1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 27 de Maio de 2011:
Queridos amigos,
Graças à ajuda sempre prestimosa do Dr. António Duarte Silva, tive acesso a este documento que rasga horizontes, confirma outras fontes históricas e esclarece, dentro de limites, múltiplos silêncios africanos e, sobretudo, cumplicidades e estratégias de autodefesa que inibem importantes figurantes a omissões gravosas para interpretar os principais quadros e etapas da luta do PAIGC, as suas servidões e grandezas.
Penso que o papel do nosso confrade Leopoldo Amado foi decisivo na organização das entrevistas e do apenso documental, pelo que o felicito publicamente por mais este valioso contributo histórico que dá à compreensão da guerra da Guiné.
Com um abraço do
Mário
O testemunho de Aristides Pereira* (7)
Alguns documentos históricos de valor incalculável
Beja Santos
Não é de mais enfatizar que “O Meu Testemunho, uma luta, um partido, dois partidos”, de Aristides Pereira (Editorial Notícias, 2003) é, política e literariamente falando, uma narrativa insípida e incolor de um dos dirigentes históricos proeminentes do PAIGC, mas uma qualidade impressionante de informação por parte de alguns dos entrevistados e um apenso documental riquíssimo para quem quer estudar as génese da luta armada na Guiné e procurar saber, com conhecimento de causa, a trajectória deste movimento de libertação até à independência, torna a obra de leitura obrigatória.
Logo à cabeça os primeiros estatutos do PAIGC, datados de 1956, falava-se então no PAI – Partido Africano da Independência que, escreve-se em tal documento “reserva-se o direito de formar com outras organizações, partidos, movimentos ou frentes de luta anticolonialista, da Guiné dita portuguesa, de Cabo Verde e de outros países sob dominação colonial portuguesa, uma Frente unida para coordenar a luta contra o colonialismo português e abreviar a sua liquidação total”. Esses estatutos incluíam uma forma de organização bastante molecular, um autêntico organograma de bases até alcançar uma teia federal.
Outro documento, datado de 14 de Julho de 1960, está já o PAIGC instalado em Conacri, com autoria de Amílcar Cabral (não se surpreendam com a pergunta: haverá algum documento de essência ideológica do PAIGC que não tenha saído do punho de Cabral?) em que se procura explicar a quem disso tivesse curiosidade o que queria o PAIGC tanto para a Guiné como para Cabo Verde, era uma autêntica carta de apresentação que se podia até ter publicado num jornal. Segue-se a criação do Movimento de Libertação da Guiné e Cabo Verde, também de 1960, e que aparece como uma tentativa de convergência dos diferentes movimentos de independência para a acção comum (nesta época, iniludivelmente, a clivagem cabo-verdiano e guineense já era bem patente). O documento seguinte prende-se com o discurso de Amílcar Cabral numa conferência realizada no Cairo, em Março de 1961, pretende dar a conhecer, no plano internacional, a luta conduzida pelo PAIGC. Uma obra-prima de comunicação.
O chefe da delegação da PIDE de Bissau, Costa Pereira, é o autor de um documento datado de Janeiro de 1963, de incontestável importância para confirmar a evolução na luta pela independência na Guiné, a partir da segunda metade dos anos 50. Explica claramente a constelação de grupos, refere a luta dos partidos nacionalistas com sede no Senegal e esmiúça os acontecimentos de Julho de 1961, no Norte, em São Domingos, Suzana e Varela. Aborda as prisões efectuadas pela PIDE, no início de 1962 e as acções desenvolvidas na subversão sobretudo em território do Sul, caso de Bedanda, Cufar, Catió, Fulacunda, Empada, etc. Em Maio desse ano, agentes do PAIGC percorriam as tabancas das áreas de Fulacunda e Catió; nesta última localidade, os rebeldes passaram a destruir jangadas, fios telefónicos e outros meios de comunicação. A subversão, escreve o delegado da PIDE, passou para a região do Xitole, havia informação de diferentes bases de apoio seja no Senegal seja na Guiné-Conacri.
Igualmente de grande importância é o auto de interrogatório da PIDE a Albino Ferreira Fortes que, tendo participado nos preparativos militares para o desencadeamento da luta armada em Cabo Verde, acabou por trair o PAIGC, informando ao pormenor os aspectos desse plano. É um documento que permite clarificar as rotas de entrada e saída quer dos aliciados para a luta quer dos agentes da subversão, após preparação em países estrangeiros. Muitas das informações que Fortes prestou à polícia política aparecem confirmados noutros depoimentos de líderes cabo-verdianos como Silvino da Luz ou Agnelo Dantas. Segundo Fortes, o principal apoio ao PAIGC, a informação, armamento e financiamento, vinha da União Soviética, a China desconfiava de Cabral e da sua linha ideológica e por isso mesmo deixara de fornecer armas. Em declarações datadas de Abril de 1969, perguntado sobre os meios marítimos e aéreos do PAIGC, declarou que este dispunha de três pequenas lanchas, embarcações muitíssimo frágeis, normalmente ancoradas em Conacri. O partido, disse Fortes, não dispunha de quaisquer meios aéreos, aviões ou helicópteros. Quanto a transportes terrestres, o PAIGC dispunha de diversos camiões (entre 15 a 20), 10 ou 12 jipes e 3 ambulâncias. Nesta época, informou ainda Fortes, o PAIGC dispunha de cerca de 200 guerrilheiros à volta de Madina de Boé. A simpatia pela causa do PAIGC no Senegal, ao tempo, era quase nula, como quase nula seria a influência do partido nos meios governamentais de Dakar. Ainda segundo Fortes, a FLING, dirigida por Benjamim Pinto Bull, tinha caído em completo descrédito, perdera todos os apoios no interior da Guiné e na esfera internacional. Em países da “cortina de ferro”, Fortes sabia que os dirigentes do PAIGC tinham contactos regulares com líderes do Partido Comunista Português.
Seguem-se outros documentos com bastante interesse, como sejam as cartas de Amílcar Cabral à estrutura clandestina do PAIGC em Cabo Verde e, na parte final do apenso documental, o estudioso ou o curioso têm à sua mercê as actas de uma série de encontros ocorridos nas matas da Guiné no período entre as negociações de Londres e de Argel (23 de Julho de 1974 a 18 de Agosto de 1974), entre o comando do Exército Português e o PAIGC. Tais encontros permitiram ajustar a situação negocial à correlação de forças no terreno, foram essas negociações que abriram as portas ao reconhecimento do estado da Guiné-Bissau pelo Governo português.
E assim chegamos às últimas peças de indiscutível valor histórico, como o relato da reunião entre o encarregado do Governo da Guiné e uma delegação do PAIGC, a 31 de Agosto de 1974, reunião que se realizou na sequência da assinatura dos Acordos de Argel, bem como a circular do comando militar do PAIGC às diferentes unidades no terreno com informações detalhadas sobre as modalidades e o plano de retracção das tropas portuguesas na Guiné.
Conclui-se deste modo a recensão de uma obra de consulta obrigatória para o estudo da guerra da Guiné, na óptica de quem militou do lado do PAIGC. É graças à leitura destes documentos que se torna perceptível quem foi o motor da consolidação da mentalidade ofensiva, dentro do PAIGC, e soube imprimir entusiasmo e consistência às formas de luta, que conduziram à independência e ao reconhecimento do Estado da Guiné-Bissau.
____________
Notas de CV:
Vd. último poste da série de 3 de Junho de 2011 > Guiné 63/74 - P8368: Notas de leitura (244): Guynea, de Arlinda Mártires (Mário Beja Santos)
(*) Vd. postes de:
20 de Abril de 2011 > Guiné 63/74 - P8141: Notas de leitura (230): O Meu Testemunho, uma luta, um partido, dois países, por Aristides Pereira (1) (Mário Beja Santos)
28 de Abril de 2011 > Guiné 63/74 - P8176: Notas de leitura (234): O Meu Testemunho, uma luta, um partido, dois países, por Aristides Pereira (2) (Mário Beja Santos)
3 de Maio de 2011 > Guiné 63/74 - P8209: Notas de leitura (235): O Meu Testemunho, uma luta, um partido, dois países, por Aristides Pereira (3) (Mário Beja Santos)
17 de Maio de 2011 > Guiné 63/74 - P8286: Notas de leitura (239): O Meu Testemunho, uma luta, um partido, dois países, por Aristides Pereira (4) (Mário Beja Santos)
20 de Maio de 2011 > Guiné 63/74 - P8304: Notas de leitura (240): O Meu Testemunho, uma luta, um partido, dois países, por Aristides Pereira (5) (Mário Beja Santos)
e
27 de Maio de 2011 > Guiné 63/74 - P8335: Notas de leitura (242): O Meu Testemunho, uma luta, um partido, dois países, por Aristides Pereira (6) (Mário Beja Santos)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Sem comentários:
Enviar um comentário