1. Outra história do José Ferraz de Carvalho, filho de um oficial da marinha, emigrante nos EUA desde 1970 (O Zé vive atualmente em Austin, Texas), ex-Fur Mil Op Esp, CART 1746 (Xime, 1969; CCS/QG, Bissau, 1969/70)(*)
Companheiro e Camarada Luís: Outra história humorística do meu tempo na CCS/QG-Bissau.
O tal Primeiro que tinha recentemente chegado de Lisboa, e que era da GNR (*), de início trabalhou para a Secção de Justiça do QG mas fez tal granel com a arquivo que ninguém conseguia encontrar nada porque decidiu reorganizar o arquivo por ordem alfabética e não por ordem do processo. Foi portanto transferido para outra secção. (**)
Ora bem, em conversa com ele na messe de sargentos um dia perguntei-lhe:
- Então, ó meu Primeiro, que tal no novo trabalho? - Diz-me ele:
- Ah, nosso furriel, comecei ontem e agora tenho um trabalho muito importante.
- Ah sim, então diga-me o que é que faz ?
- Bom - diz-me ele - sento-me a minha secretária e tenho esta máquina e um carimbo com uma setazinha e então quando chegam mensagens eu agarro na máquina e imprimo na mensagem a data de recepção, depois pego no carimbo e aqui tenho que ter muito cuidado porque se a setazinha não está em frente do nome da pessoa para quem essa mensagem é dirigida, é uma chatice porque vai para outra pessoa...
- Ah - comentei eu - sim, senhor, isso é um trabalho da maior importância, ó meu Primeiro...
Fez-me então uma confidência:
- Ó nosso Furriel, eu tenho um problema com a essa máquina da data.
- Ah, sim? - digo eu - Qual é o problema ?
- Ontem a data estava correcta, hoje já tinha carimbado uma quantidade de mensagens quando me dei conta que tinha a data de ontem e não a de hoje... O que é que eu faço ?...
Eu não queria acreditar no que o pobre Primeiro me estava a dizer e pensei que estava a reinar comigo e então continuei:
- Bom, meu Primeiro, lá na GNR não tinham esse tipo de máquina?
- Não - responde-me ele - lá no quartel era tudo feito à mão...
- Não me diga!... Deixe-me lá ver se o posso desenrascar... - Diz-me ele:
- Ficava-lhe muito agradecido...
E aqui vem a estocada:
- Pois é, ó meu Primeiro, o que o senhor tem na sua secretária é um destes modernos datadores e o que o senhor precisa é de pilhas.
- Muito obrigado... E a propósito, onde é que eu arranjo essas pilhas ?...
- Isso é facil, o Primeiro faz uma requisição em cinco cópias e apresenta-se na CCS/QG a despacho e eu peço ao nosso Capitão que assine essa requisição e com ela aprovada o Primeiro vai ao depósito e levanta essas pilhas.
- Mas, ó nosso Furriel, eu preciso delas hoje... Como é que faço essa requisição ?
- É simples, em papel timbrado e dirigida ao comandante da CCS/QG. O senhor escreve algo do estilo Vossa senhoria, meu capitão, venho por este meio requisitar pilhas para o datador da minha secção... O senhor assina e não se esqueça de escrever Aprovado e uma linha abaixo para o nosso capitão assinar...Bom, hoje depois do almoço passe por lá que eu arranjo-lhe isso... Até logo...
Eu a rir como um estúpido e a pensar:
- Vou reinar com o Langinhas [Cap Laranjeira Henriques, último comandante da CART 2339, Mansambo, 1968/69, colocado depois na CCS/QG, Bissau; fora colega de Liceu do Zé Ferraz]...
A minha secretária estava dentro do gabinete do Langinhas, por isso eu queria e podia ver a reacção dele quando esta partida se desenrolasse.
Aí chega o Primeiro, eu morto de riso, bate à porta do gabinete;
- Entre - diz o Langinhas...- Fazem as cortesias do costume e diz o Primeiro:
- Meu Capitão, aqui o nosso Furriel foi uma grande ajuda.
- Ah sim ? - responde o Langinhas -. E então o que é que quer ?
- Preciso que me assine esta requisição. - E põe-lhe o documento em frente...
Ah, pá, quando o Langinhas deixa cair a caneta... e dispara:
- Ó Primeiro, espere lá fora...
O Primeiro olha para mim com um ar amedrontado e lá vai porta fora.
Pergunta-me o Capitão:
- Ó Zé, o que é isto?
Quando lhe expliquei os antecendentes, rimo-nos a fartazana... Por fim, diz-me o Capitão:
- Manda lá entrar essa ave rara... - E dirigindo-se ao homem:
- Ó nosso Primeiro, aqui o nosso Furriel quis ajudá-lo mas não precisa desta requisição, essa máquina datadora não deve precisar de pilhas mas o nosso Furriel aqui vai consigo e ensina-lhe como mudar a data...Não é verdade, nosso Furriel?
Ah grande Langinhas, o ultimo a rir é o que se ri melhor...
Um forte abraço, Zé
__________________
Notas do editor:
(*) Vd. último poste da série > 2 de Dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9130: Se bem me lembro... O baú de memórias do José Ferraz (12): Os azares de um Primeiro, periquito, que apanhou a Flor do Congo, na sua primeira viagem a África...
(**) Veja-se esta história apenas como um momento de humor de caserna, um espécie de caricatura desenhada com o lápis grosso do caricaturista....Não se façam, portanto, generalizações abusivas, nem se vejam aqui intenções de atacar nenhuma classe profissional do exército português de então. Conheci gente de muito mérito entre oficiais, sargentos e praças. Mas também conheci gente que eram verdadeiros erros de "casting". Na Guiné, havia de tudo, até básicos que, à noite, viam elefantes junto ao arame farpado do quartel...
Devo acrescentar que tive, na Guiné, bons amigos entre os sargentos do quadro. E até ajudei, com explicações, pelo menos dois Primeiros (da CCAÇ 2590/CCAÇ 12, e da CCS/BART 2917) a prepararem-se para o exame de acesso à então Escola Central de Sargentos, em Águeda. Hoje, ao que sei, são majores reformados, embora nunca mais os tenha visto.
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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3 comentários:
Historietas um bocado mal contadas, não é?
Com todo o respeito e amizade,
António Graça de Abreu
Caro pessoal cá da Tabanca:
As duas estorietas do Zé Ferraz sobre este "1º" ... ora, o que dizer a propósito?
À primeira leitura pareceu-me que "um diabinho" irreverente, armado em furriel e na pele dum "jovem inconsciente", abusou um bocado da ingenuidade de alguém!
Imagino um certo "bullying", que se diz ser mais frequente hoje do que há anos atrás, pelo menos nas escolas, onde alunos com algum problema de ordem física ou mental podem ser presas fáceis.
Neste caso, somos levados a pensar na existência de algumas falhas na capacidade intelectual ou mesmo na inteligência e no raciocínio de alguém, falhas que era suposto não poder haver em quem atingiu tal posto militar. Mas existiriam mesmo?
Desconfio quando deparo com coisas que me parecem ser esquisitamente anormais. É que há muita maneira de caçar patos! E, para algumas das suas espécies, o caçador tem mesmo que usar os melhores disfarces.
Vamos a um caso, passado comigo:
Antes de integrar o batalhão destinado à Guiné, estive cerca de sete meses num quartel integrado numa companhia de instrução de recrutas. Mas sucedeu que a segunda metade desse tempo foi passada por mim na secretaria dessa companhia em vez de estar a dar instrução. Porquê? Porque o seu responsável deu a entender ao comandante da compª que havia muita confusão na secretaria, que era difícil dar a volta àquilo a não ser que fosse ajudado. Para isso pedia ao comandante um cabo miliciano para o ajudar, o qual seria eu.
Não sei que razões apresentou mas, por conversas posteriores, cheguei à conclusão que alegou ter algumas insuficiências para chefiar a secretaria, talvez um certo grau de analfabetismo funcional, como hoje se diz.
O comandante satisfez o seu pedido. Compreende-se. Pensou que poderia ter mais problemas na secretaria do que os que poderiam surgir por falta de um cabo milº. na instrução de recrutas.
Fiquei satisfeitíssimo com o convite-ordem mas comecei logo a ser sobrecarregado de trabalho.E um pouco espantado por ouvir o "chefe" dizer-me coisas do género: "como se escreve isto?", "olhe lá isto,tenho de me apurar melhor", "esta coisa de papéis não é trabalho de que goste", "esteja à vontade, fica com uma chave daqui",etc.
Interessante também foi começar, dentro da secretaria, a lamentar-se da pouca instrução que dizia ter e a tratar-me por professor. A fórmula "nosso cabo milº" era raro ser aplicada, ficava para o exterior daquele espaço.
Achei este tratamento estranho e comecei a prestar mais atenção ao homem, ao seu comportamento e às suas capacidades.
Com o tempo a minha dúvida inicial foi desaparecendo, ao mesmo tempo que eram cada vez mais longos os períodos em que eu trabalhava sozinho na secretaria. Que dúvida era? Adivinhem ...
Pois é, não vislumbrei naquela pessoa qualquer analfabetismo funcional nem outras incapacidades para o exercício daquela função. Vi, sim, que ele tinha outras coisas a fazer, mais compensadoras ... A sua figura bastante rústica ajudava-o a fazer-se credível quando alegava ter dificuldades mas não demorei muito a perceber o "jogo" :servir-se duma esperteza (nada "saloia") para poder fazer outras coisas, em proveito próprio, usando o tempo que o meu trabalho de secretaria lhe deixava livre.
(Continua)
(Continuação)
A minha situação era boa e fiquei-lhe agradecido. Pudera! Assim me safei durante uns tempos da chatice da instrução de recrutas e melhorei a minha datilografia.
O sentir-me grato não evitou que eu tivesse feito algo que, se se viesse a descobrir, poderia ter posto em risco a sua reputação política perante o regime de então. Estávamos em 1964 e a revolução cubana estava jovem e cheia de heróis. O seu jornal oficial, GRANMA, veio-me parar às mãos algumas vezes naquela altura. Selecionava das suas páginas e batia à máquina, na secretaria, algumas das frases revolucionárias mais apelativas. Usava papel químico para as multiplicar, assim a mensagem podia chegar a mais pessoas, mas tinha o cuidado de o destruir depois.
Que tempos de juventude, os meus! Quando era fácil acreditar num futuro de paz, de mais justiça social e de mais solidariedade entre os povos deste desvairado "planeta humano".
Voltando ao tema:
Quantos de nós ouviram dizer que lá por Bissau, nas psiquiatrias, era fácil o encontro com gente "avariada", a qual resolvia as avarias logo ao deixar de respirar os ares da Guiné? -Muitos!
Se calhar o "nosso 1º." tinha receio, bem compreensível, de vir a ter problemas no "motor" se o obrigassem a "viajar" por outras terras da Guiné, afastadas de Bissau ...
Um abraço
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