domingo, 19 de setembro de 2010

Guiné 63/74 - P7008: (In)citações (8): Comércio Justo: Sim, obrigado (Luís Graça)

Guiné-Bissau > Bissau > 5 de Dezembro de 2009 > Uma cena pouco idílica, pouco turística,  das ruas da capital... As bideiras, vendedoras ambulantes,  que calcorreiam a  cidade, com os balaios à cabeça, tentando fazer alguns CFA (moeda local)...

Foto: © João Graça (2009) / Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados


1. Diz o CIDAC que o conceito de Comércio Justo (Fair Trade, em inglês) se baseia em 12 princípios:

(i) O respeito e a preocupação pelas pessoas e pelo ambiente, colocando as pessoas acima do lucro;

(ii) O estabelecimento de boas condições de trabalho e o pagamento de um preço justo aos produtores e produtoras (um preço que cubra os custos de um rendimento digno, da protecção ambiental e da segurança económica);


(iii) A disponibilização de pré-financiamento ou acesso a outras formas de crédito;


(iv) A transparência quanto à estrutura das organizações e todos os aspectos da sua actividade, e a informação mútua entre todos os intervenientes na cadeia comercial sobre os seus produtos ou serviços e métodos de comercialização;


(v) O fornecimento de informação ao consumidor sobre os objectivos do CJ, a origem dos produtos ou serviços, os produtores e a estrutura do preço;


(vi) A promoção de actividades de sensibilização e campanhas, quer junto dos/as consumidores/as (para realçar o impacto das suas decisões de compra), quer junto das organizações (para provocar mudanças nas regras e práticas do comércio internacional);


(vii) O reforço das capacidades organizativas, produtivas e comerciais das produtoras e dos produtores através de formação, aconselhamento técnico, pesquisa de mercados e desenvolvimento de novos produtos;


(viii) O envolvimento de todas as pessoas (produtores/as, voluntárias/os e empregados/as) nas tomadas de decisão que os afectam no seio das suas respectivas organizações;


(ix) A protecção e a promoção dos direitos humanos, nomeadamente os das mulheres, crianças e povos indígenas, bem como a igualdade de oportunidades entre os sexos;


(x) A protecção do ambiente e a promoção de um desenvolvimento sustentável, subjacente a todas as actividades;


(xi) O estabelecimento de relações comerciais estáveis e de longo prazo;


(xii) A produção tão completa quanto possível dos produtos comercializados no país de origem.


Pessoalmente desconfio de todas as ideias que me querem vender como panaceias para todos os males da humanidade,  do tipo "Ou Nós ou o Dilúvio", "Temos a solução (final)", "Nunca tivemos tantas certezas", "Escolha agora o céu na terra e pague depois" e outras balelas do pensamento único..

O Comércio Justo pode não passar de mais uma utopia, recebida com ironia e cinismo pelos professores de economia... Por mim, acho que é uma ideia que, no mínimo,  tem pernas para andar... É um pouco como todos os grandes rios, que começam por uma gota de água... Um dia muitas destas ideias libertar-se-ão do conceito (que não é mais do que um objecto abstracto-formal, um construído intelectual) e hão-de materializar-se em coisas concretas e palpáveis, úteis, que podem ajudar a resolver os pequenos grandes problemas de muita gente, como ter ou não ter água potável para beber, por exemplo...

Pequenas iniciativas locais como a loja do Cabaz di Terra, em Bissau,  devem ser acarinhadas. Em Bissau, em Luanda, em Lisboa, em toda a parte.. Não sei se esta é uma verdadeira  loja do Comércio Justo, com todos os ff e rr....Rege-se pelo menos por alguns dos seus princípios...E isso me basta, para já.

Em louvor do Comércio Justo, e dos nossos  pequenos projectos de solidariedade para com o povo guineense; em louvor de tanta gente, boa, solidária, que ajuda os outros que são vítimas do círculo vicioso da pobreza e do subdesenvolvimento - como alguns membros da nossa Tabanca Grande, portugueses e guineenses,  que eu não vou citar para mão ferir susceptibilidades, correndo sempre o risco de parcialidade, ao evocar uns nomes e omitir  outros - compus este texto poético a que chamei "Comércio Justo, Sim,  obrigado"...


2. Comércio Justo: Sim, obrigado!


Andei por aí
À procura de lojas
Do Comércio Justo:
Queria comprar dez cêntimos de equidade;
Acabei por encontrar uma,
A custo,
Já à saída da cidade.

Ao lado, havia um hipermercado,
Com a bandeira, verde-rubra,  de Portugal;
E, mais à frente,
Uma Loja dos Trezentos;
E a seguir, uma outra, a do Chinês;
E às tantas perdi-me,
Só de contar as lojas
De artigos de marca
Que havia na Grande Superfície Comercial.
Pensei cá para mim:
- Eh!, pá,
Já não vives na era de Quinhentos,
Ó Português de cá e lá,
De torna viagem,
O mundo está mais global,
Está mais quentinho,
O planeta,
Mais próximo,
Mais aconchegadinho,
Com o PIB a crescer,
A taxas de dois dígitos,
O que é obra,
Seus pobretanas!
Só não sei é se esse mundo
É mais fraterno,
Mais livre,
Mais justo,
Mais viável,
Mais plural.
Nem sei qual é a nossa margem
De manobra,
Que a economia é uma treta,
E a realidade é execrável,
Com tantos centos e centos
De milhares e de milhões,
Sem a mais elementar água potável.

Entrei na loja do Comércio Justo,
E ouvi histórias
De gente de mil e uma cores
E sabores:
- Sou uma pobre viúva da Índia
E faço bonecos de pano,
Comprem, comprem,
Meus senhores,
Ganham mais vocês num só dia
Do que eu em todo o ano.

Dez cêntimos de equidade
Embrulhada em papel de jornal...
- Essa coisa da equidade
Que o senhor vem à procura,
Eu não vendo nem nunca vi;
Não é por ter a pele escura
Mas a verdade, a verdade,
É que só conheço a ruindade
Da ilha do Haiti
Onde nasci.

Equidade não é justiça,
Mas igualdade de oportunidades,
Tento eu explicar, a medo,
À mulata africana:
- O pensamento, senhor,
Até pode ser bem profundo,
E tão fecundo
Como o meu ventre
De mestiça...
Mas que me adianta, a mim,
Ser bonita e  ser roliça,
Sem direitos nem liberdades,
Sem remédio para a minha dor,
Neste sítio do fim...
Do mundo.

A OIT, sabe,  vem agora falar
De trabalho decente,
Tanto nos campos como nas ciades...
- Tu, estrangeiro,
Que me acusas de dumping social,
Por extrair o carvão da mina:
Silicótico,
Ex-mineiro,
Fiz a revolução cultural,
E mudei p'ra mensageiro
Do Grande Negócio da China.

A seguir entra em cena
O dono da loja,
Que parece ser o ideólogo
De serviço:
- Tu, meu amigo, sociólogo,
Que és um consumidor responsável,
E vives na parte do planeta,
No hemisfério norte,
Que é a mais habitável,
Põe sempre o olho na etiqueta,
Que o desenvolvimento sustentável
É a minha...
E a tua meta.

Oiço algures um apelo,
Que me deixa desarmado:
- Sê solidário comigo
Que estou há dias sem vender,
E sem dinheiro para comer,
E portanto esfomeado,
Compra-me esta estatueta,
Que o politicamente correcto
Não enche a barriga da gente;
Já sei o que me vás dizer,
Que se a peça é de pau preto,
É mau para o ambiente.
E se alimento pai e mãe,
Na Indonésia ou no Brasil,
Dizes-me que é crime também,
Por ser trabalho infantil.

Fico sem jeito,
Ao ouvir todas estas histórias
E lições de geografia
Da pobreza:
- Não sabes onde fica o Benim,
Mas podes ajudar-me,
Ao meu povo,
Aos meus irmãos,
Não quero que tenhas pena de mim,
Basta ambos darmos as mãos.

- A mão invísivel do mercado,
Diz o meu professor, economista,
Que encontro no hipermercado,
Há-de chegar a todo o lado,
Mais devagar ou mais depressa,
De avião, de carro ou a pé,
E poderá fazer-te até
Um pequeno capitalista.

Fico baralhado,
Até sem pinga
De sangue,
Não sei se o negócio é bom ou mau,
Mas, para resumir a lição,
Ouvida na loja do Comércio Justo,
Presto um pouco mais de atenção
Ao meu amigo, mandinga,
Da Guiné-Bissau
Que toca Kora:
- Nossa ideia nasce agora
Mas já  vinga,
Tu és consumidor, solidário,
Eu produtor, acreditado,
Do Comércio Justo és partidário,
Amigo, manga de obrigado.

Luís Graça

________________

Nota de L.G.:

(*) Poste anterior desta série > 16 de Setembro de 2010 > Guiné 63/74 - P6998: (In)citações (7): Inauguração da Loja Cabaz di Terra, em Bissau (Pepito / AD - Acção para o Desenvolvimento)

6 comentários:

Anónimo disse...

Bendita veia poetica de cuja tal torrente brota...
L. de Sousa

Anónimo disse...

Caro Chefe desta Tabanca

muito Bom-dia!

Nesta manhã de domingo, viciada, ligo o computador e procuro a Tabanca:

Sei, que não são muitas mulheres, que procuram uma tabanca, de uma África longínqua, logo ao acordar, mas, quando vos digo, que vivi convosco, esse tempo que nos marcou a todos, (A todos os da nossa geração), digo a verdade.
A procura de informação sobre essa terra, os sentimentos que suscita em quem viveu aquele drama, em quem vive aquele drama, é uma necessidade!

É uma necessidade ter notícias, saber notícias dessa guerra actual, dessa guerra contra a fome e falta de todas as condições para uma vivência decente, humana, tão necessária ao desenvolvimento de todos os povos.

Revolta-me a impotência, a minha incapacidade criadora e criativa!

- como mulher do campo, apetece-me ir e trabalhar a terra, mostrar que ela é mãe, mas precisa da ajuda dos seus filhos para produzir, para se abrir em ofertas, que sustentam o corpo e a alma.
Pena, é que as notícias não tem uma evolução positiva quanto gostaríamos que tivessem,mas eu confio, nas pessoas, e até em milagres.
Mas, às vezes desespero, sobretudo contra a minha incapacidade, contra a minha pequenez.


A sua análise poética daquele negócio todo, daquele grito de necessidades elementares,está fantástico!
Que outros olhos se abram para essa crua realidade e tenham capacidades de resolução para aquele povo sofredor.

Um abraço agradecido da

Felismina Costa

Anónimo disse...

Bom dia Luis.
Que lindo poema,gostei de ler.
Um bom domingo.
Castro da cart 3521.

Anónimo disse...

Camaradas:
Vida justa? Comércio justo?
O Luís teve a virtude de tocar numa matéria universal.
Há conflitos em todos os patamares.
Com "nuances": alguns têm em casa uma torneira e um interruptor, e podem controlar o uso da àgua e da luz.
No entanto,talvez a maior parte da população cá do hemisfério não conhece esses luxos. Ou, pelo menos, não dispoem deles.
Reporto-me a uma passagem do poema: há uns anos, em frente a um bar na praia do Tamariz, na cidade da Beira, antes de entrar, costumava dar uma olhada pelos bonecos expostos da arte maconde.
Um dia interessei-me por uma peça, perguntei o preço,ofereci um terço, fez-se o negócio, e o vendedor abriu-se num sorriso e disse: obrigado patrÃO, É QUE HÁ TRÊS DIAS QUE NÃO COMIA.
Abraços fraternos
JD

Anónimo disse...

Obrigado Luís!

Maravilha!
Depois de um fim de semana sem net, sem PC, passado no campo, entre Coimbra e Montemor, ali mesmo ao lado dos pastéis de Tentúgal, nem imaginas, como me fez bem, hoje de manhã, entrar no blogue e ler este "trabalho".

Vou, já de seguida, ler uma segunda vez, pelo menos...

Um Abraço

Manuel Amaro

Anónimo disse...

Grande Chefe, também andam por aí professores de economia que levam em devido respeito as utopias de um mundo mais livre justo e plural e que sabem onde fica o Benim e a Guiné Bissau.

Sociedade mais justa,sim,obrigado!

Basta darmos as mãos e seguirmos o exemplo de alguns camaradas da nossa querida Tabanca.

Obrigado Luís por me teres feito chorar.

Obrigado Luís por mais eta pérola.
Com amizade,

Vasco A.R. da Gama