sexta-feira, 14 de outubro de 2011

Guiné 63/74 - P8903: Notas de leitura (287): Antologia da Memória Poética da Guerra Colonial, de Margarida Calafate Ribeiro e Roberto Vecchi (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos* (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 15 de Setembro de 2011:

Queridos amigos,
Trata-se da mais detalhada antologia poética, decorre de um projecto de considerável dimensão, contou com o apoio dos autores, de entidades, de editores e de arquivos. Temos aqui a guerra e o seu esconjuro, o poema que liberta pela denúncia ou a ode que expõe o vate aos deveres do combate, a poesia como força de exemplo, a poesia para cantar ou para espantar fantasmas.
Quem poetou tem aqui lugar, independentemente da sua ideologia, das suas concordâncias e discordâncias. É um monumento a todos os poetas da guerra colonial. É uma antologia que a todos nós diz respeito.

Um abraço do
Mário


Antologia da memória poética da guerra colonial

Beja Santos

“Antologia da Memória Poética da Guerra Colonial”, organizada por Margarida Calafate Ribeiro e Roberto Vecchi (Edições Afrontamento, 2011) é sem dúvida alguma uma iniciativa para saudar, pela compilação de centenas de documentos, porventura a maior comunidade de memória poética da guerra colonial até hoje elaborada. É uma recolha de valiosos testemunhos subjectivos de, como escrevem os responsáveis pela antologia, de “eus estilhaçados por uma guerra”. Como se justificam: “A feitura desta antologia não pressupôs apenas um exigente trabalho de investigação, recolha, leitura e selecção. Implicou também um relevante esforço crítico para recolocar a questão do que é a poesia, sobretudo quando ela é portadora de uma memória subjectiva – memória poética – e, de qualquer modo, de uma memória ameaçada”.

Os autores preferem falar mais da memória poética da guerra colonial, abandonando discretamente o tratamento da poesia da guerra colonial. Esta memória é heterogénea, é o património de uma geração, há o material poético e a comunicação que dela emana: perdas e ganhos; exaltação e exultação; saudade e quebranto, ruptura com a solidão, ultrapassagem do precário ou do contingente. Uma antologia onde toda uma geração se pode rever, para lá das suas posturas ideológicas, porque essa memória poética é polifónica, é irmanada pela dor, fala do país, do inimigo, da paz, do apelo à vida. Os organizadores entenderam pôr esta memória poética em diálogo com as fotografias de Manuel Botelho. O produto final é manifestamente ousado, o precário da escrita olha-se ao espelho de um contraponto montado que fala da guerra com os olhos de hoje. Uma ousadia estética que torna a edição da antologia mais ambiciosa e intemporal.

A obra estrutura-se em “partidas e regressos”, “quotidianos”, a linguagem da morte, o dar guerra à guerra, o cumprir o dever da guerra, o pensar a guerra e a sua memória, os seus diferentes cancioneiros, elaborados ou populares. Como expressam os autores, uma antologia é sempre um olhar, entre a cumplicidade e a preocupação em acolher o maior denominador comum. Estão lá poetas dos três teatros de operações, estão lá poetas que contestaram na retaguarda ou que deram, nessa mesma retaguarda, ânimo ao sonho do império. Escusado é dizer que se procede a uma mera chamada de atenção para alguma da poesia de ex-combatentes da Guiné ou que por causa da Guiné versificaram. Está lá Armor Pires Mota que nos diz “Mãe, o teu filho anda na guerra:/ Traz os olhos gretados de lágrimas e medos/ e o pão amassado em sangue é boca a sangrar”.

Está lá Cristóvão de Aguiar e José Vale de Figueiredo com um poema intitulado “Gandembel, Natal 68”. Há poemas de Graça Padrão e de Álamo Oliveira, de José Brás, de Gustavo Pimenta que nos incita ou apela: “O meu País/ (o meu País existe, inteiro, na minha ideia)/ chora/ porque em seu nome combato/ descombato/ desbravo mato/ e mato./ O meu País/ está em sentido ao meu lado/ ressentido do meu fado/ mas orgulhoso porque diz/ que se me não curva a cerviz./ O meu País/ urge ser reinventado”.

Está lá, de Ruy Cinatti, o “Poema de uma guerra longe”, que veio por carta até Missirá, em resposta ao relato que eu lhe fizera de uma emboscada, já consta de diversas antologias, entreguei-o à Sociedade de Geografia de Lisboa, exactamente assim: “Sete horas húmidas, algures./ Progressão, fardas ensopadas./ Silêncio na terra de combate./ Silêncio nos corpos./ Estacas calcinadas./ O piar das aves, o olhar súplice/ Dois tiros quase num só eco./ O desabar das folhas, ramos rápidos./ Um grito que se apaga./ Missão cumprida, a meta adivinhada./ Febre sem alma ou acordo./ O peso súbito de um morto/ Caindo nos ombros estreitos,/ Doloridos,/ Da minha miséria”. Está lá “Os mortos de Pidjiquiti”, de Fernando Grade.

Está lá o mais belo de todos os poemas de todas as frentes de combate “Nambuangongo meu amor”, de Manuel Alegre. Como está lá, em nome de todas as guerras, “O menino da sua mãe”, de Fernando Pessoa. E o cancioneiro faz-se representar pelo inesquecível “Adeus Guiné”, de Mário Ferreira, que todos nós ouvíamos na rádio na interpretação do Conjunto Típico Armindo Campos. E há espaço para rimas de gosto popular como aquelas que são da responsabilidade de Santos Andrade: “Enquanto estivemos aquartelados/ nos arredores de Farim,/ passou-se o bom e o ruim/ mas hoje estamos descansados./ Houve o regresso de uns refugiados/ e o chefe dos CTT se deixou apanhar./ Depois de muito se lutar/ Canjambari se ocupou,/ e uma pista se arranjou/ para a avioneta aterrar”. Há também espaço para o brejeiro e o chocarreiro, caso do “Turismo da Guiné”, de Florêncio Silva e outros: “A situação na Guiné/ É melhor do que se pinta,/ Tente ir de bicicleta/ De Ganturé até Binta” ou “Pulseiras de prata bonita/ Adquirem-se em Bafatá,/ Uma bojarda nos cornos/ Apanha-se em Canquelifá”.

No posfácio, os organizadores, a propósito do registo estético, subjectivo e imediato, ou da produção pós-traumática da guerra, analisam a Poesia 61, com os seus poéticos críticos da retaguarda (caso de Gastão Cruz ou Luiza Neto Jorge), as diferentes incursões de poetas nacionalistas, antes e depois do 25 de Abril, detêm-se na poesia de José Bação Leal, Manuel Alegre, Fernando Assis Pacheco, os três unidos por aquilo que se poderá chamar a geração “habitada pela mesma ferida” e finalmente tecem considerações sobre a produção cultural desta poética, entrosando-a com a própria canção de protesto.

É uma longa viagem ao património de sofrimento que esta poesia expõe e possibilita a construção de futuras memórias.
____________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 10 de Outubro de 2011 > Guiné 63/74 - P8885: Notas de leitura (285): Até Lá Abaixo, de Tiago Carrasco (Mário Beja Santos)

Vd. último poste da série de 13 de Outubro de 2011 > Guiné 63/74 - P8900: Notas de leitura (286): Lugar de Massacre, de José Martins Garcia (José Manuel M. Dinis)

1 comentário:

Anónimo disse...

Não Mário, meu não está lá nada porque depois de ajustarmos o que deveria sair; depois de lhes ter garantido que seria o texto todo ou não autorizava que saísse fosse o que fosse, sem respeito pelo acordado e depois até me ter sido prometido e concordado que só o todo fazia sentido, deceparam e transformaram numa coisa que acho que não é minha. Por isso, abandonei a sessão de apresentação a Antologia em Lisboa.
José Brás