Região Autónoma da Madeira > Julho de 2008 > O Pico do Areeiro no seu esplendor...Foto de Augusto Pinto Soares (Porto)
Foto: Cortesia de Augusto Pinto Soares (2010). Todos os direitos reservados
1. Continuação da série Cartas, para os netos, de um futuro Palmeirim de Catió (*). Autor: Joaquim Luís Mendes Gomes, membro do nosso blogue, jurista, reformado da Caixa Geral de Depósitos, ex-Alf Mil da CCAÇ 728, Os Palmeirins de Catió, que esteve na região de Tombali (Como, Cachil e Catió) nos anos de 1964/66.
Oficial e cavalheiro (7): Golpe traiçoeiro de Cupido
A esplanada do Café Apolo, à tardinha, frente à entrada da Sé, voltada sobre a rua que desce até ao mar, abrigada do sol da tarde e perfumada pelas frondosas copas de árvores tropicais, com aromáticos sumos de maracujá a refrescar as mesas, podia muito bem ser um dos mais bonitos recantos do paraíso.Ali, a força sedutora das bonitas e devotas raparigas do Funchal atingia o seu máximo, quer ao saírem do átrio da catedral, mesmo em frente, quer ao descerem aquela rampinha edénica.
Naquela tarde, tudo aconteceu, súbito. Era a força do destino ou fosse lá o que fosse, como que a cumprir-se, diante de mim. Uns olhos vivos e doces, iluminando o rosto moreno e bem formoso, de uma das duas moças da mesa, além, cravaram-se em mim, inflamados por um sorriso tão intenso quanto discreto.
Senti-me tomado por uma autêntica visão. Como se estivesse a encontrar alguém que há tanto procurava… Fiquei totalmente aprisionado. Levantaram-se e caminharam as duas para os lados da Fernão Ornelas.
Leve como uma andorinha, alta, esguia e graciosa como uma garça, de cabelos pretos a escorrer, compridos e sedosos, sobre os ombros, ao longo de um pescoço bem dimensionado para a estatura de um corpo elegante, desapareceu na esquina da Sé, dirigindo-me, natural, um último sorriso faiscante e aturado, de simpatia.
O meu coração batia no peito, desenfreado, como nunca.Num instante, o pensamento percorreu, vertiginoso, todos os escaninhos da minha alma.
Tudo, em mim, gritava que aquela poderia ser a tal estrela…a que faltava ao sonho inebriante que eu estava a viver na Ilha da Madeira, sem contar.
Aturdido, levantei-me e fui no seu encalço. O tempo que demorei foi o bastante para que ambas viessem, já, no seu Fiat 600, cor de café com leite, lentamente, da Fernão Ornelas para a Avenida que vai dar à do Infante.
E, agora, quem será ela?…Como a encontrar?… Tirei a matrícula. O Funchal era pequeno e os automóveis não eram muitos. No dia seguinte, a divisão policial do trânsito estava a dar-me a morada do dono. Rua Engº Oudinot… Tudo batia certo. O telefone fez o resto.
Tão certa como eu, já estava à espera do meu telefonema. A voz bem feminina condizia com o olhar e toda a minha visão de sonho…Não havia tempo a perder. Naquele dia, às 5 da tarde, ao fim da Fernão Ornelas sobre a ribeira, frente ao mercado.
Oficial e cavalheiro (8): O Encontro Fatal
Pus o fato de ver a Deus, o único, cinzento, feito com todo o esmero pelo tio Zé Maria, logo a seguir à saída do seminário, óculos escuros e uma rica gravata encarnada, discreta, sobre camisa azul, impecável. Tomei a Fernão Ornelas, junto à Sé e fui andando, ansioso, até ao ponto combinado.
Muita gente ia e vinha nos passeios, dos dois lados ou estava parada, diante das montras abundantes das lojas de comércio, com as últimas novidades, vindas do continente ou das Ilhas Canárias, ali ao pé; as vendedoras de flores e as bordadeiras do costume, aqui e ali, enfeitavam, viçosas, o ambiente, sempre festivo.
Um belo dia de sol e ameno fazia jus de envolver aquele momento das duas vidas que se iriam encontrar. O mesmo rosto gracioso de ontem ali vinha, saliente, no meio do cortejo de pessoas que passavam a ponte da ribeira, tapada por uma colcha ridente de verdura e sempre florida.
Uma figura de vestido preto, a envolver um corpo perfeito, de linhas harmoniosas, em passos leves sobre sapatos de salto alto, encaminha-se, lenta mas decidida, para mim, como se já nos conhecêssemos, há muito.
O sorriso era terno e transparente. Todo voltado para mim, numa entrega total, sem artifícios. Os nossos olhos, discretamente, percorrem-se um ao outro, como que a tomar posse do que, havia muito, lhes pertencia, sem se conhecerem.
Agora, tinha-a, ali, ao meu pé. Era a confirmação de tudo o que no dia anterior se desvendara, em encontro súbito. Rosto oval vestido de pele sedosa e ligeiramente morena; cabelo, naturalmente escuro dava-lhe laivos de indiana; olhos muito bem emoldurados por sobrancelhas negras, bem desenhadas, espreitavam, vivos, ao meio de uma cortina de leves sobrancelhas, levantadas em arco de amêndoa; o sorriso reluzia em flor desabrochada, a exalar um perfume de simpatia abundante; o tronco era robusto e bem dimensionado, sem perder o charme feminino; um ventre totalmente maternal e atraente; umas pernas altas e bem torneadas; a voz, doce e quente como os seus braços.
Era uma flor tão bela como as orquídeas da Madeira que se me oferecia, como eu a ela, sem reservas e confiante, como prenda da minha vida, vivida até ali, em corrida esforçada e triunfal.
Tomámos o cortejo anónimo da Fenão Ornelas e viemos, em êxtase, sem falar, até ao centro do Funchal. Fomos sentar-nos na mesma esplanada do café Apolo. Todo o mundo em redor se apagou. Só nós é que contávamos, absorvidos, em fascínio de sonho.
As perguntas saíam de vez em quando, mas eram desnecessárias. O olhar falava por nós. O tempo voou… A noite veio mais depressa do que queríamos.
- Luís, tenho de ir para casa.
- É pena, respondi…
De novo, pela Fernão Ornelas, agora vestida de noite, luminosa. Nunca fora tão curta, nos seus 500 metros bem medidos…
- Amanhã, aqui, à mesma hora.
Um sorriso quente e largo de lua cheia e um aperto de mão bem apertado selou aquele primeiro compromisso.
(Continua)
[ Revisão / fixação de texto / título: L.G.]
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Nota de L.G.:
3 comentários:
Que bonita história, Joaquim Luís, para se contar aos netos, à lareira, na quadra natalícia. Com frio de rachar, lá fora, o lume a crepitar...
Conta, avô, conta... E depois ?
Como precisamos, amigo, do pensamento mágico! De voltar às histórias de princípes encantados e gatas borralheiras e de fadas e de duendes e de irãs e de bruxas más...
As TIC tiraram todo o encanto das nossas velhas lendas e narrativas, contadas à lareira, com voz encantatória e gestualidade a preceito....
(In)confidência: também tive aos 18 anos uma paixão por uma funchalense linda como as orquídeas da Madeira... Linda como a tua... Vivia e estudava em Lisboa... O que será feito dela ? Não revelo o desfecho da tua primeira grande história de amor...
O privilégio será todo seu, no próximo capítulo, senhor oficial & cavalheiro...
Sr. Mendes Gomes
Quero saber o resto da história!
muito bem descrita, como sempre, entusiasma... e deixa-nos suspensos...
Se cada um cada um de nós, conta-se as suas, este Blogue deixaria de ser, um Blogue de HISTÓRIAS de guerra, para se transformar no Blogue do Amor.
Mas, ainda bem que alguém se lembra
de falar de amor!
Sem ele, que graça teria a vida?
Espero o final da História.
Sempre atenta
Felismina Costa
Caro Joaquim Mendes
É repousante ler uma história de tal beleza, para "esquecer" as agruras das "lutas" que antecedem este material postado.
Faz bem, para serenar a mente.
Abraço, especial, para quem escolhe temporariamente estas terras da Ria de Aveiro, para viver.
Jorge Picado
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