1. Continuação da publicação das memórias do Cherno Baldé, menino e moço em Fajonquito (1970/75), hoje quadro superior da administração pública da República da Guiné-Bissau (*):
Ambientes e ambiguidades > Algássimo, o visionário
Quando finalmente saía do quartel, a noite, encontrava o Algássimo Djaló à minha espera, ele gostava da sopa (entenda-se comida do quartel) que trazia metida em latas de conservas de tomate. Não podia entrar dentro do quartel, por ordens do seu pai, de princípios rígidos e ortodoxos como todos os seus conterraneos de Futa-Djalon que em tudo se comportavam como perpétuos emigrantes e nunca se integravam nas comunidades locais consideradas de nível inferior, religiosamente falando.
O Algássimo queria viver como uma criança normal da sua idade mas vivia quase numa clausura. Nao podia frequentar nem a escola, nem o quartel, nem os locais de festa, de baile, de futebol, nada, nada. Ele podia, sim, procurar lenha seca nos arredores da aldeia para a fogueira da noite onde passavam, ele e mais outros rapazes da mesma comunidade, horas a fio, a repetir alguns sons escritos em árabe arcaico numa tábua de madeira cujos significados nem o próprio mestre sabia. Era esta a faceta da religião que alguns religiosos, sobretudo Futa-fulas, nos queriam ensinar. Tempo perdido (**).
Mais tarde o Algássimo, por iniciativa própria, acabaria por entrar no quartel e também frequentar a escola mas com meios próprios pois o pai, na impossibilidade de o impedir, tinha sido peromptório:
- Queres ir para a escola dos brancos, então, vai!..Mas nãoe peças nada e nãso me contes nada porque não te dou nada e não quero saber de nada pois o seitan será o teu companheiro no inferno.
O Algássimo foi e ficou, do satanás não viu nem os rastos. O pai, este, acabaria mais tarde, por falecer, doidinho da Silva.
Pela idade, experiência e ansiedade que ele tinha acumulado, rapidamente galgou os escalões do ensino e por pouco não me ultrapassava de classe. Foi nessa altura que, também eu, animal livre, resolvi encarar com alguma seriedade a escola, e consegui, finalmente, aguentar-me na sala, sentado, aquelas duas horas que me pareciam uma eternidade.
Mais tarde ele tirava conclusões interessantes das suas observações sobre aquela época, em Fajonquito, a sua entrada no quartel, os soldados portugueses, o ambiente do refeitório geral e a escola onde curiosamente o professor era um Sanhá que queria dizer mandinga ou um beafada islamizado. Disse-me uma vez:
- O melhor e o pior que aprendi com estes brancos, durante a minha permanência entre eles, e que depois continuou em diferentes lugares e circunstâncias, foi o espírito sempre presente da irreverência e da insubmissão, o sentido da busca, da insatisfação permanente, do questionamento sobre o que parece evidente, da insaciável curiosidade e coragem de ultrapassar limites, da revolta, da reviravolta... Com eles nenhuma situação é imutável e a mudança é uma constante. Enquanto continuarem a liderar, o mundo nao terá sossego.
Este espírito irreverente e mutante, este paradigma filosófico de mudança em permanência, se quiserem, é, na opinião do Algássimo, "a maior força e quiçá, também, a maior fraqueza do Homem branco, europeu, que está constantemente a pôr em questão as suas próprias verdades ainda agora conquistadas e reconhecidas mas insuficientemente amadurecidas".
Continuando ainda sobre o mesmo assunto, dizia que, na sua opinião, "o tumulto materialista e a incongruência lógica do mundo em que vivemos hoje nasceram desse posicionamento ambíguo do homem europeu que prolonga a vida mas também a sua agonia nas incertezas que engendra sobre o amanhã que está por vir mas cujo porvir já está hipotecado nas bolsas de valor de Londres e Nova Iorque".
O meu amigo Algássimo, temeroso ou grande visiánario, não conseguiu aguentar o período após independência, nãoo, ainda aguentou uns seis anos, até 1980, altura em que, tendo emigrado para Portugal, com o falecimento do pai, voltou e decidiu mudar-se para o Senegal.
Antes de partir, estando eu nessa altura em Bissau a terminar o liceu, disse-me claramente que não podia continuar na Guiné-Bissau porque, segundo ele, esta seria, durante muito tempo, a terra dos outros. Perguntou-me ele:
- Você não ouviu as cantigas deles ?...
Ele referia-se a uma cantiga em crioulo que dizia assim: Kim ki tem terra? Anós ki tem terra. kim ki na labráá...? kim ki na furtáá...? etc. E a sonoridade da música nao colocava quaisquer margens de duvidas sobre as suas origens étnicas.
Na sua opinião, a Guiné-Bissau tinha poucas probabilidades de sucesso porque em vez do bom pastor o gado tinha sido entreque aos lobos, vestidos com pele de ovelhas. Em vez de pessoas instruídas e com experiência na administração do Estado eram pessoas iletradas, quase analfabetas, que dirigiam e controlavam a vida económica e política do pais.
- Assim não vamos a sítio nenhum - arrematava.
Verdade ou mentira a opinião é dele e no que me concerne, sem capacidade de visionar o futuro, e tendo acreditado e abraçado firmemente a visão e os ideais de Amilcar Cabral sobre a necessidade da luta pela afirmação do homem africano, do terceiro mundo, de um mundo mais justo, de progresso, paz e fraternidade, voltei alegremente dos estudos e estou ainda aqui na esperança de ver se aparece a luz ao fundo do túnel.
Mas a questão é, de algum tempo para cá, recorrente e.... inevitável:
- E se o Algássimo tinha razão?...
___________
Notas de L.G.:
(*) Vd. último poste da série > 10 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4806: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (11): Filho da p... de barrote queimado...... Ou as sobras do rancho
(**) Vd. poste de 23 de Julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3089: Antropologia (7): As tabuinhas das escolas corânicas: tradutor de árabe, precisa-se (A. Santos / Luís Graça)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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5 comentários:
As dúvidas depois do conhecimento.
O que era certo por falta de informação, esfumou-se quando teve acesso à mesma.
Muita gente aposta na ignorância, porque só assim mantem o poder.
O Algássimo escolheu a instrução o conhecimento, em vez da própria família. Dirão os mais fundamentalistas, que a família e a Pátria estão acima de tudo. E se estiverem enganados?
Poderemos nós todos estar enganados nas nossas convicções?
Como o Algássimo em tempos, alguns de nós também nos revoltamos, alimentamo-nos dessa raiva de mudança.
Hoje de alguma forma de braços cansados, só queremos que não nos tirem as nossas certezas.
Gostei muito do teu texto Cherno.
Um abraço
Juvenal Amado
Ah "ganda Chico!
Chega a ser comovente ler-te e ficar a saber como nos viam e entendiam.
Será que éra-mos mesmo assim? Pois também acredito que sim, mas acho que algumas dessas características se perderam ou perderam algum fulgor.
Mas olha, não foi só na tua e "nossa Guiné" que os incompetentes, pelo menos para as funções desejadas, tomaram conta dos destinos. Por cá também aconteceu disso, razão fundamental para que as pessoas se afastassem progressivamente das obrigações que têm de vigiar os governantes eleitos e trabalhar empenhadamente para o desenvolvimento da sociedade. No fundo, voltarem a ser aquilo que os caracterizava, como tu tão bem relatas.
No entanto fico feliz por ti, pelo teu povo, por nós, pela tua persistência em te empenhares na "luta pela afirmação do homem africano, do terceiro mundo, de um mundo mais justo, de progresso, paz e fraternidade", que voltaste "alegremente aos estudos" e que ainda estás "na esperança de ver se aparece a luz ao fundo do túnel".
Continua, dá-nos esse belo exemplo de que é assim que se pode avançar, que não se pode desistir, não se pode perder a confiança num futuro melhor.
E continua a brindar-nos com as tuas memórias.
Sobre o "cansaço" há um poema, salvo erro de Berthold Brecht, que começa assim: "Ouvimos dizer que estás cansado...", conheces? é bom para "recarregar baterias", como por exemplo também uma canção de Paul Simon & Art Garfunkel intitulada "The Boxer".
De vez em quando devemos ir aos "clássicos"
Um abraço
Hélder S.
CARO CHERNO,
O ALGÁSSIMO TINHA RAZÃO AO QUE PARECE.
SOBRE PORTUGAL, NÃO FOI ALGÁSSIMO A DIZÊ-LO, MAS ESSA FIGURA INCONTORNÁVEL DA LITERATURA LUSA, MIGUEL TORGA,QUE INSTADO A COMENTAR SOBRE O PAÍS AFIRMOU MAIS OU MENOS ISTO:
DANTES VIVIA-SE NUMA DITADURA EXECRÁVEL,MAS O PAÍS ERA GOVERNADO POR GENTE PATRIOTA,HONESTA,
TRABALHADORA E CULTA...
HOJE,VIVE-SE NUMA DEMOCRACIA DE VENDE PÁTRIAS, DESONESTOS,SORNAS E ANALFABETOS...
PORTANTO,CARO CHERNO, O VOSSO ALGÁSSIMO, A ESTE NÍVEL DE PENSAMENTO,COMPARA-SE A ESSE CIDADÃO DO MUNDO E DAS LETRAS,O ENORME MIGUEL TORGA.
PARABÉNS, UMA VEZ MAIS, PELA QUALIDADE DO TEU ESCRITO.
OBRIGADO.
MANUEL MAIA
Quando se diz que a percentagem de falantes da lingua portuguesa na Guiné, não passará os 15%, é simplesmente porque os milhares de guineenses em Portugal e em França, letrados e muitos formados como o Cherno, simplesmente desistiram de "lutar".
Todos os guineenses (mais de 20), que dobram ferro e aplicam cimento, numa obra em que presto serviço, em Lisboa, falam perfeitamente e penso que alguns serão universitários.
A maioria dificilmente vai regressar.
Antº Rosinha
Caro Cherno
Há algum tempo que venho a ler atentamente os teus textos e tenho ficado encantado com a beleza, a realidade, a profundidade e a "mordacidade" que colocas no que escreves. Parabéns e também nós perguntamos: e se os Algássimos dos nossos paises tinham razão?
Um abraço
Luís Dias
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