da Manhã e alguns regionais do Algarve.
Tenho dois filhos, de 34 e 30 anos.
Gosto de caçar e pescar e sou coleccionador de tudo o que tenha o emblema do Sporting. Tenho perto de 800 objectos com o símbolo dos leões. Hoje sou fiel de armazém na Câmara de Silves.
CAIXAS
Assentei praça no dia 18 de Julho de 1972, no Regimento de Infantaria 7, em Leiria. Duas semanas depois fui transferido para a Escola Prática de Cavalaria, em
Santarém, para tirar a recruta de Sargentos Milicianos. Foram três meses em que passámos, como costuma dizer-se as passas do Algarve. A seguir parti para Sacavém, para tirar a especialidade de mecânico auto, na Escola Prática de Serviço de Material. A especialidade e o estágio duraram seis meses. Nessa altura, saiu a minha mobilização para Moçambique, mas eu sabendo por diversas informações que era melhor cumprir a comissão na Guiné, consegui trocar de destino por intermédio de um amigo que estava no Ministério do Ultramar. Em Abril de 1973 fui para o Regimento de Cavalaria 3, em Estremoz, para ajudar a formar o batalhão que iria para a Guiné: o Batalhão de Cavalaria 8323 (‘Os Cavaleiros de Gabú’). Gabú é o nome do sitio para onde fomos.
Sempre quis esquecer a guerra, mas vi na revista Domingo a história do meu amigo Ferreira, camarada da 3.ª Companhia, que me deu coragem para contar alguns episódios vividos na Guiné. Sempre quis esquecer o que passei, menos os meus camaradas.
No dia 22 de Setembro de 1973 embarquei no navio Niassa com destino a Bissau.
A viagem demorou seis dias: para nós, sargentos, foram umas férias, porque os nossos camarotes eram bons, mas os soldados iam no porão, pior instalados do que animais. Eram autêntica carne para canhão, como costumava dizer-se.
Quando chegámos, seguimos numas lanchas de transporte de gado com destino à ilha de Bolama, onde fizemos a Instrução de Aperfeiçoamento Operacional, que durou um mês. Voltámos a Bissau e no dia 31 de Outubro, subimos o rio Geba até Xime, seguindo depois em coluna por Bambadinca, Bafatá e Nova Lamego, até Pirada, no Leste da Guiné, na fronteira com o Senegal.
Aqui, rendemos um batalhão que já estava na Guiné há 28 meses.
As Companhias do meu batalhão foram distribuídas pelos aldeamentos em volta de Pirada e a minha, a primeira, foi para Bajocunda, a 11 km de Pirada.
No primeiro mês em que estivemos com a Companhia que íamos render não nos aconteceu nada de especial, mas o martírio de cinco meses estava para breve e começou no dia 13
de Dezembro, quando ficámos sem o nosso Sapador Fernando Almeida.
Passados cinco dias, o Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC) atacou Amedalai, uma tabanca que ficava a cinco quilómetros de nós. Só lá estavam civis e, como também fomos atacados, não pudemos ir em seu socorro. Queimaram quase toda a tabanca, como represália por a população não lhes ter dito que nós lá tinhamos estado em patrulha. Foi aqui que vi que a guerra era muito a sério, pois os guerrilheiros do PAIGC até atacaram familiares.
No Dia de Natal 1973, o capitão Ângelo Cruz quis fazer uma patrulha. Eu, apesar de muito contrariado, arranjei-lhe as viaturas para ele poder sair. No dia 18 de Dezembro, quando os guerrilheiros atacaram Amedalai e Bajocunda, deixaram, durante a retirada, várias minas espalhadas pelo campo. Uma rebentou à passagem de um macaco, outra matou uma vaca. Quando a coluna ia a passar perto, o capitão quis ver o local, contrariando as regras de segurança. Infelizmente, teve azar e pisou uma mina. Ficou sem uma perna abaixo do joelho e com a outra muito maltratada. O guia e três soldados também ficaram feridos.
No dia 7 de Janeiro 1974, numa emboscada a uma coluna de viaturas, que ia levar comida a um pelotão da minha companhia, que estava em Copá, a 21 Km de Bajocunda, morreram o Sebastião Dias e o José Correia, e duas viaturas Berliet foram destruídas: uma rebentou uma mina e a outra ardeu. A partir daqui, seguiu-se uma série de ataques do PAIGC, com todo o tipo de armamento. O nosso maior receio eram os ataques com os morteiros de 120 mm, com granadas perfurantes, que depois de embaterem no solo explodiam a dois três metros de profundidade.
Em Março entrou em acção a aviação. Copá estava há vários dias debaixo do fogo e os nossos militares quase não dormiam. Pedimos apoio aéreo, mas o avião Fiat que veio em nosso auxílio foi abatido com um míssil terra-ar. Os militares já estavam a ficar malucos e as chefias ordenaram-nos que abandonássemos Copá. Tivemos de fazer uma operação de resgate de grande envergadura, com mais de 300 soldados, porque senão as tropas do PAIGC matavam-nos a todos. Nessa operação, mais a Norte, limpando a zona de guerrilheiros, seguia o célebre grupo do alferes Marcelino da Mata, comandado pelo capitão pára-quedista ‘Astérix’. Numa emboscada ao PAIGC, conseguiram apanhar aos guerrilheiros uma ambulância russa, utilizava no transporte de feridos.
Eu fui contactado pelo meu comandante, o coronel Jorge Mathias, para ir buscar a viatura, pois o grupo do Marcelino não a conseguia pôr a trabalhar.
Disse-me que a ambulância estava na coluna que ia para Copá, só que quando me dirigi, com o soldado mecânico Grou para o helicóptero, o piloto, meu conhecido, disse-se que a viatura estava no Senegal. E era preciso trazê-la a todo o custo, mesmo com perda de vidas humanas, pois seria a primeira apanhada em todo o Ultramar.
Com a ajuda de um héli-canhão conseguimos trazer a ambulância até a coluna, mas sempre em alerta máximo, pois sabíamos que as tropas do PAIGC nos seguiam com a intenção de resgatar a viatura. Tivemos de passar uma noite no mato, junto da coluna. De manhã, partimos em direcção a Bajocunda, com o grupo do Marcelino a fazer protecção à viatura. Ele avisou-me de que íamos ter uma emboscada, o que viria a acontecer. Não se registou qualquer baixa e, com esta operação, conseguiu-se resgatar o pelotão que estava em Copá, sem registo de mortos ou feridos.
Entretanto, veio o 25 de Abril de 1974 e a partir daí foi tudo um mar de rosas.
Tivemos o primeiro encontro com as tropas do PAIGC da zona dois dias depois. Sinto um grande orgulho por ter liderado esse encontro, onde os guerrilheiros nos contaram com faziam os ataques e as emboscadas. Hoje ainda guardo um gorro que troquei por uma lente com o comandante do PAIGC da nossa zona, que já conhecia há muito tempo.
No dia 22 Agosto 1974 entregamos Bajocunda ao PAIGC. Foi dos dias mais alegres de todos os que estive na Guiné, ver finalmente aquele país libertado. Depois seguimos para Bissau e no dia 9 Setembro regressei à minha Pátria.
2. Comentário de CV:
Caro Amílcar Ventura, bem-vindo à Tabanca Grande.
És de há bastante tempo um elemento activo no nosso Blogue.
Temos cá muito material teu, incluindo fotografias. Tudo isto tem que ser tratado para ser publicado por ordem cronológica de chegada. Vamos pedir ajuda ao nosso novel editor Magalhães Ribeiro, para no mais breve espaço de tempo possível começarmos a publicar as tuas coisas.
Embora precises de ser apresentado à tertúlia, conheces já os cantos da casa e as nossas dificuldades em atempadamente dar saída aos picos de trabalho. Com a tua, e a de todos, compreensão havemos de levar a carta a Garcia.
Posto isto, resta-me deixar-te um abraço de boas-vindas em nome da Tertúlia e desejar-te a melhor saúde, aí pela antiquíssima cidade de Silves, uma das mais bonitas cidades portuguesas que conheço.
Vista aérea de Bajocunda
Viatura Berliet danificada por uma mina, durante a emboscada de 7 de Janeiro de 1974
Evacuação do Capitão Ângelo Cruz
Fur Mil Ventura na ambulância capturada ao PAIGC
Restos de um foguetão do PAIGC
Poço onde se ia buscar água para beber e cozinhar
Amílcar Ventura e alguns dos seus condutores
Amícar Ventura na actualidade
Fotos: © Amílcar Vantura (2009). Direitos reservados
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Vd. último poste da série de 6 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4294: Tabanca Grande (136): Juvenal Candeias, ex-Alf Mil da CCAÇ 3520, Cameconde (1972/74)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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3 comentários:
O Amilcar Ventura é do Batalhão a que pertenceu o António Rodrigues, cuja história deu origem ao Livro O PRINCIPIO DO FIM de Benigno Fernandes.
Ver post's 3995 de 7/Março/09 e 3817 de 30/01/2009.
José Marstins
Ao fim de 35/36 anos, encontrar o Amilcar Ventura e outros camaradas de tempos dificeis é emocionante, parabens pelos testemunhos que aqui nos deixam de tempos que vivemos, é uma excelente iniciativa, pertenci também ao Bat. Cavalaria 8323, da 2ª Companhia,prometo também dar o meu contributo.
Manuel Gonçalves
Amigo e Camarada do Batalhão Cavalaria 8323 Manuel Gonçalves, assim como eu fiz, faz tu também escreve para o nosso blogue a tua vivência na Guiné, obrigado pela mensagem e de teres aparecido.
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