O Regresso dos Heróis*
Por
Domingos Gonçalves
(Ex-Alf Mil da CCAÇ 1546/BCAÇ 1887)
DEDICATÓRIA
A todos os colegas da CCAÇ 1546 do BCaç 1887
IV - O ÚLTIMO AZAR
Dia 14
Ao alvorecer o Alfange encostou ao cais de Binta e todo o pessoal foi autorizado a desembarcar. Depois de uma noite sem dormir, passada no rio, sair do barco foi um grande alívio. Ao sentirmos sob os nossos pés terra firme todos sentimos um grande alívio, um alívio enorme, que só as pessoas que algum dia tiveram a sensação de insegurança que nós tivemos durante a noite, poderão calcular.
Pelas doze horas, um Cabo da Companhia de Caçadores N.º 1546, o Cabiço, pegou numa granada de “rocket”, que estava abandonada, sem quaisquer condições de segurança, para a mostrar a um colega da Companhia de Comando e Serviços. Depois, atirou-a ao chão, ou ela caiu-lhe, e a granada explodiu com toda a violência. O Primeiro Cabo sofreu ferimentos mortais, tendo sucumbido ao fim de poucos minutos, enquanto que os dois outros colegas sofreram ferimentos menos graves e foram evacuados para Bissau de helicóptero. Chama-se a isto o azar do último dia... A morte a chegar quando já ninguém espera por ela...
Impressionante fatalidade... Iniciámos a viagem cheios de esperança, e o destino obrigou-nos, inesperadamente, a regressar ao ponto de partida... Era a morte que ficava faminta, desdentada e emagrecida, se não tivéssemos vindo outra vez ao seu encontro, para desta forma lhe saciarmos o apetite. E quantas vidas ela ceifará ainda, assim rudemente, de entre aqueles que vieram agora ocupar o espaço que deixámos livre!
Esta morte é apenas o resultado da imprudência e do desleixo do nosso chefe. Quantas vezes lhe foi dito:
- Capitão... Mande retirar dali aqueles explosivos... Qualquer dia assiste-se aqui a um acidente... Até o seu cachorro pode causar ali uma explosão...
Mas foram inúteis todas as palavras... Todos os avisos.
E agora que o pior aconteceu, não se pede responsabilidade a ninguém... Perdeu-se mais uma vida assim tão estupidamente, e ninguém vai incomodar-se com isso! Como tem pouco valor para estes comandos a vida de um soldado!
Pelas três horas da tarde todo o pessoal regressou para bordo do Alfange, e escoltados por outro barco de Guerra, que entretanto chegara a Binta, e por uma esquadrilha de aviões T6, que foram sobrevoando e observando as margens do rio, iniciámos de novo a viagem para Bissau, desta vez sem qualquer incidente.
A viagem foi longa e penosa. Este tipo de passeios pelo rio não deixam de ser martirizantes, mesmo quando se leva na alma a alegria que sentem os fugitivos do inferno.
Dia 15
Pelas nove horas da manhã o Alfange atracava ao cais de Bissau. Apesar de muito cansados havia no rosto de todos nós uma sensação de alívio. Depois de tantas horas de ansiedade e sofrimento, era a sensação de entrar no paraíso.
As viaturas militares levaram-nos para Brá, Companhia de Adidos, onde ficámos a aguardar transporte para a Metrópole. Somos quase pessoas livres... Este mundo de escravatura e de senhores de comportamentos loucos não passará, dentro de breves dias, de uma longínqua recordação. Agora, durante breves dias, vamos gozar as últimas delícias de Bissau, nas explanadas simples, bebendo cerveja fresca e saboreando mariscos. Serão estas as melhores lembranças que vamos guardar desta terra onde nunca entendemos o que nos mandaram para cá fazer. E agora já é tarde... Nunca devidamente o entenderemos...
Dia 16
Vamos passando o nosso tempo nesta cidade que, sem nós, seria uma terra sem vida e sem movimento... É uma folia... Cada um, na medida das suas possibilidades, vai comprando algumas recordações...
É o dinheiro da tropa que dá vida a este comércio, a estes bares e restaurantes, a toda esta miserável capital da Guiné...
O que há de bom aqui são os mariscos... E os bons petiscos dos pequenos restaurantes! Como há dificuldades em trocar os escudos que circulam aqui na Guiné pelos que circulam na Metrópole, e quando tal se consegue é com razoável prejuízo, gastam-se aqui as parcas economias constituídas com a parte do pré que nos pagaram aqui. É que nas localidades do interior, por onde andámos, nem condições havia para se gastar dinheiro. Se exceptuarmos as mal abastecidas cantinas militares, onde para além de bebidas, conservas e alguns artigos de higiene nada mais havia para comprar, essas localidades, regra geral, não tinham casas comerciais, nem cafés, nem restaurantes, nem cinemas. Por onde andámos apenas havia fome miséria e pobreza, que a presença da tropa às vezes ajudava a minorar. E talvez seja esse o único factor positivo que levará, amanhã, estas populações a lembrarem-se de nós.
Dia 17
Foi igual ao dia 16.
Dia 18
Foi igual ao dia 17
Dia 19
Acompanhei 20 soldados a exame de 4ª classe. Fizeram as provas escritas. A sabedoria deles não era muita, mas eu lá fui fazendo de espírito santo de orelha. Devem passar todos.
Dia 20
Voltei com os soldados a exame. Hoje fizeram as provas orais. Passaram todos. Este diploma é a única coisa importante que levam desta terra... Que lhes seja muito útil, é tudo quanto lhes desejo.
Dia 21
Nada de especial aconteceu...
Dia 22
Imposição das insígnias das campanhas da Guiné a todo o pessoal do Batalhão de Caçadores 1887. Houve desfile com fanfarra. Além do Batalhão, desfilou um Esquadrão de Cavalaria, uma Companhia Independente e um Pelotão de outra Arma qualquer, que não cheguei a identificar.
O Batalhão N.º 1887 recebeu um louvor colectivo do Comandante Militar da Guiné. É uma riquezinha que nos vai servir para muita coisa! Se estes soldados fossem viver dos louvores colectivos, ou individuais, que a tropa dá, quando muito bem se lembra, estavam todos mais do que tramados. Se ao menos estes louvores servissem para limpar das cadernetas militares os castigos que sem justificação razoável em muitas delas constam averbados, e que vão impedir que muitos destes homens possam aceder a empregos públicos, enfim, que se desfizessem por aí em louvores! Mas, com aquilo que não vai servir de nada para ninguém, porque nos continuam a chatear!
Seria bem melhor que estes homens quando chegassem às suas terras pudessem contar com estruturas de apoio que os ajudassem a conseguir trabalho, a ter condições de acesso a cuidados de saúde, de que tanto vão carecer, e a uma boa integração no meio social e familiar. Sem isso, para que vão servir as condecorações e os louvores? Todos nós, em maior ou menor grau, precisaremos de ajuda... Mas de louvores, presumo, ninguém precisa... Muito menos tratando-se destes louvores colectivos...
As sequelas desta vida de sofrimento, de um “stress” quase permanente, vão fazer-se sentir ainda por muito tempo, ou talvez para sempre. E não serão estes louvores a amenizar, minimamente, as suas consequências.
Dia 23
Aproxima-se o dia do embarque. O “Quanza”, velho navio de passageiros que nos vai levar para Lisboa, está quase a chegar a Bissau. Em breve partiremos... O Comandante da Companhia N.º 1548, do nosso batalhão, reuniu num jantar, no Solar dos 10, os Oficiais e Sargentos da Companhia. Não reuniu nesse jantar os soldados, pois seria um grupo muito numeroso e não tinha condições para o fazer. Ofereceu, no entanto, uma recordação a cada um dos seus homens. Teve, efectivamente, uma ideia feliz. Só os mártires da Companhia de Caçadores nº 1546 não têm direito a nada! Nem ao calor de uma palavra de gratidão e de amizade!
Navio Misto Quanza. Ano de registo, 1929; ano de abate, 1968
Com a devida vénia a Navios Mercantes PortuguesesDia 24
À noite, pelas nove horas, fui reconhecer as instalações do Quanza, destinadas aos nossos homens. O barco é bastante velho mas, o que interessa, é que nos leve em segurança até Lisboa. O nosso capitão fica em Bissau a resolver, ainda, alguns problemas relacionados com a entrega de material. A notícia agradou a toda a gente. Ficamos com a certeza de que ninguém nos vai incomodar durante a viagem. E todos dizem:
- Deus seja louvado!
Os heróis têm finalmente direito a que os deixem viajar em paz. E quem não foi herói deve mesmo ficar para trás e fazer a viagem longe da companhia destes homens que merecem que a história os não esqueça. Só os grandes em dignidade têm efectivamente direito a fazer em conjunto esta viagem tão desejada.
Dia 25
Pelas nove horas a Companhia disse adeus ao aquartelamento de Brá, na periferia de Bissau, o mais sujo e detestável de quantos até hoje conheci.
Pelas nove horas e meia os homens da Companhia começaram a subir para o barco, com as respectivas bagagens. O almoço teve lugar já dentro do Quanza.
Pelas duas horas, o Comandante Militar da Guiné subiu a bordo, fez um breve discurso e despediu-se de nós.
Pelas três da tarde o pessoal estranho, aquele que não ia seguir viagem, saiu do barco.
Às quinze horas e dez minutos locais o barco começou a efectuar as manobras para sair do cais de acostagem.
Às quinze horas e vinte minutos, serenamente, o Quanza já descia a barra do Geba, em direcção ao mar Atlântico.
Adeus, Guiné!
(Continua)
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Notas de CV:
(*) O Regresso dos Heróis é um livro do nosso camarada Domingos Gonçalves (ex-Alf Mil da CCAÇ 1546/BCAÇ 1887, Nova Lamego, Fá Mandinga e Binta, 1966/68), edição de autor.
Vd. último poste da série de 13 de Agosto de 2011 > Guiné 63/74 - P8666: O Regresso dos Heróis (Domingos Gonçalves) (3): O último susto
1 comentário:
Como confirmei no outro post, lembro-me do meu pai (c. cac. 1548) me contar esta historia, e este ultimo azar…
Abraço Sérgio Barbosa
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