1. Mensagem de José Teixeira, (*), ex-1.º Cabo Enfermeiro da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada , 1968/70, com data de 20 de Agosto de 2009:
Camaradas.
Agora que está a chegar o fim das férias, fui buscar ao "meu diário" mais um texto para a nossa estória de combatentes.
Fraterno abraço para todos
José Teixeira
Mampatá 1968 > O meu abrigo
O BU… RAKO EM QUE CAÍ
Do “meu Diário”
Setembro, 1968 /Mampatá / 20
Estou a escrever sentado num tosco banco de três pernas, de fabrico artesanal, que me foi oferecido pelo Aliu Baldé, o Chefe de Tabanca, nos primeiros dias em que cá cheguei.
Estou debruçado sobre uma mesa engendrada por algum habilidoso, que por aqui passou. Quatro paus espetados na terra, com a parte superior em forma bifurcada, onde assentam outros dois na horizontal. Por cima, duas tábuas, eis uma escrivaninha à maneira.
A meu lado, uma candeia improvisada, dá uma ténue luz, a suficiente para iluminar este buraco de cerca de três por quatro metros. Uma garrafa de cerveja cheia de gasóleo, um furo na cápsula e uma gaze a fazer de torcida. Esta é a luz que nos alumia nesta habitação/abrigo subterrâneo, cujo tecto é construído com troncos de palmeira, sobrepostos com terra e chapa alongada de bidons de combustível e por cima chapas de zinco. Habitáculo de sapos, sardões, formigas, camaleões e cobras, possivelmente.
Ainda há dias, na Chamarra, um camarada, quando à noite, se dirigiu ao abrigo e se foi deitar, deparou com uma companhia inusitada a mexer-se por debaixo dele. Tinha como companheira de cama uma cobra que dormia o seu repousante soninho, protegida pela capa de oleado que usamos quando saímos em tempo de chuva. Felizmente, a capa que servia de lençol foi a sorte do camarada e o azar da bichinha que ali mesmo perdeu a vida.
No chão deste apartamento estão três colchões pneumáticos onde repousam dois corpos jovens cheios de vida e esperança no futuro. O terceiro é a minha cama. Já temos madeira para engendrar umas camas que terão de ser baixinhas para não darmos com a cabeça no tecto.
É o local de esperança para onde toda a gente corre quando se ouvem sinais da presença do inimigo. Longe ou perto, as nossas almas ficam em sintonia com os que estão a embrulhar. Surgem comentários e palpites. Uns reflectem esperança, outros, pessimismo e desânimo.
E... há um respirar fundo, quando volta o silêncio, sinal de que a contenda acabou.
Aqui funciona o posto de rádio de Mampatá. Eu como enfermeiro estou aqui por empréstimo. Permite-nos saber, rapidamente, onde há camaradas em perigo nas tabancas que estão a ser atacadas. Sobretudo estamos atentos à relação vida e morte, isto é, se há apelos, se há feridos, se há mortos.
A experiência e o conhecimento do terreno vão-nos dizendo, rapidamente, onde está a acontecer a festa.
É daqui que partem as nossas informações de apreensão e apelo ou de bem estar, que também existe felizmente, quando somos atacados nesta pequenina tabanca de Mampatá.
Felizmente neste momento, apenas uma roufenha telefonia deixa escapar uma linda e suave canção da Helena Tavares que tem um título bem sugestivo – "Adeus".
Ontem, por esta hora, estavam os camaradas Gandembel e talvez Cacine ou Gadamael a ouvirem outro tipo de música. A que nos faz correr para o local mais próximo onde haja expectativa de alguma segurança, ou de G3 na mão, vamos defender a vida. A nossa, a dos nossos camaradas e a da população que nos rodeia e em nós confia.
Zé Teixeira
__________
Notas de CV:
(*) Vd. poste 14 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 – P4819: Estórias do Zé Teixeira (36): Mataram o futuro (José Teixeira)
Vd. último poste da série de 3 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4632: Os bu... rakos em que vivemos (13): Sare Banda um dos bu…rakos em que morremos! (A. Marques Lopes)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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7 comentários:
Zé Teixeira
Com dois riscos descreves um BU-RAKO e uma situação de vida, onde englobas a tua maneira de sentir aquela guerra.
Parabens
Luis Faria
Caro José Teixeira
Como tu, também eu fui Enfermeiro.
Estive a ler o teu poste e há uma coisa que me deixa perplexo.Então
em Mampatá e em 1968 não havia camas?
Eu estive em Béli dois anos antes e o que lá havia mais eram camas. Podia não haver de comer,mas onde dormir não faltava.Claro que não estou a duvidar de ti, mas da competência de quem comandava esse destacamento, ou bu...rako, como lhe chamas.Estive em muitos destacamentos devido a operações em que participava a minha companhia e em nenhum deles havia falta de camas, isto em 1966/68.Mas por aqui se vê a incompetência de muitos oficiais que comandavam as nossas tropas.
Armandino Alves
Ex 1º Cabo Enfº
C Caç 1589
Caro Armandino.
Em Mampatá, não havia aquartelamento. Os soldados dormiam nos abrigos construidos com troncos de palmeira, julgo que pelos nossos antecessores da C.Caç 2382, à volta da pequena povoação, junto ao arame farpado.Durante o dia conviviam com os nativos. A cozinha estava montada numa morança dividida ao meio por um tabique de cana entrançada. De um lado era a cozinha militar. Do outro morava a proprietária e a sua família (a velhinha mãe e dois filhos bebés. Nos abrigos não havia espaço para se montarem camas. Quem quizesse podia dormir em moranças alugadas ou cedidas pelos africanos. Só o alferes e os furriéis adoptaram esta atitude.
Caro Camarada e Amigo
JTeixeira
Obrigado por trazeres à Tabanca os Bu...rakos de Mampatá.
Mostras-te a toda a gente as nossas belas instalações.
O Armandino que não se espante porque em 69/71 os Bu..rakos continuaram.
E pior a Cart 6250 que foram os ultimos em Mampatá, pelo que descrevem os Bu...rakos, continuaram.
Um abraço
Mário Pinto
"tou" farto de dizer que na Guiné só deveria haver Mapatá e que este Teixeira das Bajudas só "inventa".
Mas como não estive lá (Catió era melhor que Bissau, só nao havia a 5ª REP mas havia outras coisas ) dou-lhe mais uma vez o benefício da dúvida.
"Ganda" Teixeira, teus escritos são uma delícia de leitura.
Um abraço para ti extensivo a toda a Tabanca
Ó PortoJo(rge Teixeira). Os Teixeiras são assim. Tu também só "inventas" nas estórias da Tabanca de Matosinhos.
As minhas estórias são tão reais como as tuas. Foram escritas no tempo em que as vivi. Tu e eu continuamos, agora a viver as estórias do nosso tempo e do tempo que passamos na Guiné, todas as quartas feiras e que bem nos faz, com a pinga que o Zé Manel nos brinda. A mim também me fazia muito bem ao espirito escrever o que sentia e vivia. Agora sabe bem po-las em comum. É como vivê-las de novo.
Zé Teixeira
Caro Zé Teixeira
Aprecio bastante a tua forma simples mas repleta de sentimento com que descreves as diversas peripécias em que estiveste envolvido.
É fácil, ao ler-te, "estar lá", pelo menos para aqueles que conheceram minimamente os "ambientes" que relatas.
É claro que quem estava "no sítio da porrada" certamente que estaria bem pior, mas para quem tinha tem) sentimentos de solidaridade esses momentos de "saber" onde era e não ser possível fazer nada aumentava fortemente a angústia.
Acho que descreves bem a importância das comunicações, neste caso do rádio, "guerra" que me foi familiar.
Um abraço
Hélder S.
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