2. Caros camaradas
Ao fim de 15 meses de serviço militar cumpridos na Metrópole, e quando menos esperava pois não era normal para um Atirador de Infantaria ser mobilizado com esse tempo, surgiu a notícia… o furriel Penha fora “sacado” para cumprir comissão em rendição individual no território da Guiné.
Destino CCaç 5 localizada na zona Leste numa localidade que dava pelo nome de Canjadude e que depois vim a verificar ser uma simples “tabanca”. Digeri a realidade e enfrentei-a mas tive aí a primeira dificuldade de tantas outras, como iriam reagir os meus mais próximos. Com alguma astúcia e optimismo mal disfarçado venci essa primeira batalha.
Embarquei no navio “Niassa” no dia 25 de Março de 1970 e aí através de um 2.º Sargento, penso que contratado, tive a noção exacta de e para onde ia.
Germano Penha com uma criança nativa
Canjadude > Da esquerda para a direita: Condutor (?), furriéis Sá, Penha e Perestrelo, (?), e Srgt Gonçalves
Canjadude > Uma pega de caras pelos briosos forcados da CCAÇ 5
As primeiras impressões quando desembarquei foram de curiosidade e solidão pois fiquei sozinho em pleno cais com uma mala de cada lado, e se não fosse a boa vontade de um l.º Cabo, delegado em Bissau de uma qualquer Companhia, que me levou ao QG no seu jipe, penso que ainda lá estaria. Senti-me a Linda de Suza, aquela da malinha de cartão.
Andam fugidos dos pais e refugiaram-se numa árvore à procura de ninho. Penha e uma beldade de Canjadude
A minha chegada ao QG foi um quadro caricato. Carregado com as malas e as divisas a brilhar, foi criado um cenário em que o principal actor era eu, o “periquito” acabado de chegar e vítima da chacota de todos aqueles veteranos de guerra de “gabinete e ar condicionado”.
Pedi a Deus para o mais rápido possível me levar para o “mato” pois de certeza que não seria um quadro pior.
Regresso a Canjadude de uma operação conjunta heli transportada a Madina de Boé
Lançamento por pára-quedas, de géneros alimentícios, na pista de Canjadude
Até chegar a Nova Lamego, vulgo Gabu, foi um turbilhão de emoções tais como a minha estreia de voo a bordo de um imponente Dakota que ao começar a trabalhar deitava, pelos motores, chispas de fogo e muito fumo. Por fim lá cheguei ao Gabu onde teria que aguardar por uma coluna da minha Companhia para me escoltar até ao destino dos meus próximos dois anos.
Nessa mesma noite em companhia do alferes Alexandre Martins fomos para um café beber umas cervejocas enquanto ele me inteirava daquilo que me esperava. De repente um estrondo enorme, era o primeiro ataque de foguetões a Nova Lamego. Aí pela primeira vez senti o verdadeiro sentido da guerra e pensei “se ainda não chegaste e já estás a “embrulhar”... vai-te preparando…
No dia seguinte lá chegou a coluna que me iria levar a caminho do meu destino. Confesso que ao vê-los chegar cobertos de pó, armados até aos dentes, embrulhados em mosquiteiros camuflados e no meio de uma algazarra constante me assustei, mas depois percebi que aquela euforia tinha alguma razão de ser, no fim eles vinham à cidade ver alguns familiares e falar com as suas “bajudas”. Lá nos pusemos a caminho onde ao fim de cerca de 25Km fui recebido por uma tabuleta com a inscrição “Termas de Canjadude” o que me levou a questionar se não se tinham enganado no caminho.
As três equipas alinhadas no campo de futebol de Canjadude, para dar início a um jogo entre dois Pelotões
Os tempos seguintes foram de reconhecimento e conhecimento do ambiente, dos usos e costumes e das pessoas, e hoje passado tanto tempo sinto-me gratificado por ter aprendido tanto da vida em tão pouco tempo. Foi linda a maneira como nos uniamos e dávamos as mãos nas horas más, e como optimizávamos os bons momentos. Éramos uma família de cerca de trinta pessoas. Aprendi a rir e a chorar quando estavam em causa só valores humanos. Desaprendi o valor material das coisas. Acho que fiquei um homem melhor.
Penha com a bola a fazer passe por cima. Atrás dele o Furriel Moreira
Vivíamos o dia-a-dia sem projectos de futuro. Criámos os nossos lazeres e ainda me recordo dos jogos de “vólei” com que acabávamos os dias. Era a prática habitual antes do duche, mas a grande dificuldade era a constituição das equipas pois ninguém queria pertencer à do capitão, pois o posto dele permitia-lhe quando falhávamos chamar-nos “nabos” ou “azelhas” e bem no fundo dava-nos um certo gozo ganhar aos oficiais.
Era giro e não beliscava minimamente a sã camaradagem que existia e da qual o Capitão Costeira era a pedra basilar.
Os dias iam correndo, uns melhores outros piores e outros sem classificação. Estes aconteciam quando tínhamos contacto directo com aquilo que não queríamos “a guerra”.
Eram as minas, eram as emboscadas, eram os ataques ao aquartelamento, e aí sim ficava sempre um rasto de tristeza e revolta porque às vezes se perdiam vidas e outras ficavam inapelavelmente afectadas. Era um verdadeiro teste ao nosso equilíbrio.
Mas as rotinas voltavam, como voltavam os animados jogos de futebol, as noites loucas no “Chat Noir” (que era uma espécie de “pub” que nós tínhamos construído e decorado com o nosso esforço e que era o verdadeiro ex-libris da CCaç 5 ).
Era aí que nós consolidávamos a nossa união e a nossa amizade recorrendo a uns bons petiscos e a uns bons “whiskys” que por vezes fazia daquele espaço um improvisado dormitório.
Momento de descontracção no Chat Noir em Canjadude. Da esquerda para a direita, sentados na retaguarda: Fur Mil Afonso (Alimentação), Fur Mil Enf Felizardo, (?) e Sarg. Marques. À frente, da esquerda para a direita: Fur Mil Ramos (com cigarro na boca) já falecido; ligeiramente atrás, Germano da Silva, já falecido; Sá, Penha, Moreira e Carmo, com cigarro na mão. O Carmo teve a felicidade de ter sido autorizado a que a esposa fosse a Canjadude passar uns dias com ele. Infelizmente teve a desventura, passados dois ou três meses após a saída da esposa de Canjadude, de ter falecido com problemas hepáticos. Ainda foi evacuado de Canjadude para Nova Lamego, mas acabou por falecer já no Gabu
Actuação das “Irmãs Catatuas” (os vocalistas) no Pub Chat Noir em Canjadude. O sucesso, quase passou o arame farpado. Da esquerda para a direita: bateria, Fur Mil Sá; voz, Fur Mil Perestrelo e Alf Mil Neves; violas, Alf Mil Alexandre Martins, Fur Mil Moreira e Fur Mil Penha.
Finalmente no dia 31 de Março de 1972 regressei ao seio dos meus sem sequelas, mas com uma revolta que dizia “porquê isto?”
Com mais ou menos “porrada” cheguei salvo, mas talvez o dia mais marcante de todo este percurso foi o do meu embarque, o dia em que vi aquela figura pequena e aparentemente insensível chorar pela primeira vez… o meu pai.
Aqui está o meu depoimento, espero que vá ao encontro das expectativas.
Um abraço
Germano Penha
Nota biográfica
Idade - 62 anos
Profissão - Bancário
Estado - Casado
Uma filha com 31 anos
Um neto com 1 mês
3. Comentário de CV:
Caro Penha,
Bem-vindo ao Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné.
És mais um elemento da já famosa CCAÇ 5 - "Gatos Pretos" de Canjadude - de que fizeram parte os nossos tertulianos: ex-Fur Mil Enf João Carvalho, ex-1.º Cabo TRMS José Corceiro, ex-Fur Mil TRMS José Martins e ex-1.º Cabo José Pereira.
Esperamos de ti a melhor colaboração na feitura das nossas memórias que poderão vir a ser um precioso auxiliar a quem se vier a dedicar no futuro à História da Guerra Colonial, em particular da Guiné.
Podes ajudar-nos com os teus textos e fotos, enviando-os para este endereço do Blogue: luisgracaecamaradasdaguine@gmail.com e para um dos co-editores.
Poderás consultar a nossa página, onde no lado esquerdo encontrarás respostas às tuas eventuais dúvidas quanto ao nosso fim e comportamento enquanto bloguistas.
Deixo-te o abraço colectivo de boas-vindas em nome da tertúlia que te recebe sem tapete vermelho, porque não o temos, mas com a maior alegria.
Em nome desta gente toda, quase um Batalhão de pacifistas obrigados a fazer a guerra,
Carlos Vinhal
__________
Nota de CV:
Vd. último poste da série de 12 de Setembro de 2010 > Guiné 63/74 - P6976: Tabanca Grande (243): António Nobre, ex-Fur Mil da CCAÇ 2464/BCAÇ 2861 (Buba, Nhala e Binar, 1969/70)
4 comentários:
Amigo Germano Penha
É com imenso regozijo que te dou as boas-vindas à Tabanca Grande, que é todo este colectivo que um dia tivemos a particularidade de termos vivido no Teatro Operacional da Guiné.
Cada um de nós é um elo da mesma corrente, unidos para o mesmo fim, dando cada qual o seu contributo, contando as nossas histórias e experiências, passadas na nossa guerra.
Eu vou começar por te contar uma pequena história, duma terra que nós os dois bem conhecemos:
- Noutros tempos, a vasta região de Canjadude, constituía um Regulado a que pertenciam as seguintes Tabancas: Canducoré, de Canjadude, de Liporo, de Coiana, de Paamo, de Comuda, de Cansamba, de Fariná e de Ganguiró e cujo Régulo vivia na Tabanca de Canducoré.
Por razões estratégicas, pois corria-se sempre o risco de guerras com as tribos Fulas, para evitar que os celeiros do Régulo atingissem grandes concentrações de produtos da terra concentrados num local só (fruto do contributo que a população pagava ao Régulo) pensou este na criação duma Tabanca, não muito afastada de Canducuré, na qual se fariam os depósitos desses produtos, para estarem mais protegidos. Foi designado para administrar e guardar esses bens, um dos Homens-Grandes do Régulo, chamado Dudo. Deslocou-se então este Homem-Grande com a sua família, e provavelmente com outras famílias, que se estabeleceram numa zona escolhida, talvez pela grande quantidade de pedra aí existente, tendo construído no local uma Tabanca, que mais tarde veio a ser conhecida por CANJADUDO, ou seja o local governado pelo Homem-Grande, Dudo. Hoje esta Tabanca chama-se Canjadude, tendo havido uma ligeira deturpação fonética (abrandamento de vogal); não deixa de ser curioso, que ainda hoje (quando nós lá estávamos) se ouvia dizer Canjadudo.
Esse Régulo Mandinga chamava-se Balé Sané.
Penha um abraço amistoso, parabéns e bem-vindo.
José Corceiro
Caro Amigo Germano
Bem vindo à Tabanca grande, escolhe um lugar à sombra do imenso poilão que que nos acolhe no
largo principal desta Tabanca e...senta-te.
Também sou bancário como tu, mas já há algum tempo que ando à sombra dos poilões (reformado do BCP).
Abraço
Luís Borrega
Caros camarada Germano Penha
És mais um que rompeu a timidez e resolveu abrir o coração e a mente.
Fizeste bem!
Aqui há de tudo, até desencontros, mas o que é mais notório é a alegria da amizade que aqui certamente não deixarás de encontrar.
Perguntas, assim a modos que a 'medo', se o que escreves vem ao encontro das nossas expectativas.
Claro que sim, camarada, é a tua experiência, é a tua visão, logo é a tua verdade, e isso, sendo genuíno, é o que mais importa.
E depois evidencio isto que escreves:
"Os tempos seguintes foram de reconhecimento e conhecimento do ambiente, dos usos e costumes e das pessoas, e hoje passado tanto tempo sinto-me gratificado por ter aprendido tanto da vida em tão pouco tempo. Foi linda a maneira como nos uniamos e dávamos as mãos nas horas más, e como optimizávamos os bons momentos. Éramos uma família de cerca de trinta pessoas. Aprendi a rir e a chorar quando estavam em causa só valores humanos. Desaprendi o valor material das coisas. Acho que fiquei um homem melhor."
Queres melhor que isto?
Está aqui tudo! O que a Guiné nos fez e com a recordamos por isso. Como fomos 'meninos' e voltámos Homens. Onde aprendemos a valorizar e a relativizar as coisas.
E digo-te, ainda hoje, mesmo sem ser em situação idêntica à que vivemos, é esse o efeito que a Guiné exerce sobre muitos dos nossos juvens que lá vão.
Portanto, muito bem vindo!
Acomoda-te, instala-te e conta histórias.
Um abraço
Hélder S.
Um abraço
Hélder S.
Bem vindo à Tabanca Grande.
Finalmente os Gatos começam a sair do ron-ron e vir à liça para trazer histórias e estorias de Canjadude.
Um abraço
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