quinta-feira, 30 de julho de 2009

Guiné 63/74 - P4759: História da CCAÇ 2679 (22): Falando sobre Bajocunda (José Manuel M. Dinis)

1. Mensagem de José Manuel M. Dinis, ex-Fur Mil da CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71, com data de 29 de Julho de 2009:

Caro Carlos,
Envio-te mais um pedaço da passagem de uma companhia pelas bandas de Bajocunda. Desculpa a trabalheira, tanto mais que em pleno Verão não deves precisar de mais aquecimento, mas não me ocorreu dar outro destino ao texto.

Um grande abraço para ti a para a Tabanca.
J.Dinis


HISTÓRIA DA CCAÇ 2679
BAJOCUNDA


A localidade encontra-se no nordeste da Guiné, entre duas tabancas situadas sobre a linha de fronteira com o Senegal, Pirada, 11 Km a oeste, e Copá, cerca de 20 Km a leste. Fica a uma distância da linha de fronteira de cerca de 4 Km, e pertencia ao regulado de Amedalai. Olhando do ar para Bajocunda, a identificação dos limites, definidos pela fiada de arame farpado, revela uma figura ovalizada, com excepção a leste, onde a pista de aviação contígua configura um segmento de recta.

Havia três portas (cavalos de frisa), que correspondiam aos acessos a três estradas (picadas), para Pirada, com passagem por Tabassi, na direcção sudoeste, já que esta aldeia é ainda mais a sul; para Nova Lamego, na direcção sul; para Copá, na direcção leste, com bifurcação para Amedalai, a 3 Km, na direcção sudeste.

A tabanca ocupava a parte oriental do perímetro aramado. No interior desse perímetro estendia-se uma faixa de rodagem que permitia o fácil acesso por viatura aos abrigos periféricos.

O aquartelamento ocupava cerca de metade da àrea total e estava separado por uma vedação de arame. Era ali, onde fora o coração económico e social da terra, que, em antigas casas comerciais, se situava o Comando e Secretaria, a Messe, a Enfermaria, os quartos, a Arrecadação de Material de Guerra, as Transmissões e a Cantina.
Numa construção aberta, mas coberta por chapa zincada, funcionava a Cozinha e o Refeitório. Em frente à Secretaria, soterrado, oblongo e com uma entrada estreita e alta numa extremidade, existia um Paiol, carinhosamente baptizado de submarino.

Na localidade havia ainda três casas comerciais, uma delas, com a frontaria virada para o pau de bandeira e a Secretaria, quase permanentemente encerrada e o proprietário, um velhote africanista, fez poucas visitas.
Das duas restantes, uma, junto à Messe, era gerida por um guinéu e eram escassos os artigos, reflectindo-se na pouca clientela. Do outro lado da rua à direita, no sentido do aquartelamento para a pista, ficava a casa do Silva, que sob o alpendre tinha sempre dois alfaiates, e um razoável número de pessoas que conversavam ou ficavam protegidas, tanto do sol inclemente, como da chuva quando lhe tomava a vez.

No interior, por trás de um velho balcão, o Silva, o ajudante, e raramente a esposa, faziam toda a sorte de negócio que interessasse aos locais ou à tropa. Nas traseiras, sob as frondosas mangueiras que davam sombra ao quintal, e onde também se destacava uma ou duas papaieiras, funcionava um improvisado bar ou restaurante. Recordo a excelente galinha de fricassé que o cozinheiro sabia preparar e constituía um manjar de deuses.

A actividade económica organizava-se, principalmente, em torno da presença militar, que patrocinava o grande fluxo de patacão, cujo circuito terminava maioritariamente na loja do Silva. A população praticava uma reduzida agricultura, com algumas lavras de mancarra, e de milho, que era semeado no inicio das chuvas e colhido quatro meses depois, com o início da seca. Praticava-se ainda alguma pouca pastoricia.

A população vendia à tropa alguma (pouca) fruta, galinhas e cabritos. As vacas eram propriedade de muito poucos e símbolo de poder e riqueza, pelo que, por vezes, era relutantemente que as vendiam à tropa. Recordo que as vacas custavam dois contos, e tendo em conta os rendimentos médios a seguir referidos, o preço de uma vaca equivalia a um ano de receita para o comum da população, e não tinham preço de aquisição, nem tinham custo de produção.

O rendimento familiar era muitas vezes substancialmente acrescido com o salário de Soldado ou Milícia, dado que muitas famílias tinham parentes na tropa. Ainda assim, dificilmente o rendimento familiar médio excederia 200 a 300 escudos (pesos) mensais, que à distância do tempo, poderia significar 20 ou 30 contos por mês, cem ou cento e cinquenta euros nos dias de hoje. Refiro-me, claro, a famílias do ambiente rural no âmbito descrito.

Parada de Bajocunda, enriquecida com a presença da Fatinha, a lavadeira que não gostava mesmo nada que lhe chamassemos rata cega.

Foto e legenda: © Cândido Morais (2009). Direitos reservados


Nos arredores de Copá havia ainda uma boa plantação de cajueiros, que não sei se era propriedade particular ou comunitária. Outra fonte de receita resultava da prestação de serviços, que quase se resumiam ao (mau) tratamento da roupa e à prostituição.

Amedalai era a mais importante das tabancas por ser sede de regulado. Vivia em regime de auto-defesa com um Pelotão de Milícias. No período de transferência da Companhia, e tendo em conta o elevado número de tropa em Bajocunda decorrente dos recentes acontecimentos na região, praticamente todas as noites se deslocava um Pelotão para reforço da aldeia, ou montava emboscada nas cercanias. Passado esse período, raramente voltou a acontecer algum Pelotão ali se deslocar a passar a noite.

Tabassi era uma pequena aldeia a meio caminho para Pirada. Por esta ocasião foram distribuídas armas novas do modelo G-3, foi erguida a vedação e abertas valas de protecção e defesa. Apesar do regime de auto-defesa, todas as noites se deslocava um Pelotão para garantir a protecção da aldeia. Pouco tempo depois, quando exigi do Chefe de Tabanca a verificação do armamento... nem pó, levaram sumiço. Estas situações relatadas, levam-me a concluir pela existência de relações de cumplicidade destas populações com o IN, no entanto não tive conhecimento de alguma atitude com vista à recuperação das armas, nem da mais leve preocupação a propósito. "Durante o mês de Agosto o IN revelou-se uma única vez, com uma flagelação a Copá, mas sem quaisquer consequências" - da História da Unidade.


Indício sobre a gestão da Companhia

Durante os primeiros seis meses de comissão, em Piche, a Companhia adquiriu uma boa experiência operacional, face às inúmeras saídas a que o quotidiano da intervenção obrigava. Dependíamos do Batalhão ali sediado em tudo o que à logística dizia respeito, pelo que os nossos serviços nessa área não tiveram qualquer relevância.

Com a assunção de responsabilidades no sub-sector, verificou-se a autonomia de administração de tudo o que à Companhia dizia respeito, nomeadamente na aquisição e gestão dos géneros alimentares, material e sobressalentes para as viaturas, bem como na aquisição e gestão da gasolina. Começou então a verificar-se uma relação directa entre a acção do Comando, onde pontificava o Primeiro-sargento, enquanto senhor de vasta experiência, e as condições de operacionalidade e qualidade de vida de todos os elementos, quer integrassem os operacionais, quer a parte de serviços.

A primeira surpresa foi-me relatada pelo Furriel responsável pela secção mecânica. Em princípio seria ele o interlocutor directo com o Comando no que à actividade e às necessidades correlativas dissesse respeito, tendo em vista a orientação para o melhor aproveitamento dos recursos. Referiu-me preocupado e revoltadamente uma proposta que logo lhe fizeram e constava do seguinte: a Companhia passava a abastecer-se de gasolina pela compra directa na sucursal da Casa Gouveia no Gabu, e para cada requisição de combustível, carregava-se apenas metade da quantidade mencionada na guia. O produto da restante quantidade seria dividido pelo representante da casa vendedora, o capitão, os dois sargentos e o furriel mecânico.

Perguntei-lhe quanto é que lhe renderia o negócio. Indignado, respondeu que regeitara a concumitância, mas que a parte proposta era ínfima. Dei-lhe os parabéns, ele era íntegro e pessoa de bem que não se deixara manipular. Mas ficou marcado, e mais tarde havia de lhe sair cara a ousadia.

De seguida, na Messe, referi para quem quis ouvir, que eu, se tivesse que transportar gasolina, ou carregar os bidons, ou carragava todos os constantes da guia, ou nenhum. E, tanto quanto me lembro, das inúmeras vezes que fui a Nova Lamego para reabastecimento, só transportei gasolina quando algum membro da sociedade se deslocava ao entreposto. De uma vez, tenho a certeza.

O miserável parque automóvel, com viaturas destroçadas e avariadas, para que nada falhasse e fosse justificável, nos mapas que seguiam para Bissau, constava em condições normais de utilização, com tudo a andar e a consumir alarvemente, medida que garantia duas situações: a justificação para o consumo a coberto da legitimidade por parte da sociedade, e o risco acrescido do pessoal que se deslocava em viaturas para o mato, tudo ao monte e fé em Deus. De facto, se trinta homens se deslocassem em três viaturas, a capacidade de reacção e o risco era bem diferente do que deslocando-se em duas.

JMMD
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 15 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4692: História da CCAÇ 2679 (21): O meu regresso à Guiné, após as férias na Metrópole (José M. Matos Dinis)

5 comentários:

JOSÉ BORREGO disse...

Camarada Diniz,
parabéns pela bela descrição sócio-económica, geográfica e operacional de BAJOCUNDA. Estive lá em 1972. Conheci o comerciante Silva. Frequentei algumas vezes o seu estabelecimento. Não consegui reconhecer a parada pela fotografia.
Um abraço do
JOSÉ BORREGO

Hélder Valério disse...

Zé Manel
Mais uma vez aqui estou para te dizer que gostei bastante deste teu trabalho.
Sei que irás dizer "lá está ele a ser lisongeiro". Nada disso, gostei mesmo!
Realmente, como escreveu o José Borrego, trata-se de uma bem conseguida "descrição sócio-económica, geográfica e operacional de BAJOCUNDA".
Um abraço
Hélder S.

MANUEL MAIA disse...

CARO ZÉ DINIS,

TAL COMO JÁ DISSE O BORREGO,FAZES UMA DESCRIÇÃO PERFEITA,EXTREMAMENTE RICA DE PORMENORES SOBRE A VIDA DE BAJOCUNDA.

COMO DE COSTUME,A "HABILIDADE" EM SACAR MASSA DO ESTADO TINHA OS PROTAGONISTAS TRADICIONAIS...

HAVIA VERBAS PARA TUDO,INCLUSIVÉ PARA GELO,JORNAIS E REVISTAS, BEM COMO ASSALARIADOS...
OS NOMES ERAM FÁCEIS DE APOR NAS FOLHAS E AS IMPRESSÕES DIGITAIS CONSEGUIAM-NAS A TROCO DE UM CIGARRO,ABICHANDO DESSA FORMA UNS CENTOS DE ESCUDOS/MÊS A MULTIPLICAR PELO NÚMERO DE ASSALARIADOS VIRTUAIS QUE VARIAVA.

CREIO QUE O MÁXIMO ERA DE 20...
A RATA CEGA PELA FORMA DE APERTAR O PANO CREIO QUE DEVESSE SER BAJUDA.
AS MULHERES GRANDES APERTAVAM-NO À FRENTE... OU SERIA O CONTRÁRIO?

POR OUTRO LADO BAJUDA COM AQUELE NOME... CHEIRA A ESTURRO...

AQUELA RATA SERIA CEGA PORQUE NUNCA VIRA "NADA DE NADA" POR AQUELAS BANDAS,
OU, PELO CONTRÁRIO, PORQUE NÃO FAZIA DISTINÇÕES SOBRE AS VISITAS???

BEM,TU É QUE SABES E CREIO QUE DEVES ESCLARECER BEM O PESSOAL SOBRE ESSA "CEGUEIRA"...

UM ABRAÇO

MANUEL MAIA

JD disse...

Camaradas,
A fotografia é da autoria do meu camarada de companhia Cândido Morais. A legenda é também da sua autoria, pelo que não posso fazer outros esclarecimentos.
Abraços
JDinis

Amilcar Ventura, Furri. Mecân. 1ª Comp. 8323 disse...

Zé Dinis obrigado pela bela discrição que fizeste sobre a Nobre e Bela BAJOCUNDA eu vivi lá um ano e foi bom recordar, tenho um Amigo de lá nascido e criado em Bajocunda, infelizmente já não é a mesma que conhecemos cheia de vida, se bem que de vez em quando era um INFERNO mas tirando isso era bom, a convivência com a população era excelente, várias vezes me convidavam para comer na sua Tabanca, deixei lá grandes Amigos até consegui trazer para cá um o meu Amigo Mulai Baldé, mas hoje tenho um vazio no meu coração há um ano que não sei dele, já corri seca e meca há procura dele e nada estou esperançado agora que a Embaixada da Guiné dei-me noticias dele, a prosa já vai longa termino Zé Dinis tenho várias fotos de Bajocunda inclusive uma aerea se não tiveres manda-me um email que eu te envio .

UM ABRAÇO