1. O nosso Camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil At Inf, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), enviou-nos, com data de 12 de Abril de 2010, a segunda parte da sua nota de leitura iniciada no poste P6162:
Queridos amigos,
Assim acaba a incursão pela obra de Cristóvão de Aguiar, no que tange a temática da Guiné.
Vamos agora fazer um recuo aos anos 60, às obras de Manuel Barão da Cunha e Amândio César.
Crónica dos dias levantados da guerra, com os horrores de Goya e tudo
Mário Beja Santos
Alf Mil At Inf, Comandante do Pel Caç Nat 52
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Nota de MR:
“Braço Tatuado, Retalhos da Guerra Colonial”, é o título mais recente de Cristóvão de Aguiar no seu eterno retorno à Guiné (Publicações Dom Quixote, 2008).
Valeu a pena o escritor de “Relação de Bordo” e “Trasfega” ter remexido, depurado, reestruturado páginas que foram inicialmente publicadas em 1985.
São memórias da sua comissão militar, sobretudo na região Leste. Inevitavelmente, a condição de ilhéu invade o território da mente que escancara as memórias, tudo começa com uma viagem onde só falta que os animais falem.
E os animais são cães que dão pelo nome de Andorinha e Morteiro, não sei se não são mesmo os animais maiores da literatura que nos legou a guerra da Guiné.
A viagem começa em Nova Lamego e prossegue até Dunane, passa por Jabicunda, onde se distribuem uns comprimidos do Laboratório Militar que curam todas as mazelas, desde chagas a diarreias galopantes, isto enquanto a magalagem faz directamente a psico-social com as bajudas; daqui se segue para Sonaco, altura em que o vinho de coco começou a trepar à cabeça do nosso alferes.
Este, por acaso o autor, deixa-nos uma água-forte do chefe de posto: “É um cabo-verdiano odiado pela maioria dos indígenas.
Mas possuiu o grande predicado de ter uma mulher também cabo-verdiana, perfeita de mais, muito mais moça do que o marido e pejada de apetites extra-conjugais.
Num clima excitante e puxavante como este, será muito natural e humano que exija do marido pela medida acogulada, que ele, com os seus quase sessenta, não tem forças para lhe matar o desejo com a frequência desejada.
Os alferes, na força miliciana da idade e desempenados, são por isso a sua predilecta sobremesa”.
Entra logo a seguir o capitão Carvalho que tinha por hábito desfazer-se de todos os guias, eram executados, quem já tinha colaborado com os «turras» devia desaparecer.
Depois escrevia-se no relatório que havia a lamentar a morte do guia, guerrilheiro capturado em anterior operação, preparava-se para fugir, houve patrioticamente que o abater.
As imagens de horror sulcam-se nesta simplicidade da escrita, o guia sabe que tem a sentença marcada, vai algemado, leva uma corda amarrada à cintura, o soldado que caminha atrás vai dando pontapés, mais adiante, enquanto o furriel enfermeiro dá de comer ao guia algemado o soldado aproveita, à socapa, para lhe calcar os pés com as botas.
Assim se descreve a bruteza, a tal que existiu e apetece ignorar. Relato do horrífico é-nos dado pelo tenente Roberto, a aguardar promoção ao posto imediato por distinção e louvor: “Os filhos, em férias, brincam na parada.
Vejo-os da ampla janela que para lá se debruça. Jogam ao jogo da guerra, matam e esfolam terroristas que são as crianças indígenas que aguardam, nas imediações da cozinha, os restos do rancho.
O pai treinou-os”. Eis o horror, em toda a singeleza: Como pai exemplar e extremoso, o tenente Roberto exercitou os filhos nas artes marciais.
Sempre que faz prisioneiros no mato, manda chamar os filhos e incita-os a que piquem o tronco nu e luzidio dos capturados com as navalhinhas amoladas. Apressa-se depois, num acto de caridade, a deitar-lhes álcool nas feridas abertas pelos filhos...»
Mas o reverso do horror não se pode escamotear: «Mais tarde veio a saber-se que o capitão Roberto, na altura prestes a ser promovido a major também por louvor e distinção, numa outra comissão, desta feita em Angola, onde comandava uma companhia de comandos, acabou por encontrar a mulher com o impedido na cama.
Chegara mais cedo e inesperadamente de uma operação de três dias. Matara e esfolara e trazia muitas orelhas para apresentar à mulher. Não teve coragem de matar os dois amantes em flagrante delito.
Preferiu enforcar-se num galho de uma árvore de pau-sangue.» O ramerrame, a insipidez das rotinas, a ingénua convicção de que se mal até agora não aconteceu é porque nada vai acontecer, desafiam a madre experiência, às vezes com resultados sinistros.: armas que se disparam, granadas que se despoletam sem ninguém lhes tocar, banhistas devorados por crocodilos.
Segue-se o relato da vida em Dunane, eremitério como poucos: «A caserna é um amplo barracão de adobes com telhado de zinco. Poucos se arriscam a lá pernoitar.
Descansam apenas durante o dia. A altura do barracão e a sua fragilidade transformam-no num alvo perigoso e fácil de bazuca. Eu e o furriel mais antigo habitamos um abrigo a setenta passos de distância da caserna.
Às vezes conto setenta e três, outras sessenta e oito, consoante. Esta moradia foi construída anteriormente à nossa chegada. A matéria-prima é constituída por bidões vazios de duzentos litros de capacidade.
Dezoito são eles ao todo. Seis à frente, outros seis à retaguarda com outros tantos encavalitados por via da cobertura ficar com a inclinação própria de telhado para que as águas desagúem».
Enfim, um eremitério como quase todos nós conhecemos, recebemos uma guia de marcha para Dunane, ali vivemos semanas, meses, anos. Cristóvão de Aguiar pouco mexeu no episódio de Niza e seguramente que fez bem, é uma narrativa pungente, um crucifixo de solidão e perda de identidade.
É muito difícil a qualquer Niza aguentar a partida da Lena quando se tem o seu nome no braço tatuado. Dias depois, o Uíge levanta ferro, mas é bom que os senhores leitores saibam que há guerras que não têm fim, ela regressa pela calada da noite, os nossos olhos insones são espevitados por incêndios, estrondos, gritos, metralhadoras que nunca se silenciam.
É por isso que se transmitem estes farrapos de memória, estes apelos em que nos reencontramos, há horas de horror nos nossos dias levantados, não se sabe até quando.
E assim nos despedimos de Cristóvão de Aguiar, também não se sabe até quando.
Cristóvão de Aguiar
Um abraço,
Mário Beja Santos
Alf Mil At Inf, Comandante do Pel Caç Nat 52
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Nota de MR:
Vd. último poste da série em:
13 comentários:
O Beja Santos cita a boa literatura do Cristóvão de Aguiar:
"O capitão Carvalho (...) sempre que faz prisioneiros no mato, manda chamar os filhos e incita-os a que piquem o tronco nu e luzidio dos capturados com as navalhinhas amoladas. Apressa-se depois, num acto de caridade, a deitar-lhes álcool nas feridas abertas pelos filhos...»
Sabemos, pelas recensões do Beja Santos aos livros do Cristóvão de Aguiar que o açoriano endoideceu. Ele próprio confessa que, ainda na Guiné, alferes miliciano arreava num furriel com um cavalo Marinho
Que Deus Nosso Senhor tenha piedade dos carvalhos, dos aguiares e dos santos!...
Abraço,
António Graça de Abreu
Corrijo a maiúscula no cavalo, é cavalo marinho e não cavalo Marinho.
Para que não haja confusão com o Marinho.
António Graça de Abreu
Penso ainda que o santos devia ser corrigido para Santos. Mas isto sou eu a pensar....
Vasco A. R. da Gama
Como diria o velhote alentejano:
"Isto é que vai uma açorda!..."
Mário Migueis
Os filhos do tenente Roberto, menores como todos os filhos de tenente, a picarem com navalhinhas os prisioneiros, deviam ser, tanto para a mãe como para os avosinhos, uns rambozinhos porreirolas.
Beja Santos e este Blog, devem, sem a mínima censura, divulgar, as barbaridades relatadas, quer reais e comprovadas, como as imaginadas e romanceadas, em grande literatura.
Esta das criancinhas do tenente são de antologia.
Antº Rosinha
Oh meu caro Mário
Confesso que estou baralhado!
Isto é romance, ficção, invenção, ou pretende ser realidade?
Se pretende ser realidade, não acredito minimamente até me provarem essa realidade!
Não é por individuo escrever tal, que eu acredito numa história destas!
Se é ficção/invenção, tal escrita ofende-me como combatente da Guiné.
Ofende-me tanto como outros dizeres e fazeres que por aí andam.
Claro que esta critica nada tem a ver com a recensão que fazes de tal "livro"!
Um abraço camarigo para todos
Camaradas,
Qualquer interpretação pode ser literal, ou não. Todos sabemos que no "antigamente", autores e jornalistas passavam mensagens através de linguagens "cifradas".
Nós é que somos responsáveis pela interpretação que fizermos, independentemente das diferentes interpretações sobre o mesmo texto.
Sobre a colonização e descolonização dos portugueses, quer do pontoo de vista militar, como do cívil, há muitos textos e formas de apresentar. E há uma opinião pública, quase iletrada, que toma posição conforme os quadrantes que lhes são simpáticos.
É normal.
Também aqui deu alguma celeuma um texto de um autor consagrado, que, interpretado literalmente parece um atentado às virtudes portuguesas.
Comprei ontem um livrinho, "Caderno de Memórias Coloniais", de Isabela Figueiredo, Ed. Ahgelus Novus, que torna mais fácil compreender uma certa relação que tivémos em África. Como aqui também já se abordaram estórias sobre actos vis, que não fazem a generalidade. Mas pode-se reflectir nas partes para chegar ao todo.
Depois, a interpretação dependerá da capacidade de cada um, porque para interpretarmos sem preconceitos, é preciso ser-se capaz. E conhecer o suficiente para sistematizar.
Este livro que referi, como alguns outros, alerta-nos para um manto que cobre algumas realidades, e só mostra o que destapamos. Por vezes, no período em que pais e filhes se confrontavam com visões diferentes do mesmo problema, por contestar que os pretos são manhosos e mandriões (lidei com eles, trabalhadores rurais), fui acusado de comunista. Nunca fui. Mas carreguei o epíteto.
Pelo anterior, peço alguma tranquilidade e tolerância na leitura das recensões, que, mais não seja, têm a virtude de me ajudar a seleccionar o que acho que devo ou não ler.
Abraços fraternos
JDinis
Camaradas,
Acho que devo um esclarecimento:
Relativamente ao texto mencionado, da autoria do Lobo Antunes, um autor consagrado, que não é maluco, eu interpreto-o a "contrário senso", na presunção de que os excessos (os diferentes comentários só regeitam a redundância, ninguém negou em absoluto alguma acção excessiva), têm por objectivo evidenciar o hediondo da guerra, e sensibilizar as mentalidades contra ela, a guerra.
Abraços fraternos
J.Dinis
Oh meu caro José Dinis
Um dia hei-de aprender a estar calado!
Sempre a considerar-te como sabes.
Porque é que raio, quando uma "figura da cultura" diz uma barbaridade se tenta encontrar sempre uma justificação, e quando um pobre "bruto" como eu, ou qualquer outro, se tomam as palavras na sua realidade crua?
Não volto ao Lobo Antunes mas continuo a afirmar que o que ele disse foi uma bestialidade, e sendo culto como é, tem mais responsabilidades no que diz!
E agora batam-me que eu não me importo, porque garanto-vos, que a minha "camarigagem" está acima dessa gente.
Um abraço camarigo para todos
"e quando um pobre "bruto" como eu, ou qualquer outro, se tomam as palavras na sua realidade crua?"
O que eu queria dizer era, obviamente:
"e quando um pobre "bruto" como eu, ou qualquer outro, diz umas "coisas", se tomam as palavras na sua realidade crua, sem qualquer outra interpretação possível?"
Um abraço
José Manuel Diniz, eu concordo e leio tudo o que posso sobre esta guerra e sobre as colónias. Embora das leituras que faço, aquelas a que dou mais atenção, é quando são escritas por africanos, o que há muito pouco.
Sobre a Isabela Figueiredo, branca, moçambicana, retrata o próprio pai (todos os pais brancos?)colonialista que tratava os pretos com racismo.
Cristóvão Aguiar (Beja Santos), põe um enfermeiro(todos os enfermeiros?)a dar pisadas num prisioneiro e põe crianças brancas e pretas a brincar (tugas e turras?)
Nem Cristóvão, nem Isabela dizem que era norma "para cumprir" aqueles comportamentos.
A discussão sobre Lobo Antunes, sai completamente deste registo.
Foi uma entrevista que concedeu.
Antº Rosinha
MORTE À GUERRA.
Vivam estes grandes escritores.
Da recensão dum livro de Cristovão Aguiar acaba-se com alusões a António Lobo Antunes ...
Já faltou mais para termos neste espaço o ALA agraciado pelos seus exageros ....
Sinal dos tempos ....
António Matos
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