Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
quinta-feira, 7 de abril de 2011
Guiné 63/74 - P8057: Notas de leitura (226): João Teixeira Pinto, A Ocupação Militar da Guiné (3) (Mário Beja Santos)
1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 1 de Abril de 2011:
Queridos amigos,
Aqui se dá por terminado o relato das 4 campanhas de Teixeira Pinto entre 1913 e 1915.
A pacificação foi um facto, mas só se deu por concluída em 1936. Teixeira Pinto irá morrer no combate de Negomano, frente aos alemães, em 26 de Novembro de 1917.
Abdul Injai irá cair em desgraça e será deportado. Todo este episódio da campanha de 1915 decorre já numa atmosfera de envenenamento que preludia as calúnias sobre o grande herói Teixeira Pinto. Lastimavelmente, todos estes episódios históricos estão mal estudados, parece que a Guiné só ganha importância aos olhos do historiador com a chegada do comandante Sarmento Rodrigues. Coisas da história.
Um abraço do
Mário
João Teixeira Pinto, a ocupação militar da Guiné (3):
Campanha contra os Papéis e Grumetes de Bissau (1915)
Beja Santos
Estamos chegados ao relatório fundamental de Teixeira Pinto, após a sua derradeira campanha na Guiné. É um documento histórico indispensável para a compreensão da colonização portuguesa na região. Teixeira Pinto está ciente das animosidades que impendem sobre ele e o seu favorito Abdul Injai. Acusa-os de despeito e inveja, são aqueles que na produziram a favor da Guiné e que só sabem censurar e criticar e diz: “Para esses todo o meu desprezo e o dos meus valentes companheiros de armas”. E começa por fazer o histórico das suas campanhas a partir de 1912. Diz sem papas na língua que nesse tempo “a nossa autoridade era puramente nominal na região compreendida entre os rios de Farim e o rio Geba, abrangendo os povos Oincas, Balantas, Brames ou Mancanhas, Manjacos e Papéis, com ocupação apenas das vilas de Cacheu e Bissau e posto militar de Gole”.
Rememora algumas campanhas infelizes, enumera os desastres e até massacres de tropas e populações. Diz ter lido relatórios e ouvido testemunhas das campanhas anteriores e ter concluído que as razões de todos esses revezes fora a utilização dos Grumetes como auxiliares, sobretudo. Acrescenta que em Dezembro de 1912 fora a Bafatá e que o administrador de Geba, Vasco Calvet de Magalhães, lhe apresentara o régulo do Cuor, Abdul Injai (“fiz um rápido estudo dele e da sua gente e desse rápido estudo concluí que eram eles os auxiliares que convinham”). Arranjados os auxiliares, disfarçou-se e percorreu o Oio.
Refere depois como deixou o Oio submetido, a seguir foi a Cacine e Gadamael reprimir indígenas sublevados, restabeleceu a ordem. Dá-se depois o massacre de Churo em que, entre outros, perdeu a vida o alferes Nunes. Segue-se a descrição da campanha em que submeteu os manjacos, os Mancanhas ou Brames, submetendo-os. Tendo havido o massacre de uma força de 70 auxiliares procedeu contra os Balantas, estes também se submeteram, foi criado um posto em Nhacra.
Estamos chegados à sublevação dos Grumetes e dos Papéis. Teixeira Pinto escreve: “Todos os Grumetes, mesmo os melhores colocados, apoiados pela Liga Guineense, empregaram todas as suas influências e conjugaram todos os seus esforços para impedir a guerra… O atrevimento dos Papéis era tal nas ruas de Bissau que, se se cruzavam com algum europeu na rua, em lugar de se afastarem, pelo contrário esbarravam com o europeu e, com um encontram, afastavam-no. Quando algum branco ia passear para fora da vila, logo a 100 metros, era frequente encontrar um Papel que lhe dizia para voltar para vila porque aquele chão não era do governo”.
E justifica as hostilidades em que incorreu: “Dizia-se que era eu que incitava a guerra. Mandaram um comissionado a Lisboa para enganar o Ministro, para lhe arrancar ordem para que a campanha se não fizesse, alegando que os pobrezinhos não tinham armas e eram muito obedientes. Digo enganar, porque a presente campanha provou que os Papéis e Grumetes estavam muito bem armados e municiados… estabeleceram intrigas entre os chefes irregulares, entre este e o Abdul e enquanto fui a Lisboa procurar indispor os oficiais comigo. A todos os que queriam opor-se a esta campanha lhe chamo aqui, e bem do íntimo da minha alma réus de alta traição”.
Falando dos preparativos, expõe a composição dos efectivos, as forças navais utilizadas, o armamento, o estado de sítio da Praça de Bissau, a presença de Abdul Injai com 1600 irregulares armados com 580 Sneiders, 425 Kropatcheks e perto de 400 armas de espoleta e mais de 100 cavaleiros.
Uma vez mais, Teixeira Pinto é minucioso, estabelece como um quase diário das operações que se vão desenrolar já em plena época das chuvas. Há parágrafos quase épicos, veja-se este exemplo: “Numa arremetida de leões os meus valentes soldados e irregulares carregam de novo sobre o inimigo e, numa arrancada, levam-nos de vencida até ao Alto do Intim e infligem-nos tais perdas que as forças recolhem trazendo os seus mortos e feridos, sem que o inimigo os incomodasse com um único tiro. Para mim estava terminada a lenda dos Papéis. Com aquela coluna, depois da rude prova porque acabava de passar e animada do entusiasmo de que estava possuída, eu adquiri a certeza da derrota do inimigo e da conquista da ilha de Bissau”.
Daqui avança para o chão Papel, descreve o fogo de artilharia, o avanço das colunas e acrescenta um novo parágrafo épico: “Neste dia de luta de 1 contra 10, com inimigo bem armado com armas aperfeiçoadas, bastante cartuchame e com a lenda de invencível, cada soldado, cada irregular, cada voluntário, foi um herói. Os graduados regulares e os chefes irregulares portaram-se de tal modo, mostraram tanta energia, tanto sangue frio, desenvolveram tal actividade que não sei descrever o entusiasmo quando à tarde estávamos acampados sem se ouvir um tiro, no mesmo sítio em que acampou a coluna de 1908, que foi sempre mais ou menos hostilizada pelo inimigo”.
A campanha prossegue, marcha-se para Safim, Teixeira Pinto comanda as operações ferido, deitado numa maca. As colunas seguem para Bor, tomam Bissalanca, depois Comura, Prábis, Cussete. Regista-se uma traição na estrada do Biombe, o régulo foi preso e Teixeira Pinto observa: “Interrogado o régulo, declarou que ele nunca se submetia porque ele odiava os brancos; que tinha mandado sempre 500 homens a cada combate que tinha havido e enquanto ele fosse vivo e houvesse um Papel de Biombe haviam de fazer guerra ao governo e que, se morresse, e lá no outro mundo encontrasse brancos, lhe havia de fazer guerra. Disse que se considerava o mais valente de todos os régulos porque não tinha fugido da sua terra, pois cria ali morrer”. A 17 de Agosto de 1915 a campanha terminou, havia 4 postos em Bor, Safim, Bejemita e Biombe. Papéis e Grumetes eram tidos como etnias submetidas. O relatório termina assim:
“Antes de concluir este relatório venho ainda relembra a conveniência de se apurar a responsabilidade de todos aqueles, Grumetes e não Grumetes, que mais ou menos concorreram para a revolta dos Papéis e proceder-se à captura e deportação para outra província dos Grumetes que tendo andado dentro de Bissau a fazer fogo contra nós, hoje fugiram dali refugiando-se nas pontas de Quínara e nos Bijagós.
São rebeldes, com a consciência dos actos que praticavam, visto serem civilizados, que pegaram em armas contra o governo, armas que ainda conservam. Sem ser profeta, estou convencido que, se continuarmos com a brancura dos nossos costumes e deixarmos sem a punição que merecem em pouco tempo eles farão rebentar nova revolta entre os Balantas, Manjacos ou Papéis, povos que, como V. Ex.ª sabe, são guerreiros por índole e por tanto sempre prontos a pegarem em armas, muito principalmente incitados pelo exemplo daqueles que tendo sido rebeldes ficaram impunes e que continuam por esse facto a gozar grande prestígio entre aqueles povos.
Oxalá eu me engane”.
Segue-se a lista de numerosos pedidos de louvor e condecorações para tropas regulares e irregulares e até mesmo para comerciantes. Esta era a Guiné de 1915, um território em que nem em Bissau se podia viver descansado. Compete ao historiador reflectir e analisar sobre os apoios que Teixeira Pinto obteve e quais os inimigos que temporariamente se submeteram.
Este conjunto de relatórios são peças de uma importância inequívoca para se conhecer tudo quanto se passou na história recente, sobretudo de 1961 a 1974.
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 4 de Abril de 2011 > Guiné 63/74 - P8047: Notas de leitura (225): João Teixeira Pinto, A Ocupação Militar da Guiné (2) (Mário Beja Santos)
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5 comentários:
A propósito do bravísssimo Teixeira Pinto ("O kurika") uma ocorrência verdadeira nos anos 71.
Um "divertido" comandante de companhia a quem foram pedidos rádios para uma dada operação envia mensagem às Operações/ComChefe dizendo que a falta dos meios rádio comprometia a segurança do seu quartel.
As Operações enviaram uma mensagem dizendo:"Teixeira Pinto pacificou a Guiné sem rádios" ao que o dito capitão repondeu de imediato: "Mandem o Teixeira Pinto".
Manuel Oliveira
Sobre as chamadas guerras de pacificação na Guiné, o historiador francês, René Pelissier que consultou os arquivos históricos sobre estes acontecimentos de alto a baixo, no seu livro "História da Guiné", lamentou muito a ausência de informações detalhadas das operações (campanhas) da Guiné, sobretudo destas últimas, tanto no que respeita aos aliados de ocasião(auxiliares) como dos adversários (seus inimigos) o que de facto dificulta qualquer tentativa de fazer uma leitura minimamente objectiva sobre o contexto, os meios, as motivações, as forças em confronto, em suma sobre a verdade histórica possivel dos factos.
Da interpretação do texto ora apresentado, o Abdul Indjai aparece não só como o régulo do Cuor mas também como chefe incontestado de todos os auxiliares facto que me parece inverossimil se tivermos em conta que cada um dos regulados presentes estaria, se acreditarmos na versão do Pélissier, encabeçado pelo seu próprio régulo ou seus representantes, tendo em conta a natureza das alianças e das compensações morais e materiais esperadas.
Para além de Abdul Indjai e dos seus homens, O Pélissier cita os nomes de alguns como o caso dos régulos (ou representantes) de Badora, Gabú e de Sancolá.
O vaticínio do Capitão Teixeira Pinto sobre a Guiné e os seus grumetes não veio a realizar-se no curto prazo, mas são muitos os que vêm a luta pela independência conduzida pelo PAIGC como o corolário e a sequência lógica das guerras de pacificação, desta feita num contexto mundial e regional já completamente diferente e a desfavor das ideias e forças colonialistas.
O mundo não pára de nos surpreender com as suas mudanças.
Quem diria que passados poucos anos após as independências, os africanos, europeus e americanos se juntariam para chamar algumas ditaduras e seus ditadores a razão no continente como está a acontecer neste momento na Libia e na Costa do Marfim, mesmo se alguns africanos de cima ainda o fazem com alguma relutância e muita desconfiança.
Um abraço a todos,
Cherno Baldé
....O mundo não pára de nos surpreender com as suas mudanças.
Quem diria que passados poucos anos após as independências, os africanos, europeus e americanos se juntariam para chamar algumas ditaduras e seus ditadores a razão no continente como está a acontecer neste momento na Libia e na Costa do Marfim, mesmo se alguns africanos de cima ainda o fazem com alguma relutância e muita desconfiança.#....copy/paste
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Será isso benéfico para África, Meu Caro Cherno?
Interrogo-me muitas vezes sobre o modo como essa"ajuda" é praticada.
Ninguém melhor do que um Africano para isso avaliar.
Abraço do
Torcato
Amigo Torcato,
De maneira como as coisas estão hoje, é muito complicado e deveras dificil ajuizar assim, no imediato, o que é benéfico e o que não é para a África.
Antes, para mim, era mais fácil, existia o capitalismo de um lado com a sua eterna "ganancia" de lucro e dominação e d´outro o socialismo, considerado mais próximo dos povos oprimidos, ver explorados.
Hoje, nada disto existe, pelo menos assim de forma clara, não há esquerda nem direita, as ideias do socialismo e do capitalismo imbricaram-se formando um remoinho de vento (urdimunho em crioulo) sem uma direção bem definida.
E a África que é parte integrante deste mundo em globalização, podia ela existir só de per si com as sua imensas riquezas e também com as suas insanáveis violências?
Acho que caminhamos para uma época em que, também, as opiniões serão globais e não regionais ou locais.
Um grande abraço,
Cherno Baldé
Caro Amigo Cherno Baldé
Estou de acordo.
Levava tempo e muita escrita a falar de África, da Europa (Portugal e os problemas de agora), a globalização.
Em email, tenho que procurar o endereço, escreverei com tempo.
Tenho sempre receio de não estar certo, de necessitar ouvir outras opiniões que, de um modo geral, me reforçam o que penso ou, pelo contrário, o alteram.
Obrigado e um abração do Torcato
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