Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
segunda-feira, 17 de maio de 2010
Guiné 63/74 - P6412: José Corceiro na CCAÇ 5 (11): Boas recordações de militares da CCAÇ 5, Canjadude - O Tripa
1. Mensagem de José Corceiro* (ex-1.º Cabo TRMS, CCaç 5 - Gatos Pretos , Canjadude, 1969/71), com data de 11 de Maio de 2010:
Amigos Luís Graça, Carlos Vinhal, J. Magalhães.
Grato pela atenção, que possa ser dada à recordação dum militar da CCAÇ. 5, que era Nativo, O “Tripa”.
Um abraço
José Corceiro
José Corceiro na CCAÇ 5 (11)
BOAS RECORDAÇÕES DE MILITARES DA CCAÇ 5, CANJADUDE
Há de facto memórias que povoam o nosso consciente adormecido, que ao serem estimuladas, desencadeiam nas nossas lembranças, processos de regressão às nossas vivências na Guiné, e nos trazem à mente acontecimentos que recordamos carinhosamente com saudade, (sentimentos de afectividade) ainda que com dubiedade… pois no mesmo local também foram vividos momentos angustiantes e com legítima revolta.
Quando cheguei à CCAÇ 5, Canjadude, (rendição individual, Companhia de Nativos) o dia 13 de Junho de 1969, ganhei logo a estima, (quase que poderei dizer que houve empatia mutua), de um militar nativo, que sem me conhecer, se dirige a mim respeitosamente, mas com galhofice, mais ou menos nos seguintes termos:
- Bu tchiga na és Canjadude cá eh periquito bu sibi dirito salta nha mi ombro (acabas de chegar a Canjadude, ainda és periquito, salta no meu ombro).
Foi mais ou menos isto que disse, mas ao confrontar-se com a minha expressão facial a denotar ignorância, perante tal monólogo e estranhar a minha reacção de acanhamento e silêncio, rematou logo de seguida:
- Nosso Cabo, apresenta-se o teu “Alferum Tripa” um soldado às tuas ordens!
Entabulámos diálogo e constato, logo ali, que o “Tripa”, como ele dizia ser o seu nome, falava razoavelmente bem português e gostava de cerveja e particularmente de vinho. Sabia o seu nome verdadeiro, que já não me lembro, pois todos o chamávamos por “Alferum Tripa”e em idade devia estar próximo dos 27, 28 anos.
FOTO 1 > Corceiro e o “Tripa”. Quando cheguei a Canjadude, na parada, são visíveis atrás de nós duas “Tabancas”, sendo uma armazém de material e a outra o posto clínico, posteriormente desapareceram.
O “Tripa”, era único, distinto de todos os militares Nativos da CCAÇ 5, com o seu comportamento e características, “sui generis”. Tinha uma postura singular perante as adversidades da vida, que não é muito comum no ser humano, assim como era ímpar a conduta de comunhão social, que ele cultivava com todos os militares, quer com os Nativos, quer com os Metropolitanos, com os quais ele preferia relacionar-se e no seio dos quais era estimado. Muitas vezes ficava-me a dúvida, se alguns militares Nativos o ignoravam e marginalizavam, afastando-o da sua convivência, ou se era ele que voluntariamente se excluía desses relacionamentos. Era um homem que aparentemente não manifestava conflitos nem distúrbios psíquicos (parecia não haver exigências internas contrárias) e as desavenças interpessoais que surgiam do relacionamento com os elementos do meio circundante, sabia contorná-las com dose bem aferida de humor e, às vezes até com diplomacia.
O ”Tripa”, aparentava ter o dom e a bem-fadada sina, de estar sempre em paz com a vida que vivia, despreocupado, sem exigências, sempre alegre e a rir, ar brincalhão, disponível para socorrer o seu próximo, sempre interesseiro quando a migalha fosse alguma sorvedura de bebida alcoólica. Tinha sempre na ponta da língua, reposta enquadrada com humor, hilaridade e correcção, para dar troco às questões de controvérsia com as quais era confrontado, no dia-a-dia, sem nunca distinguir cor de pele, divisa ou galão, a todos respondia com descontracção, a mesma espontaneidade e contenção, sendo parcimonioso quando o momento o aconselhava. Era de etnia Papel, vivia sem família nenhuma em Canjadude, embora dissesse que tinha mulheres e filhos.
Conforme a circunstância, por vezes arranchava-se no Aquartelamento, outras vezes não, agia segundo as conveniências do momento e, qualquer toca ou terreiro eram para ele um palácio.
FOTO 2 > Fui dar com o “Tripa” a cozinhar em Nova Lamego, à sombra do”Poidão”. Um “Chalé” de cinco estrelas, visto ser um lugar sagrado dos Nativos.
Não tinha a mínima réstia de complexo devido à cor da sua pele, mais lhe servindo a mesma, para fazer humor e chacota. Segundo dizia, trabalhou desde criança até ingressar no Exército, como estivador no Porto de Bissau onde se instruiu e tirou o curso da escola da vida, a carregar e descarregar barcos. Não sabia ler, e tinha uma imaginação fértil.
FOTO 3 > O Costa, Operador Cripto, que ao terminar a comissão ficou a viver em Nova Lamego, a escrever uma carta do “Tripa”.
Logo nos meus primeiros dias de estadia em Canjadude, o “Tripa”, muito convicto, com um ar de ingenuidade, mas apresentando-se seguro que está a convencer o mundo inteiro, diz-me:
- Nosso cabo, (era assim que ele me tratava) quando eu nasci a minha pele era completamente branca, só ficou preta já eu tinha 18 anos. Eu tive um acidente de trabalho quando estava a ser construída a auto-estrada entre Lisboa e Vila Franca de Xira, eu era o responsável pelo aquecimento dos bidões de alcatrão, e num descuido meu, caí para dentro dum bidão cheio, ficando unicamente por cobrir de alcatrão, as plantas dos meus pés, essa a razão porque ainda hoje são brancas. Foi após este acaso na minha vida e, para melhor ambientar o meu corpo, que ficou com a pele que o cobre toda negra, que resolvi imigrar para a Guiné, onde me tenho dado muito bem.
Noutra altura, digo eu para o “Tripa”:
- Tu tens as mulheres em Bissau, não seria mais prático que elas estivessem aqui a viver contigo na Tabanca?
Resposta imediata dele, como se estivesse à espera da minha observação:
- Isso é que nunca, eu assim vou-me servindo com as mulheres de todos e ninguém vê, nem mesmo Alá, porque eu fico de costas. Quando o nosso cabo quiser bajuda, é só dizer…
Eu ainda o tentei convencer que ele estava vulnerável e exposto à mesma fragilidade, por não estar a dar assistência e companheirismo às esposas, como devia, mas ele argumentou que a água lavava tudo, só não limpava o alcatrão da pele dele, porque se tinha demorado a banhar-se após ter caído para o bidão.
FOTO 4 > Foto que tirei ao “Tripa” numa operação no mato.
Muitas vezes, em saídas para o mato, em que eu ia e por coincidência também saia o Grupo de Combate em que o “Tripa” estava integrado, ele disponibilizava-se para me levar algum material, para me aliviar o peso e, algumas vezes oferecia-se para me transportar no pescoço dele, para passar ribeiros duma margem para a outra, (na época das chuvas) pois ele tinha de altura mais de 1,80m, e era uma maneira de eu passar sem molhar os pés. O interesse dele por estes préstimos, era a esperança que eu lhe pagasse uma cerveja ou lhe desse o copo de vinho das refeições, que ele adorava e eu raramente bebia, porque o “vinho” eram mais poses do que água e, sempre que eu não trocava o vinho pela fruta a outro camarada (porque não havia fruta) ele lá estava às horas das refeições, para poder apanhar alguma gota de vinho, o que lá ia acontecendo, ou de um, ou de outro militar.
Há uma ocasião em que o “Tripa”, se prontificou a lançar-se numa aventura irreflectida e perigosa, só para beneficiar de mais uns copitos de vinho. A culpa para esta atitude irresponsável, não foi tanto só do “Tripa”, ele acima de tudo quis ser prestável. Após a chegada de uma operação do mato, ao conferir-se o material de Transmissões, verificou-se que faltava um emissor/receptor - AVP1 (Banana). O nosso amigo Nora, de Transmissões, que tinha saído na operação, quando chegou ao aquartelamento e se contabilizou o material que se usou, verificou-se que faltava um AVP1. Entretanto, o Nora, lembrou-se onde tinha deixado, por esquecimento o aparelho, a cerca de sete ou oito quilómetros de distância de Canjadude, para os lados do Cheche. Não se deu conhecimento do facto, a não ser a uns quatro ou cinco elementos da nossa Secção. Posto isto, alguém sugeriu que a solução do problema podia estar nas mãos do “Tripa”, visto que ele estava no momento e no local onde se deixou por esquecimento o aparelho.
Ao tentar um esclarecimento junto do “Tripa”, este disponibilizou-se de imediato para recuperar o aparelho e, insensatamente a sugestão dele foi aceite. Vai daí, o nosso amigo, camuflado de caçador incógnito, lançou-se, quase ao anoitecer, à aventura da reconquista do AVP1. A missão foi cumprida com alto grau de eficiência e, pouco mais passaram de três horas, após o início da aventura, já o “Tripa” dava sinais de satisfação, com o seu troféu de caça embandeirado e a reclamar o prémio da merecida recompensa.
Seja-me permitido que inclua neste artigo, com a devida vénia, uma passagem do “Poste 5987”, cujo artigo foi enviado pelo nosso amigo José Martins, em que o Sr. Coronel, Pacífico dos Reis, a determinada altura diz o seguinte:
“ Certa vez, [Em Canjadude] quando fazia a minha ronda nocturna senti um ruído, como que um gorgolejar, atrás de uma porta. Afastei-a e encontrei sentado no chão um militar africano bebericando uma cerveja. Não resisti e perguntei-lhe porque estava a beber sendo ele islamizado. Depois de se pôr em sentido, dum salto, a resposta veio célere: - “Meu capitão, Alá não me vê atrás da porta”.”
A personagem deste episódio foi o “Tripa”, que estava a beber uma cerveja no Refeitório das Praças e apercebeu-se, pelos orifícios da parede (esteira de bambu) que o Sr. Capitão se estava a dirigir para aquele local. O “Tripa” aproveitando a porta de ligação que existia entre o Refeitório e a Caserna, refugiou-se nesta, onde o Sr. Capitão o encontrou e questionou. Eu estava em Canjadude, na época do acontecimento.
FOTO 5 > O “Tripa” no refeitório, durante a noite, à espera da hora para o render das sentinelas. Vê-se atrás, a porta da caserna onde se refugiou e, o Sr. Capitão, Pacífico dos Reis, o apanhou a beber a cerveja.
O dia 27 de Outubro de 1969, houve coluna de reabastecimento a Nova Lamego, foi muito azarada, pois no regresso tiveram nove furos nos pneus das viaturas. O “Tripa”, que também ia na coluna, caiu duma viatura em andamento. Ficou muito mal tratado, pois fracturou três ou quatro costelas, sofreu escoriações por todo o corpo, contusões e edemas nos membros, e um ou outro ferimento mais profundo. Mesmo no estado lastimável em que se encontrava, todo empanado, não perdia a oportunidade e boa disposição e dizia, que se tinha acidentado, num momento menos feliz da sua vida, porque Alá fechou os olhos e ia adormecendo, de forma que não pôde ampará-lo e protegê-lo, na queda.
O “Tripa”, é um dos muitos militares Nativos que me despertam saudades, estou a enveredar esforços no sentido de o poder descobrir, caso ainda seja vivo, pois já localizei dois Gatos Pretos em Bissau e já tenho algumas fotos recentes de Canjadude.
Para todos um abraço
José Corceiro
Foto 6 > Dia 3 de Março de 1970, houve uma grande operação no mato, ficando pouco pessoal no Aquartelamento. Tive que fazer serviço durante a noite, para acompanhar a distribuição dos homens de sentinela, (homens das fotos) pelos postos de vigia. Da direita para a esquerda: Jorge, Saldanha, “Tripa”, Romano e (?).
Foto 7 > Da direita para a esquerda: “Tripa”, Saldanha, Romano e (?).
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 5 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6320: José Corceiro na CCAÇ 5 (10): Dia de Fanado em Canjadude
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3 comentários:
Caro José Corceiro
Esse teu "Tripa" era de facto um homem com muita sabedoria da vida.
Um caso notável, sem dúvida.
Abraço
Hélder S.
Vou organizar a listagem dos africanos para se localizar o nome verdadeiro do "Tripa".
É um personagem de que me recordo vagamente.
Não era fã do Raul Solnado?
José Martins
Amigo José Martins
Tanto quanto me lembro, não posso precisar qual o humorista que o “Tripa” apreciava, mas penso não estar enganado se disser que ele tinha aptidões circenses.
Um abraço
José Corceiro
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