sábado, 11 de junho de 2011

Guiné 63/74 - P8402: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (24): Perdendo a plumagem

1. Mensagem de José da Câmara* (ex-Fur Mil da CCAÇ 3327 e Pel Caç Nat 56, Guiné, 1971/73), com data de 1 de Maio de 2011:

Meu caro amigo Carlos Vinhal,
Quarenta anos depois volto à Mata dos Madeiros. É uma história simples, igual a muitas outras passadas por muitos de nós, mas que a esta distância nos trazem um pequeno sorriso aos lábios. Bem precisamos disso nos dias que correm.

Para ti e para os nossos camaradas os meus votos de muita saúde.
Um abraço amigo,
José Câmara


Memórias e histórias minhas (24)

Perdendo a plumagem

As sentinelas perscrutavam o silêncio e o breu daquela noite cálida, serena, estrelada. Eles eram a garantia possível da segurança aos nossos extenuados corpos entregues ao macio barro vermelho da Mata dos Madeiros. Estoicamente tentavam distinguir os sons desconhecidos que chegavam de todos os lados.
Para periquitos a situação não podia ser mais enervante. O tempo ajudaria a distinguir todos os sons das matas guineenses.

Para nós, furriéis milicianos, a nossa vida era bem mais fácil que a das sentinelas. Tínhamos que fazer uma ronda nocturna e mesmo essa estava muito facilitada pela competência, camaradagem e qualidades humanas do nosso Fur Mil Trms João Henrique Nunes Correia.

Ele tinha requisitado Walkie Talkies, um luxo do tempo, que estavam distribuídos pelos postos de sentinela, o que facilitava a comunicação entre todos. Para além disso, o Correia passava longas horas acordado na noite, mantendo o contacto constante com o pessoal de serviço. Por outras palavras, ajudava-nos a manter os sentinelas alerta e permitia-nos descansar um pouco mais.
O João Correia era aquilo a que podíamos chamar de um homem às direitas. Por isso mesmo gozava da simpatia de todos nós.

O Fur Mil Trms João Correia (de braços cruzados) no convívio da CCaç 3327

Embora extenuados, alguns de nós preferíamos ser acordados para fazermos a nossa ronda pelos postos. Entendíamos que a nossa presença junto dos sentinelas, por alguns minutos que fosse, não só era reconfortante para eles, mas também servia de exemplo. Ninguém era melhor que ninguém.

Foi assim que numa noite o Correia foi acordar-me um pouco antes da minha hora de serviço. Vinha afogueado e apercebi-me de imediato que algo de muito grave se estava a passar.

Pedindo desculpa por me ter acordado um pouco antes da minha hora de ronda, de imediato acrescentou que o sentinela do canto, junto da estrada, virado ao Cacheu, tinha ouvido vacas a berrar, visto sombras a passar na frente do posto e o motor de uma camioneta para os lados da estrada velha, a picada que ligava o Bachile ao Cacheu..

O que podia dizer ao sentinela, indagava ele.

Apercebi-me que algo não parecia bater certo. Sombras andantes e vacas a berrar junto do acampamento nem pensaria ao diabo. Mas o barulho dos motores ao longe deixou-me apreensivo. Não éramos alheios a que a mítica Caboiana era frequentemente visitada pelo PAIGC.

- Ele que dispare nas sombras de duas pernas. - Foi a minha resposta

Pum! Pum! Pum! Três tiros em cadência, demonstrativas de presença de espírito de uma sentinela em controlo das suas emoções. Não obteve resposta retaliatória!

Enquanto o Correia corria para o posto de transmissões, eu voava sobre as minhas canetas pelas ruelas da nossa aldeia apenas iluminada pelas lâmpadas do firmamento em direcção ao posto de sentinela.

Quando cheguei junto da sentinela, esta, demonstrando bastante sangue-frio e ainda antes que lhe fizesse qualquer pergunta, disse-me:

- Eu fiz o que o meu furriel mandou!

Foi então que me apercebi que o Correia deveria ter mantido o botão do comunicador do Walkie Talkie aberto e o sentinela ouvira a minha resposta à sua pergunta.

O nosso Capitão Alves, que também chegara ao posto, decidiu que seria melhor ficarmos alerta até porque os alvores da manhã se aproximavam. Ainda tínhamos presente a fogueira que ardera toda a noite e que precedeu a emboscada aos Comandos.

Fui juntar-me à minha Secção. A palavra do acontecido já tinha passado por toda a gente.

De repente…

...as vacas voltaram a berrar e mais uma vez ouvimos o motor da camioneta ao longe, muito ao longe.

O José Cristiano Arruda Massa, um micaelense da bacia leiteira dos Arrifes, muito sério diz:

- Meu furriel, as vacas de São Miguel não berram desta maneira!

- As do Faial também não, respondi. Mas e o barulho do motor o que é?

- Eh meu furriel, aí é que a porca torce o rabo - respondeu o Massa na sua forma peculiar de dizer as coisas.

Com o raiar dos alvores da manhã, os nervos suavizaram-se e a lição foi aprendida.

Nessa noite de Junho de 1971, soubemos que as sombras andantes de quatro pernas apenas se movimentavam em duas, que o choro das hienas podia ser confundido com berros de vacas, mas não das açorianas, que o barulho dos motores das lanchas da marinha no rio Cacheu podiam ser emitidos pelas camionetas do PAIGC.

Aos poucos íamos perdendo algumas penas da nossa bela plumagem de periquitos. Afinal a velhice também se construía com pequenas histórias como esta.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 7 de Janeiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7566: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (23): Com humor também se fazia a guerra

1 comentário:

Jorge Fontinha disse...

Salta pira...

Aquele abraço.

Jorge Fontinha