segunda-feira, 17 de maio de 2010

Guiné 63/74 - P6410: Ao correr da bolha (Torcato Mendonça) (10): O saco do Zé Paz D'Almas

1. Mensagem de Torcato Mendonça, ex-Alf Mil AT Art da CART 2339, Mansambo, 1968/69, com data de 10 de Maio de 2010:

Caro Carlos Vinhal
Obrigado pela info do comentário da 2404.
Como é o teu tempo? Dilata?

Posso estar equivocado. Posso mesmo estar a ler mal. Posso o que quiseres... certo é que resolvi enviar um escrito diferente. Depois de guerras, depois de controversias (não da Série do Blogue), depois disto e daquilo, lembrei-me de algumas "coisas" que dizem.

Desopila, alivia o enjoo, pode ser mezinha e vai em anexo.
Tenho outro anexo. Não vai agora. Um dia segue como Estória de Mansambo que é. Facto a marcar-me para sempre e que escritos de Bolha ou mezinhas do Zé Paz d' Alma, coisa séria e acredita quem quer, não podem aliviar. Quanto mais curar.

Um abraço amigo do
Torcato


AO CORRER DA BOLHA - X

O SACO do ZÉ PAZ d’ALMAS


O Paulinho… Paulito… ou Paulocas. Não era este seu nome. Lá por casa e por alguns amigos, era assim chamado.

O padrinho, homem de posses e mau génio, tinha-o baptizado por Paulino. Nem mais, Paulino como o avô do padrinho. Homem velho, bigodes retorcidos, corrente de oiro na jaqueta, olhar a bater fundo e, ainda a custo, montador de alguma das incautas donzelas que, de quando em vez, para a família Paulino iam trabalhar nas artes domésticas.

Por mor disso acontecia, raramente agora, a interrupção do ciclo de alguma. Raios e coriscos se levantavam pela Maria, a olheira de tudo, velha que já fora donzela e tudo topava. A governanta-mor Maria, antes de o inchaço aparecer, falava de pronto com o avô do padrinho do Paulinho, Paulito ou Paulocas que, como o afilhado, se chamava Paulino.

- Patrão Paulino aquela moça coitada, a filha da Alzira lavadeira, parece que devia consultar o Dr. Leónidas.

- Trata disso e eu logo falo com ele. Respondia, enrolando as pontas da farta e já alva bigodaça, o velho.

Foi crescendo o Paulinho, Paulito ou Paulocas e era tratado como se fosse filho do padrinho, solteirão empedernido, com mulher de casa posta na vila, mais amante, contudo, das cartas e de festanças do que de donzelas.

Cresceu rápido o afilhado Paulino e nos estudos nada deu. Nada.

Um dia foi às sortes e passado um ano, nem tanto, abalou para um quartel.

Por lá andou aos saltos, cambalhotas e “desenfianços”. Só que quartel militar é diferente e foi apanhando “porradas” como diziam, em violação às regras ditas e impostas por oficiais e sargentos, mais estes que aqueles, com caras escanhoadas e marmóreas, modos bruscos e que berram de pronto. Até pareciam terem olhares na nuca.

Não estava, a isso, habituado o Paulino afilhado. Tanta levou que um dia se viu despachado para uma colónia, não penal mas de lugar, de lugar ou província que diziam ser o ultramar. Como era franzino ou fraco de aspecto, ficou logo na que mais perto se encontrava: - Guiné.

Tenta o padrinho a cunha, o pedido, a troca mesmo em paga a outro e nada. Nada livra o afilhado da ida até terras distantes.

Abalou num barco, o Paulino e uns centos de mancebos Tejo abaixo, com muitos lenços, deles e de quem em terra ficava, a abanarem despedidas e a lançarem desejos de regressos rápidos.

Lá se foi o Paulinho, Paulito ou Paulocas como a velha Maria ainda o tratava.

O avô do padrinho, para mais um desgosto deste, finou-se pouco depois. Não de desgosto. Não. Finou-se de esforço de “caça”, num final de quente tarde, a meio do Verão em pleno Agosto.

Por lá, pela Guiné, andava o Paulino, o soldado Paulino, esperto e desenfiado, mesada certa ida da Metrópole. Talvez isso tenha contribuído para mais uma ou duas “porradas” a cortarem vinda de férias. Fartou-se, definitivamente, daquela gente da tropa, daquele calor e mosqitagem de ferroada fácil.

Fartou-se daquilo tudo e tudo fazia para esquecer.

Um dia voltou. Finalmente.

Voltou diferente o Paulino. Mais magro, macilento, olhar afundado e ausente, sorriso apagado.

O velho Dr. Leónidas tentou tratá-lo mas desistiu.

- O tempo cura isto, sentenciou.

Não curou nada. Certas noites, levantava-se em sobressaltos e em muitos dias com toda a gente praguejava.

O padrinho aguentou, aguentou e um dia despachou-o para clínica recomendada. Passam uns tempos e as notícias eram ou pareciam ser boas. Diziam os clínicos: - O Paulino recupera bem. Estas eram as noticias que acompanhavam a conta mensal.

O padrinho e a Maria, já a andar de tripé e bengala, acreditavam.

A Antónia, já entrada na idade e substituta de Maria governanta-mor, não acreditava. Tanto assim que foi falar, em segredo claro, com o Zé Paz d’Almas. Agradeceu a visita e confiança nele depositada, benzeu, lançou água benta, fez rezas, mezinhas e disse:

- Aquilo acontece Tóina. Acontece. Tenho visto casos assim. Passa. Passa de certeza e eu vou tratar dele. Se não passar há a corda e o saco.

- A corda e o saco? Diz aflita, benzendo-se a Antónia.

- Sim mulher.

Se ele voltar a ter aflições, falar sozinho, pesadelos no sono, tens que o convencer a usar o saco.

A Antónia olha desconfiada, ouve com atenção o Zé Paz d’Almas e, antes de sair deixa-lhe um cesto com uns mimos.

Passa o tempo e volta a Antónia.

Conversa com Zé Paz d’Almas. Retorna a casa com o cesto, a corda, o saco benzido e todas as recomendações de convencimento do curandeiro.

Anos depois, não muitos, o Paulino, o Senhor Paulino, quando sente qualquer aflição, tormento ou contrariedade a virem, desce à cave, abre a porta, ao lado da porta da adega e agarra o saco.

Calmamente abre um pouco a boca do dito e mete lá a sua. Fala então, desabafa os tormentos e, diz a Antónia, por vezes até urra.

Rapidamente ata-o com a corda e volta a pendurá-lo.

Sai aliviado, sorridente mesmo.

Zé Paz d’Almas morreu recentemente e a Antónia está velha demais. Dizem.

Também parece haver muitos sacos e substitutos. Dizem.

Zés Paz d´Almas parece que não. Dizem.

Dizem cada uma… mas dizem.


NOTA: qualquer comparação, de alguém com o Paulino é pura maldade. Não sei dele. Não deve ter telemóvel e não sei onde vive.
__________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 16 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6404: Ao correr da bolha (Torcato Mendonça) (9): Páscoa de 1968

3 comentários:

Joaquim Mexia Alves disse...

Brilhante, fantástico, esmagador!

E mais não digo a não ser para enviar-te camarigo Torcato, um grande abraço.

Hélder Valério disse...

Caro Torcato

A quem queres convencer que te inspiraste do 'nada'?
Não achas que já vivemos o suficiente para 'reconhecer' um qualquer 'Paulino' em gente que conhecemos?
O teu Zé Paz d'Almas era um bom psicólogo e, pelos vistos, bem mais barato e eficaz...
Um abraço
Hélder S.

Anónimo disse...

Amigo Torcato

Gostei imenso.

Até gosto de sentir a lentidão da minha compreensão a percorrer a estória.

Subjectividade, quanto baste.

UM abraço meu amigo

Felismina Costa