1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 14 de Setembro de 2011:
Queridos amigos,
“Até lá abaixo” é uma reportagem soberba, versa a aventura de três portugueses que viajam sem cheta pelo continente africano, três jovens que decidiram largas os seus empregos mal pagos e confrontarem-se com o continente dito exótico e dramático. É uma narrativa esplêndida, sem hiatos ou sobrecargas. Uma mensagem muito bonita para a chamada geração rasca. O livro vale a pena ser lido do princípio ao fim, tem descrições empolgantes, intensas, comoventes. Está aqui um pouco da África à procura de bússola, a começar pela nossa Guiné-Bissau.
Um abraço do
Mário
Tiago Carrasco e amigos visitam a Guiné-Bissau
Antes do Mundial da África do Sul
Beja Santos
O que consta na lombada do livro é bem sugestivo: “Em 2010, o jornalista Tiago Carrasco e dois amigos, o fotógrafo João Henrique e o cameraman João Fontes decidiram largar os seus empregos mal pagos e concretizar um velho sonho: atravessar o continente africano de automóvel. O pretexto que arranjaram foi o Mundial de Futebol. A viagem seria muito mais do que um longo passeio destinado a celebrar o desporto mais popular do mundo – seria, sim, o maior desafio da vida destes três homens. Este é o relato das emoções e das peripécias que Tiago Carrasco e os seus companheiros de estrada viveram ao longo desses 150 dias alucinantes, passados no deserto e na selva, em aldeias perdidas e bairros da lata de grandes cidades, em lugares vergados à pobreza e à violência e noutros onde a esperança subsiste apenas por milagre. "Até lá abaixo" descreve-nos esta epopeia de 30 mil quilómetros de Marrocos a África do Sul, passando por 21 países, que é também uma viagem interior aos nossos medos e à nossa capacidade de superar as maiores contrariedades”.
O livro chama-se “Até lá abaixo – três homens, um jipe e 150 dias de aventuras em África”, por Tiago Carrasco, Oficina do Livro, 2011.
O rimo da narrativa é febril, convincente, não dá tréguas à expedição da leitura. Os três jovens arriscaram tudo, viram com os seus próprios olhos gente que está disposta a tudo para levar por diante os seus sonhos, viram a miséria mais desalmada, a corrupção mais alvar, transmitem pungentemente o drama do Saara Ocidental e dos seus sarauís, percorreram desertos hostis, entraram em bairros miseráveis, conheceram gente extraordinária, chegaram subitamente à fala com portugueses. De Lisboa passaram para Marrocos, daqui para o Saara Ocidental, depois a Mauritânia, a Gâmbia e a Guiné-Bissau. Como levam um orçamento miserável, quase aquém da sobrevivência, todo o acolhimento é bem-vindo. Em Bissau ficara em casa emprestada, mesmo sem luz e a ter que transportar a água em bidões e em garrafas. Escreve o autor: “Bissau é a mais subdesenvolvida das duas dezenas de capitais por onde passámos nesta aventura. Não tem multibanco, comboio ou fábricas. Apesar de não terem nada, os guineenses são um povo afável. A criminalidade violenta é residual e a mendicidade muito menor que nos países francófonos. Não há trabalho. A nossa vizinha Natividade, de 41 anos, tirou o curso de Direito na ex-Checoslováquia mas não conseguiu ser advogada na Guiné. Emigrou para Lisboa e passou a vender peixe no mercado da Encarnação. Há dois anos foi obrigada a voltar para Bissau porque o governo lhe queria tirar a casa. Abriu uma barraca de venda de cerveja e peixe grelhado mesmo em frente à nossa casa”.
Encontraram-se com uma lenda antiga do futebol, Artur Pinhel, e ficaram a saber de que modo os atletas guineense ficaram divididos entre a guerra da independência. Visitaram o Quelelé, construído por antigos combatentes da guerra colonial. Foi aqui que visitaram uma rádio comunitária e Tiago Carrasco observa: “Como os correios mal funcionam, são as 36 rádios comunitárias do país que informam quem nasce e quem morre, notificam os moradores de quando têm de comparecer em tribunal ou dão informações sobre o pagamento de impostos e rendas. Uma renda em Quelelé pode chegar aos 40 € e o salário de um professor não excede os 60, a grande maioria dos guineenses come apenas uma refeição por dia”.
Descrevem uma Bissau reinadia, uma cidade economicamente parada onde a estátua de Amílcar Cabral parece um fantasma. Graças a amigos da AMI, foram visitar Bolama, a antiga capital da Guiné Portuguesa está ao abandono, os edifícios a ruir e as estradas intransitáveis. Toda a gente se queixa que se vive pior do que na era colonial. O palacete do antigo governador cai aos bocados, cabras, vacas e porcos, vagueiam por ali sobre um chão coberto de excrementos, lixo e sinais de fogueiras. Os mais jovens migraram para Bissau. Tiago e os amigos visitam o antigo cemitério português de Bolama, com cruzes de pedra sobre uma alcatifa de ervas secas. Campas e jazidos mostravam nomes portugueses.
Inevitavelmente, fala-se do narcotráfico, aquelas ilhas dos Bijagós têm uma pista de aterragem para os traficantes, são eles que controlam o país.
Tiago e amigos passam o carnaval em Bissau, celebram o evento em casa de Yolanda, uma funcionária da embaixada de Espanha, é nisto que aparece um vizinho de um deles no Bairro Alto. Numa viagem para o Biombo lêem no Diário de Bissau uma sucessão de acontecimentos ligados ao narcotráfico, a começar pela detenção de avioneta suspeita na praia de Gã-Tumane, detenção de dois alemães quando se preparava o descarregamento de droga na ilha de Bubaque. Escrevem: “Os cartéis mexicanos, colombianos e bolivianos aproveitaram a fragilidade da Guiné-Bissau para usar o país como plataforma de cocaína para a Europa – com avionetas que aterram em ilhas desabitadas e lanças rápidas que aportam no arquipélago dos Bijagós. A droga chega à Guiné-Bissau e é depois transportada por via marítima ou terrestre para a Europa (…) A Guiné-Bissau é o primeiro narco-estado africano. Na capital, multiplicam-se as histórias sobre a presença de traficantes sul-americanos. Contaram-me que um deles entrou num banco com sacas de dinheiro e lhe foi recusado o depósito. Num país com um dos quatro PIB mais baixos do mundo, os milhões de cocaína continuam a circular pelos bolsos dos poderosos. Só duas das apreensões feitas em 2007, superiores a 600 quilos e estimadas em 20 milhões de euros cada, representam cerca de 50 % do PIB da Guiné. As lutas entre políticos e militares fazem-se pelo controlo das redes de distribuição. Por exemplo, em 2008, um avião venezuelano aterrou no aeroporto de Bissau alegando problemas técnicos. Umas horas mais tarde chegou uma avioneta de Dakar para prestar assistência. Nenhum dos aparelhos tinha plano de voo. O exército formou um cordão em redor dos dois aviões e descarregou-os sobre as ordens de Papa Camará, Chefe da Força Aérea. A Polícia Judiciária foi afastada do local. O governo só foi informado seis dias depois. Naquele dia, 514 quilos de cocaína foram colocados na Europa a bordo da avioneta”.
Tiago e os amigos ainda visitam Bafatá e assistem a um concerto de balafon, um xilofone feito com madeira pau-de-sangue. O país é paupérrimo mas tem música muito bela. E da Guiné-Bissau os aventureiros seguiram para o Mali, o relato já não tem cabimento no nosso blogue.
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 7 de Outubro de 2011 > Guiné 63/74 - P8868: Notas de leitura (284): Orlando Ribeiro, Guiné, 1947, Cadernos de Campo (Mário Beja Santos)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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