1. Mais uma Estória de Mansambo, enviada pelo nosso camarada Torcato Mendonça* (ex-Alf Mil da CART 2339 (Mansambo, 1968/69) em mensagem datada de 11 de maio de 2010.
ESTÓRIAS DE MANSAMBO II - 21
ZUMBIDOS em NOITE de VERÃO
O clarão, o som, a força bruta a atirá-lo de encontro ao fundo da vala.
Cabeça à roda, ouvidos a estalarem, olhos a nada verem, só, só aquela mancha de cor forte, entre o amarelo dourado e o esverdeado.
Tudo à volta roda. Sente que o puxam e deixa-se arrastar. Não sabe o que sente. Não sabe nada do que aconteceu. Parece que tudo desabou.
Molham-lhe a cabeça e a água escorre pelo tronco nu, vai activando o cérebro e aos poucos sente que regressa.
Regresso de onde? Quer falar e nenhum som sai ou se saírem, talvez, sejam sons de confusão.
Tocam-lhe e sente. Está confuso, nada ouve, nada vê. Tem vontade de ir para o fundo, vontade de descer.
Quanto tempo se passou, segundos, minutos? Quantos?
Lentamente, aos poucos, começa a passar as mãos pelos olhos, pela boca, pelos ouvidos. Tenta levantar-se e ajudam-no. O calor de uma chama qualquer vem até ele, só que não vê. Metem-lhe um cigarro na boca e suga-o sofregamente.
Aos poucos sente um ruído, um zumbido diferente, um som que não consegue definir. Sente somente que os pensamentos voltam lentamente e a confusão se vai. Os zumbidos vão-se transformando e o pensamento voltando.
Começa a saber onde se encontra, a sentir o que o rodeia, a tocar objectos e a virem sons mais perceptíveis. A mancha que lhe turva a visão continua, mais suave, mas ainda lá está.
- Apanharam-me. Lixaram-me, espera, espera um pouco mais.
Sente aos pés o morteiro sessenta e uma caixa de granadas. Agarra-os e sai.
Apanharam-me sacanas… e sai uma e outra e mais outra granada… começa a ter noção do espaço, da situação. Do abrigo o guarda-costas grita, chama-lhe doido e, dizem-lhe depois, nomes piores. Ouve som que não consegue definir e de repente vê a chama da saída da granada pela boca do morteiro.
Vê. Vê e talvez tenha sorrido. Rebola para a vala e o abrigo dos dilagramas e dos sessenta. O morteiro está a ferver. As mãos estão queimadas e agora sente o ferrete da dor no peito. Que importa se já vai vendo, difuso, enevoado mas vê e começa a ouvir, a sentir as palavras do Serra e ali ficam naquele buraco a dar resposta ao inimigo que veio sem ser convidado. Veio para arrasar tudo. Quantas horas já se passaram? Não sabe e isso que interessa.
Amanhece e ainda se digladiam.
Entra no abrigo grande e tudo está bem. Parece que por ali passou um ciclone.
- Os cabrões não partem porque querem levar os mortos e feridos.
As munições começam a escassear, as dores e o cansaço a vir. Parece que tudo, na parte dele, da parte dos militares a que pertence está bem.
Vieram caçar-nos e foram caçados.
Aos poucos tudo começa a acalmar, lentamente os tiros soam espaçadamente e as armas pesadas já não se ouvem.
Estendem-lhe uns calções e tapa a nudez. Os abrigos comunicam entre eles e tudo está bem. Felizmente e da tabanca vêm sons igualmente animadores.
Tenta calçar as botas mas tem os pés lixados e sai de chinelos.
Apontam-lhe o buraco da morteirada junto à vala. Encolhe os ombros e sobe-lhe a raiva pelo que lhe aconteceu.
Voltam a chamá-lo. Vai um pouco mais à frente, junto da segunda fiada de arame, está enorme poça de sangue, metade de um cinturão e uma Ceska num coldre. Vêem-se sinais de arrastarem o corpo do dono dos despojos. Graduado de certeza, melhor ainda. Levanta os braços ao alto e ri, ri alarvemente em hino à morte ou à falta de sorte e lança ao ar palavras de ofensa. Tempos loucos.
Doem-lhe os ouvidos, os pés, as mãos. Dói-lhe tudo e ainda ri, riso alarve.
Que noite de merda, diz e afasta-se….
Ainda a sente. Basta com ele falarem.
Mansambo, 28 de Junho de 1968
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Notas de CV:
(*) Vd. poste de 17 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6410: Ao correr da bolha (Torcato Mendonça) (9): O saco do Zé Paz D'Almas
Vd. último poste da série de 13 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 – P6381: Estórias de Mansambo II (Torcato Mendonça, CART 2339) (20): Choro na noite
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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