Golpe-de mão à “casa-de-mato” de Cussondome
Entretanto mais uma operação se fez. Esta ao refúgio inimigo de Cussondome.
Estávamos a 18 de Junho de 1965, portanto 8 dias passados da operação a Queré (a primeira) e com 23 dias de Guiné.
Periquitos, mas já com ares de papagaios.
Desta vez e dado que o refúgio era considerado forte, o nosso efectivo foi de 2 Grupos de combate da 816, mais, e sempre (nos primeiros tempos em Bissorã), os experimentados “Lordes” (Grupo de Comandos com o efectivo de perto de um pelotão) da CART. 643.
A zona de tal refúgio, era muito difícil, pois, além de denso mato, era infestada de terroristas, os quais primavam também por serem bons atiradores e especialistas em subirem às árvores, sobretudo, para de lá fazerem fogo. A presença de sentinelas era também tida em conta.
Foi das operações mais problemáticas; a única, que me lembre, em que nos vimos cercados numa emboscada aquando da nossa retirada.
Embora com poucos homens e colocados de forma esporádica no mato, o inimigo ofereceu muita resistência, pois uma vez colocados nas árvores, estavam bem protegidos e ao mesmo tempo a detectarem-nos com facilidade.
Bem nos fartamos de fazer rajadas e de lançar granadas de “bazuca” na direcção das árvores, mas o “cantar” das pistolas-metralhadoras inimigas não acabava.
Esta terrível emboscada e chamo-lhe terrível, pois embora o efectivo inimigo fosse reduzido ao que se supôs, e o nosso andasse à volta de 80 homens, o efeito de um cerco, feito para mais por quem conhecia bem o terreno, é sempre de temer, pois ao abrigarmo-nos numa direcção, oferecemos, obviamente, o corpo à direcção oposta.
Como muitas das vezes acontecia, levantamo-nos ainda debaixo de fogo e fomos avançando, terminando o contacto com uma morteirada acertada. O morteiro normalmente era como os morteiros (foguetes) cá, que põem fim à festa.
Esta emboscada aconteceu já no regresso da operação, o que era vulgar, uma operação que não surtiu o efeito desejado, pois, o guia, como muitas vezes iria acontecer, não quis colaborar, pretextando desconhecimento ou outra coisa qualquer e fazia-nos andar ali às voltas até sermos detectados. Depois as contas eram ajustadas.
Acabamos por ser detectados por presumíveis sentinelas e daí eles terem abalado e preparado a emboscada do tal cerco quando já regressávamos.
O que se fez de positivo, foi queimarmos algumas moranças, previamente abandonadas por pessoal terrorista ou pró-terrorista. Da “casa-de-mato” nem o cheiro.
Ao abandonarem as moranças não o fizeram sem antes fazerem algumas rajadas em nossa direcção, daí uma resposta pronta nossa também.
Ainda assim um casal de velhotes nativo, impossibilitados de fugirem, vergados aos muitos anos de existência e bem marcados nos seus rostos a vida de agrura que levaram e… ainda levavam, tiveram ali o seu fim. Algumas rajadas disparadas em resposta ao fogo inimigo vindo da Tabanca levaram as balas a encontraram no seu trajecto um casal de velhotes que não puderam fugir.
Quadro pungente: separados alguns metros, quando abatidos, arrastaram-se um para o outro morrendo abraçados numa poça de sangue. Os sentimentos não têm cor, cultura ou religião.
Resultado duma guerra fria, traiçoeira, invisível, sem olhos, sem cor… sem regras, letal.
Estes velhos indígenas não eram certamente terroristas na verdadeira acepção do termo mas colaboravam com eles. Colaborariam? Como... e em que sentido? Vivendo com “turras”, “turras” eram… era a sina. Que raio de jogo este desta guerra.
Como já disse noutras histórias atrás, nestas alturas, não éramos seres humanos a pensar, mas sim selvagens ou coisa parecida. E essa até era se calhar a melhor maneira de pensar, ali.
Perto da morança dos velhotes, um “turra” jazia também, e este sim, era-o mesmo, notava-se bem pelo seu aspecto e de canhangulo na mão.
Fortemente atingido por estilhaços supostamente de granadas de morteiro, ali ficou pronto a ser servido aos macabros e sempre por perto, abutres.
Captura bélica: 2 Canhangulos!… carregados!
O que poderia ser um turra de canhangulo a “tirar-nos uma foto”.
O canhangulo (*) era quase como uma arma artesanal, de carregar pela boca tudo servia para isso: pregos, vidros, pedaços de ferro e outros metais, etc.
Arma desfasada dos tempos, mas quem fosse atingido de perto…
*) O canhangulo foi a primeira arma usada pelos turras para além da inconsequente catana; depois veio a Mauser, depois a PPSH (vulgo costureirinha) e a Thompson (um balázio de 11,7 mm. de diâmetro), e os fornilhos, a kalashnikov, as minas anti-pesssoais e anti-carro, o helicóptero (?)
O Lança Granadas Foguete (RPG), - ou lança-rockets como lhe chamávamos - o canhão e finalmente os mísseis terra-ar “Strella”. Isto ao longo do tempo de 11 anos de guerrilha.
Nota: este (*) é um acréscimo à escrita e feito “à posteriori” já se vê, pois quando escrevi as minhas memórias, estas então feitas no tempo e no lugar (1965-67), a arma mais poderosa que se conhecia no inimigo era a metralhadora anti-aérea – apanhamos uma mais tarde, para além, claro, das pistolas e espingardas metralhadoras, das minas anti-pessoal e anti-carro e o do Lança Granadas Foguete (RPG). O canhão, outras armas mais desenvolvidas e sofisticadas e os mísseis, surgiriam depois.
Falando ainda da dita emboscada, com o cerco inimigo a levar-me a proteger-me atrás de um baga-baga. Que sorte, este ali perto!
Aos primeiros tiros o baga-baga ficou entre mim e os tiros inimigos. Dois mais parceiros, um deles o infortunado do Furriel Silva que em Agosto seguinte seria morto em combate na estrada Olossato- K3, estavam comigo.
Ao atirarmo-nos para trás do baga-baga houve forte choque de cabeças (a minha e a de outro), logo esquecido. Havia mais em que pensar ali, afinal.
Depois os tiros começaram também a surgir do outro lado e depois ainda de outro lado isto é, vinham de toda a volta. Quando vi que era assim, cá para mim, disse. “É desta”.
O nariz até furava o chão par ver se protegia melhor a cabeça no intervalo de 2 rajadas de G3.
Por sorte o baga-baga já não era habitado pois se o fosse ainda tínhamos as ferroadas daquela avermelhada térmita de tenazes á cabeça. Era o tributo a pagar por abuso de aproveitamento de casa alheia. Quantas ferroadas!
Como sempre, e perante o olhar suspeito dos habitantes de Bissorã, chegamos em apoteose. O regresso, ou essa não fosse palavra sagrada em guerra, era sempre em festa, se bem que desta vez e uma vez mais a satisfação fosse relativa, pois a operação falhou quase totalmente.
Valeu apenas pelo extermínio das moranças em Cussondome privando assim da habitação e haveres aquele pessoal terrorista, com o consequente efeito psicológico, e ainda pela baixa confirmada provocada ao efectivo inimigo.
Os animais domésticos ou domesticáveis faziam-nos companhia em grande alarido (pareciam que tinham sido libertados da guerrilha). Como não tivemos qualquer ferido, sempre foi algum êxito.
Cussondome não passaria ao esquecimento e a gente bem o sabia. Lá continuaria a “casa-de-mato”, graças à habilidade do guia que soube ludibriar a tropa, procedimento esse que lhe custou caro.
A justiça impunha-se, mas… qual justiça? Que raio de guerra!
Como disse, Cussondome não passaria ao esquecimento, pois a gente sabia que uma vez gorados os intentos, teríamos que voltar à carga e o que não devia se fazer esperar muito.
Raramente nos aparecia um guia inteiramente fiel ou que colaborasse incondicionalmente com a tropa. Diga-se entretanto, e em abono da verdade, que os guias, mesmo que se tratasse de ex-“turras” eram bem tratados - pudera! - quer antes quer depois da sua prestação se esta tivesse sido bem sucedida.
Comiam do rancho como qualquer soldado, arranjava-se roupa e, tinham, de um certo modo, uma situação privilegiada. Alguns até ficavam a saber para que servia um par de sapatos. Se se tornassem irreverentes e assim não quisessem colaborar, eram castigados sobremaneira.
As regras eram fáceis de perceber. Tinham portanto dois caminhos diametralmente opostos e extremos à escolha. O que é certo é que a maioria escolhia o do pior sentido, para nós evidentemente.
O guia que era fiel incondicional ao seu povo era até por mim admirado, cá no meu íntimo.
Seguia-se: “Oh Rui (!), olha a nossa cervejinha”. Dizia sempre o Furriel (açoriano) Vieira para mim no regresso, já garantido. Primeiro a cerveja bebida de enfiada até só ficar o vidro na mão.
Depois é que se pousava a arma, tiravam-se as pesadas cartucheiras, tirar do camuflado já com peso multiplicado e que muitas vezes parecia de papelão (água e lama secas e quantas vezes a rechapar).
O banho, a bola e depois, à falta de melhor, partidas uns aos outros que nem sempre acabavam bem.
Nota: As duas fotos aqui reproduzidas de um negro com um canhangulo na mão, foram retiradas de um Site a cujo autor agradeço com a devida vénia.
Um abraço,
Rui Silva
Fur Mil At Inf da CCAÇ 816
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Nota de MR:
Vd. último poste da série em:
6 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P5939: Páginas Negras com Salpicos Cor-de-Rosa (Rui Silva) (9): A minha primeira vez (na guerra)
2 comentários:
Camarada Rui Silva
Gostei muito do teu relato e dos vários considerados nele incluídos.
Os piras eram sempre o bombo da festa a que o morteiro 60, como tu dizes punha normalmente fim.
Um abraço
Juvenal Amado
pertenci à CART 1660 e rendi a tua companhia 816, em Fevereiro de 1966 em Mansoa, vocês eram os piratas do OIO. Recordo como se tivesse sido hoje o momento em que vocês subiam para as viaturas de regresso a Bissau, viaturas essas em que tínhamos acabado de chegar ao local onde ficamos instalados.
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