1. Mensagem de Torcato Mendonça, ex-Alf Mil AT Art da CART 2339, Mansambo, 1968/69, com data de 10 de Maio de 2010:
Caro Carlos Vinhal
Obrigado pela info do comentário da 2404.
Como é o teu tempo? Dilata?
Posso estar equivocado. Posso mesmo estar a ler mal. Posso o que quiseres... certo é que resolvi enviar um escrito diferente. Depois de guerras, depois de controversias (não da Série do Blogue), depois disto e daquilo, lembrei-me de algumas "coisas" que dizem.
Desopila, alivia o enjoo, pode ser mezinha e vai em anexo.
Tenho outro anexo. Não vai agora. Um dia segue como Estória de Mansambo que é. Facto a marcar-me para sempre e que escritos de Bolha ou mezinhas do Zé Paz d' Alma, coisa séria e acredita quem quer, não podem aliviar. Quanto mais curar.
Um abraço amigo do
Torcato
AO CORRER DA BOLHA - X
O SACO do ZÉ PAZ d’ALMAS
O Paulinho… Paulito… ou Paulocas. Não era este seu nome. Lá por casa e por alguns amigos, era assim chamado.
O padrinho, homem de posses e mau génio, tinha-o baptizado por Paulino. Nem mais, Paulino como o avô do padrinho. Homem velho, bigodes retorcidos, corrente de oiro na jaqueta, olhar a bater fundo e, ainda a custo, montador de alguma das incautas donzelas que, de quando em vez, para a família Paulino iam trabalhar nas artes domésticas.
Por mor disso acontecia, raramente agora, a interrupção do ciclo de alguma. Raios e coriscos se levantavam pela Maria, a olheira de tudo, velha que já fora donzela e tudo topava. A governanta-mor Maria, antes de o inchaço aparecer, falava de pronto com o avô do padrinho do Paulinho, Paulito ou Paulocas que, como o afilhado, se chamava Paulino.
- Patrão Paulino aquela moça coitada, a filha da Alzira lavadeira, parece que devia consultar o Dr. Leónidas.
- Trata disso e eu logo falo com ele. Respondia, enrolando as pontas da farta e já alva bigodaça, o velho.
Foi crescendo o Paulinho, Paulito ou Paulocas e era tratado como se fosse filho do padrinho, solteirão empedernido, com mulher de casa posta na vila, mais amante, contudo, das cartas e de festanças do que de donzelas.
Cresceu rápido o afilhado Paulino e nos estudos nada deu. Nada.
Um dia foi às sortes e passado um ano, nem tanto, abalou para um quartel.
Por lá andou aos saltos, cambalhotas e “desenfianços”. Só que quartel militar é diferente e foi apanhando “porradas” como diziam, em violação às regras ditas e impostas por oficiais e sargentos, mais estes que aqueles, com caras escanhoadas e marmóreas, modos bruscos e que berram de pronto. Até pareciam terem olhares na nuca.
Não estava, a isso, habituado o Paulino afilhado. Tanta levou que um dia se viu despachado para uma colónia, não penal mas de lugar, de lugar ou província que diziam ser o ultramar. Como era franzino ou fraco de aspecto, ficou logo na que mais perto se encontrava: - Guiné.
Tenta o padrinho a cunha, o pedido, a troca mesmo em paga a outro e nada. Nada livra o afilhado da ida até terras distantes.
Abalou num barco, o Paulino e uns centos de mancebos Tejo abaixo, com muitos lenços, deles e de quem em terra ficava, a abanarem despedidas e a lançarem desejos de regressos rápidos.
Lá se foi o Paulinho, Paulito ou Paulocas como a velha Maria ainda o tratava.
O avô do padrinho, para mais um desgosto deste, finou-se pouco depois. Não de desgosto. Não. Finou-se de esforço de “caça”, num final de quente tarde, a meio do Verão em pleno Agosto.
Por lá, pela Guiné, andava o Paulino, o soldado Paulino, esperto e desenfiado, mesada certa ida da Metrópole. Talvez isso tenha contribuído para mais uma ou duas “porradas” a cortarem vinda de férias. Fartou-se, definitivamente, daquela gente da tropa, daquele calor e mosqitagem de ferroada fácil.
Fartou-se daquilo tudo e tudo fazia para esquecer.
Um dia voltou. Finalmente.
Voltou diferente o Paulino. Mais magro, macilento, olhar afundado e ausente, sorriso apagado.
O velho Dr. Leónidas tentou tratá-lo mas desistiu.
- O tempo cura isto, sentenciou.
Não curou nada. Certas noites, levantava-se em sobressaltos e em muitos dias com toda a gente praguejava.
O padrinho aguentou, aguentou e um dia despachou-o para clínica recomendada. Passam uns tempos e as notícias eram ou pareciam ser boas. Diziam os clínicos: - O Paulino recupera bem. Estas eram as noticias que acompanhavam a conta mensal.
O padrinho e a Maria, já a andar de tripé e bengala, acreditavam.
A Antónia, já entrada na idade e substituta de Maria governanta-mor, não acreditava. Tanto assim que foi falar, em segredo claro, com o Zé Paz d’Almas. Agradeceu a visita e confiança nele depositada, benzeu, lançou água benta, fez rezas, mezinhas e disse:
- Aquilo acontece Tóina. Acontece. Tenho visto casos assim. Passa. Passa de certeza e eu vou tratar dele. Se não passar há a corda e o saco.
- A corda e o saco? Diz aflita, benzendo-se a Antónia.
- Sim mulher.
Se ele voltar a ter aflições, falar sozinho, pesadelos no sono, tens que o convencer a usar o saco.
A Antónia olha desconfiada, ouve com atenção o Zé Paz d’Almas e, antes de sair deixa-lhe um cesto com uns mimos.
Passa o tempo e volta a Antónia.
Conversa com Zé Paz d’Almas. Retorna a casa com o cesto, a corda, o saco benzido e todas as recomendações de convencimento do curandeiro.
Anos depois, não muitos, o Paulino, o Senhor Paulino, quando sente qualquer aflição, tormento ou contrariedade a virem, desce à cave, abre a porta, ao lado da porta da adega e agarra o saco.
Calmamente abre um pouco a boca do dito e mete lá a sua. Fala então, desabafa os tormentos e, diz a Antónia, por vezes até urra.
Rapidamente ata-o com a corda e volta a pendurá-lo.
Sai aliviado, sorridente mesmo.
Zé Paz d’Almas morreu recentemente e a Antónia está velha demais. Dizem.
Também parece haver muitos sacos e substitutos. Dizem.
Zés Paz d´Almas parece que não. Dizem.
Dizem cada uma… mas dizem.
NOTA: qualquer comparação, de alguém com o Paulino é pura maldade. Não sei dele. Não deve ter telemóvel e não sei onde vive.
__________
Nota de CV:
Vd. último poste da série de 16 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6404: Ao correr da bolha (Torcato Mendonça) (9): Páscoa de 1968
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
3 comentários:
Brilhante, fantástico, esmagador!
E mais não digo a não ser para enviar-te camarigo Torcato, um grande abraço.
Caro Torcato
A quem queres convencer que te inspiraste do 'nada'?
Não achas que já vivemos o suficiente para 'reconhecer' um qualquer 'Paulino' em gente que conhecemos?
O teu Zé Paz d'Almas era um bom psicólogo e, pelos vistos, bem mais barato e eficaz...
Um abraço
Hélder S.
Amigo Torcato
Gostei imenso.
Até gosto de sentir a lentidão da minha compreensão a percorrer a estória.
Subjectividade, quanto baste.
UM abraço meu amigo
Felismina Costa
Enviar um comentário