1. Mensagem de José da Câmara (ex-Fur Mil da CCAÇ 3327 e Pel Caç Nat 56, Guiné, 1971/73), com data de 5 de Fevereiro de 2010:
Caro amigo Carlos Vinhal,
Em devido tempo deixei-te saber que tinha uns cavalinhos, à solta, no meu companheiro de muitos anos. Infelizmente, tive que me separar dele por algum tempo, e acabei por arranjar mais um companheiro.
Pior que tudo isso foi saber que, por falta de trabalho (e dou-te algum) o valor das tuas comissões baixaram bastante. Lamento!
Não poder dar o meu passeio diário pelo blogue também pesa na minha consciência. Mas tudo está bem quando acaba bem, e cá estou a contribuir com mais um história simples para a série "Memórias e histórias minhas".
Para ti e para todos os camaradas um braço muito quente do
José Câmara
Bissau: uma guerra diferente onde os rumores também voavam
Várias vezes referi que a disciplina imposta pelo comandante do AGRBIS, o excesso de trabalho, o serviço ao Hospital Militar 241 e à sua morgue, e as Guardas de Honra Fúnebres no cemitério de Bissau como sendo os componentes que mais afectaram, psicologicamente, a nossa estada em Bissau.
Houve também outros factores que, pela sua importância contribuíram para o abalo mental que, desde cedo, se começou a sentir no seio da Companhia. Refiro-me aos rumores que, desde o dia em que chegámos à Guiné, voavam em todas os sentidos, e que nos davam como certos nos lugares mais díspares do TO da Guiné. As zonas de Pirada e Aldeia Formosa eram os lugares mais visados como áreas de colocação. Buruntuma também tinha os seus adeptos. Eram zonas míticas e difíceis.
O Comandante da Companhia, Cap Mil Art Rogério Rebocho Alves, bem se esforçava para dissipar os rumores. Dizia ele que nada sabia, pois não tinha sido informado. E a verdade é que não sabia mesmo, e os seus esforços acabaram por não surtirem o efeito desejado, que era o de estabilizar o estado emocional dos soldados.
A presença de um simples facto veio alterar, sobremaneira, todo o panorama dos rumores que passou a certezas entre os soldados da Companhia. A zona de Pirada era (para eles) o nosso destino. Sobre isso escrevi à minha madrinha de guerra o seguinte:
Carta de 25 de Fevereiro de 1971:
"Disse, em carta anterior, que no dia 19 de Fevereiro iria para o Destacamento de Nhacra ou Dugal, numa fase de adaptação. Tal não aconteceu. Outro Pelotão é que foi para lá. Assim, continuo em Brá e com o mesmo serviço.
Deve estar perto a ida para o mato. Pelo menos a Companhia que nos vem render, em Brá, está prestes a chegar. O 1.° Sargento daquela Companhia já veio instalar a Secretaria. Portanto, mais dia, menos dia, nós vamos de abalada para o mato. Não sei o sítio mas, segundo se diz, vamos para perto de Pirada."
A presença daquele 1.° Sargento foi como um bálsamo para a sanidade mental de grande parte dos elementos da CCaç 3327. O que os soldados queriam era sair daquele inferno chamado AGRBIS. E com razões de sobra.
Os rumores cessaram, e até o lugar para onde iríamos deixou de ter importância.
Aerograma de 7 de Março de 1971:
"O meu trabalho continua a desenrolar-se normalmente, não havendo nada de especial a referir. Continuamos sem saber quando iremos para o mato, nem para onde. Tudo continua no maior silêncio."
A verdade é que os dias foram-se passando. E, com eles, o descontentamento começava a apoderar-se, mais uma vez, dos soldados. Nós, a maioria dos graduados compreendíamos que a nossa guerra em Bissau era diferente, e que o perigo dos tiros era quase nulo. Mas seria isso o suficiente para apaziguar os sacrifícios desenvolvidos? A minha madrinha de guerra era a única pessoa que sabia o que me ia na alma.
Aerograma de 27 de Março de 1971:
"A vida na Guiné continua a mesma coisa, isto é, sem alterações.
Quanto à nossa situação devo dizer-te que a malta (deveria estar a referir-me aos soldados) está para pedir ao nosso Capião para irmos para o mato. É que toda a gente está a ficar estoirada, fraca e sem vontade própria.
Para já, estive 48 horas seguidas de serviço e não gostei nada. Agora soldados que andam há um mês e tal sem descanso, como não devem estar? Dormem aos bocadinhos, andam quilómetros e quilómetros, dia e noite sob este calor tórrido. Enfim, isto para eles é um verdadeiro inferno. Eu, comparado com eles, estou no céu, acredita. Eu tive muita sorte no meio de toda esta miséria.
É certo que estamos numa zona onde não há tiros, nem barulhos. Mas pergunto eu:
- Valerá a pena tamanho sacrifício?"
Da esquerda para a direita: o Soldado Condutor Auto João Valadão (já falecido), Fur Mil José Câmara, o guineense chefe dos serviços da lavandaria do Palácio, e o Soldado João Avelar Ventura
Entretanto mais alguns dias se passaram. Era normal encaixar 48 horas seguidas de serviço: Sargento da Guarda ao Palácio e Sargento do Dia à Companhia. Normal não era fazer 72 horas seguidas. Mas acontecia, se havia impedimento de algum dos outros furriéis a qualquer serviço de escala. Na carta que escrevi à minha madrinha de guerra não faço nenhuma referência à nossa ida para o mato.
Carta de 1 de Abril de 1971:
"Há 72 horas que me encontro de serviço. Aborrecido como sempre... Ontem a coisa esteve feia, pois os soldados tentaram fazer um levantamento de rancho" - (já fiz referência a este caso, pelo que é descabido mencioná-lo outra vez).
Esta carta acaba abruptamente da seguinte forma:
"Desculpa a pequenez da carta. Mais tarde explicarei porquê".
A forma como termino a carta indica que algo de importante se passou. Nesse dia, tomámos conhecimento de que íamos, finalmente, ser rendidos em Bissau e que seguiríamos para o mato a 6 de Abril.
A Companhia de Caçadores 3327 iria assumir o estatuto de Companhia de Intervenção ao serviço do CAOP1, com sede em Teixeira Pinto. A sua missão principal seria proteger a nova estrada que estava a ser construíada entre Teixeira Pinto e Cacheu.
A Mata dos Madeiros era o nosso destino.
José Câmara
__________
Notas de CV:
(*) Vd. poste de 31 de Dezembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5571: Votos de Feliz Natal 2009 e Bom Novo Ano 2010 (27): O Pai Natal das minhas netas encheu-me o sapatinho (José da Câmara)
Vd. último poste da série de 20 de Dezembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5508: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (11): Esta água tem pouco vinho
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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2 comentários:
Que triste destino foi esse.Já era o meu e do Antonino Chaves, desde Janeiro d 1971 e seria até Novembro,posteriormente com mais dois Grupos de Combate da 2791.
Foi o nosso destino.
Aquele abraço.
Jorge Fontinha
Caro José Camara
Pelo que entendi,eras um amante do "campismo" onde, para alem de tudo o mais e como diz o M Maia,havia menos "salamaleques e cruzamentos"!!!
E não há duvida nenhuma que no "p.campismo" e envolventes que vos escolheram,havia excelentes ares
Um abraço
Luis Faria
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