1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 27 de Maio de 2011:
Queridos Amigos,
É facto que a ”receita” não é uma surpresa, várias publicações têm agarrado este testemunho depurado, estereotipado a meia dúzia de factos extraídos de uma subjectividade e de uma experiência que cabem nuns linguados de papel, e zás, fica a água-forte de uma memória. Mas é um todo de grande dignidade, uma leitura que nos embacia o olhar e detém o pensamento para aquelas paragens que também calcorreámos. Alguns dos habitantes da nossa esplendorosa tabanca aparecem na máxima pujança, chorei a ler a Giselda Pessoa (que nobreza de carácter!) mas também o sargento Talhadas e todos os soldados sofridos que depõem como heróis anónimos que sabem erguer o cálice das adversidades sem pedinchar o reconhecimento das novas gerações .
Um abraço do
Mário
Tenho corpos estranhos no corpo, passei muita sede, ainda choro pelos meus mortos, estremeço quando oiço o barulho de um helicóptero…
Beja Santos
“Dias de Coragem e de Amizade, Angola, Guiné, Moçambique: 50 histórias da guerra colonial”, de Nuno Tiago Pinto, com prefácio de Carlos de Matos Gomes (A Esfera dos Livros, 2011)*, é uma colectânea de depoimentos contados na primeira pessoa do singular: António Lobato, que foi o militar que mais tempo esteve preso pelo PAIGC; António Heliodoro, que fez a operação Tridente durante 72 dias e 72 noites; Armando Ramos, que conheceu o supersticioso Abna Na Onça, o régulo que enterrava uma galinha branca para saber se se devia ou não ir em operação. José Carvalho, que confessa que na fase final da comissão já estava choné, almoçava e ia para uma loja de um sírio que lhe trazia sempre quatro copos de café e outros tantos de anis…
Para que servem estes testemunhos de gente que combateu e que oferece depoimentos sofridos, memórias de evacuações debaixo de fogo, homens que se deixam fotografar marcados pela amputação, pelo stresse, minados pelas perdas, agradecendo actos de camaradagem e a coragem das mulheres e dos familiares que os ajudaram a renascer?
Falando concretamente da Guiné, por definição, não há dois testemunhos até aparentados, naquele território onde as águas dos rios e das rias expandem ou encurtam permanentemente a superfície dos solos, cada ermo era específico, cada ocaso que ditou um momento de sorte ou uma aparatosa tragédia que não pôde ser vivida por outro ser humano. É pelo todo destas vozes múltiplas que se pode entender como aqueles jovens olhavam a guerra, a desmesura entre a formação militar e a entrada, por vezes tão brusca, no palco dos conflitos, nas tensões da vida de relação, com camaradas e populações civis.
Lendo os depoimentos dos três teatros de operações ainda se consegue afinar melhor o diapasão de que a geografia torna as diferenças mais acentuadas: o piloto Lobato revela que em Maio de 1963, numa aterragem forçada, encontrou o Sul da Guiné já altamente controlado pelo PAIGC; o fuzileiro Heliodoro comove de tão simples e autêntico: “Andávamos por ali quando uma das Companhias foi atacada e perdeu-se no mato. O oficial deles foi pedir ao Comandante Calvão que os fosse buscar e nós fomos. Percorremos a mata toda e conseguimos reunir os homens, que tinham fugido cada um para seu lado. Só ficaram lá dois que tinham sido mortos e armadilhados. Quando os puxámos, por acaso, a cavilha da granada ficou presa na terra e não rebentou. Foi um dia de glória. Por causa disso o meu destacamento foi condecorado com uma Cruz de Guerra”; ou então: “O que mais me custava era ver dezenas de crianças à hora da refeição, separadas de nós por uma vala, a dizer “branco, dá-nos de comer”, com aquelas latas de feijão vazias nas mãos. Mandava-os esperar sempre. Uma vez fui à mesa e disse ao pessoal para porem o que sobrasse numa terrina para dar aos miúdos. O marinheiro “Palmela” respondeu-me mal: “Isso é que era bom. Faço restos quanto quiser”. Virei-me para ele, à frente de todos, e disse-lhe: “Palmela, ou metes lá a comida ou a minha G3 faz serviço”. Ele não duvidou. Nós tínhamos tanto amor à G3 como a um aerograma da namorada. Dormiu todas as noites à minha cabeceira. Era ela que nos salvava a vida”.
Com estes depoimentos é possível ter uma imagem (ainda que pálida) das emoções do combatente, da guerra que se travava, de como há mortes que nunca se esquecem e de como há amputações que deixam a alma pulverizada. Há gente que foi bombardeada pela própria aviação; há gente que guarda do médico salvador a gratidão que sente por Deus; há heróis como o sargento Talhadas que descreve em tom mansinho episódios violentos e que comenta sem uma ponta de sobranceria: “Não me sinto um herói. Sinto-me um soldado português que defendeu a sua Pátria quando ela o chamou”; há gente que praticou heroísmo por não ter perdido a esperança em recuperar a visão ou salvar uma perna; como num coro gigantesco, fala-se da imensa sede que perdura em todas as células dos corpos destes sexagenários, o valor das cartas ou dos aerogramas, as relações amistosas com as crianças, a lavadeira, os picadores; é tocante ouvir a enfermeira Gisela dizer-nos, a propósito de um militar que ao entrar no helicóptero lhe suplicou: “Dê-me a mão que eu vou morrer. Já que não tenho aqui a minha mãe, dê-me aqui a sua mão”. Ainda lhe pedi que me deixasse ver o que se passava. Mas quando abri a camisa vi que ele tinha o peito desfeito por um tiro que lhe tinha entrado pelas costas. Percebi que não podia fazer nada. Não aceder seria tirar-lhe o que mais queria. Dei-lhe a mão e ele faleceu”; a mesma enfermeira Gisela que vai ajudar o piloto Miguel Pessoa, cujo avião tinha sido abatido, ambos se vão apaixonar, afinal não é preciso ler “O Adeus às Armas” para entender que as pessoas podem descobrir o amor ou estabelecer laços afectivos fortíssimos nesses tempos de cólera e de imprevisão.
“Dias de Coragem e de Amizade” fala de tudo isso que aconteceu na guerra por onde andámos (a gente da minha geração) e que está diluído ou é ignorado por estas novas gerações: os traumas, as dádivas sublimes, o recolher restos de um ser humano num saco, independentemente de ser fuzileiro, maqueiro, furriel, caçador africano, piloto, naquela Guiné e nos outros teatros de operações. Aqui está um livro para oferecermos aos nossos filhos, sobrinhos, filhos dos amigos, é importante ver o lanho que atravessa a fronte de António Lobato, ouvir um oficial que não quer contar patranhas e diz que teve uma comissão milagrosa na Guiné, aquele pára-quedista que viveu o inferno de Gadamael e que termina o seu depoimento dizendo: “Lembro-me de todos os que morreram e dos feridos graves. Tal como eles se devem lembrar de mim”.
Ver as fotografias deles com 20 anos e agora com 60, por vezes exibindo as suas próteses, a modéstia do olhar quando o peito ostenta condecorações, há mesmo olhos que conheceram operações terríveis e há até olhares cegos; e há mesmo a descoberta, sempre espantosa, de que esses militares não esqueceram certas datas, certos lugares e, acima de tudo, descobriram, sabe-se lá com que coragem, a contingência dos ocasos felizes ou infelizes e a transparência de agora poder contar a verdade do que passaram e como da dor e da angústia se consegue ofertar, com singeleza, estes deveres de memória.
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Notas de CV:
(*) Vd. poste de 8 de Junho de 2011 > Guiné 63/74 - P8389: Agenda Cultural (129): Apresentação do livro Dias de Coragem e de Amizade, de Nuno Tiago Pinto, no dia 7 de Junho passado na sede da ADFA (Miguel Pessoa)
Vd. último poste da série de 7 de Junho de 2011 > Guiné 63/74 - P8384: Notas de leitura (245): O Meu Testemunho, uma luta, um partido, dois países, por Aristides Pereira (7) (Mário Beja Santos)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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2 comentários:
Meu caro Beja Santos
Não conheço o livro sobre o qual incide esta tua recensão. Daí que a não avalie enquanto tal.
Só quero dizer que este texto tem vida própria, vale por si e que fiquei emocionado com a sua leitura. Parabéns.
Um abraço
Caros camarigos
Na minha opinião tivemos uma excelente foto/reportagem da sessão de apresentação do livro, produzida pelo Miguel Pessoa.
Agora o Mário BSantos foca-nos o conteúdo do livro, centrando-se, obviamente, mais nos aspectos relacionados coma Guiné, mas fá-lo com tanto empolgamento e ternura que nos 'aguça o apetite' para descobrir todo o seu conteúdo.
Gostei bastante desta peça.
Abraço
Hélder S.
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