quarta-feira, 6 de junho de 2012

Guiné 63/74 - P10005: (Ex)citações (185): Respostas a interrogações de Luís Graça, ainda sobre o tema Guidaje (2) (José Manuel Pechorro)

1. Segunda parte da mensagem do nosso camarada José Manuel Pechorro (ex- 1.º Cabo Op Cripto da CCAÇ 19, Guidaje, 1971/73) com data de 1 de Maio de 2012, respondendo às perguntas formuladas por Luís Graça no seu comentário deixado no Poste 9960*.

11 de Maio de 1973, Sexta-feira
A noite foi fria e cheia de humidade. Pelas 06h05, e vindos da neblina matinal recolheram ao aquartelamento os dois Alf Atir Inf Mil José Manuel Levy da Silva Soeiro e José Manuel Nogueira Pacheco, e um cabo africano da CCaç 3 (que nunca os abandonou…), vindos do Cufeu. Pernoitaram escondidos na mata, aguardando pelo dia seguinte.
O Alf Pacheco, doente, com ataque de paludismo e esgotado, chegou a dizer aos outros dois para o abandonarem… Andou perdido, somente acompanhado pelo 1.º cabo africano, até conseguir encontrar-se com o seu camarada José Soeiro. Os mortos, da CCaç 19 serão comidos pelos abutres:

Quem não se lembra deles? O jagudi (necrosyrtes monachus), sempre em bandos. Atrevidos, estavam sempre presentes na tabanca à espera das sobras… e não só pois eram grandes larápios.
Foto cortesia de http://pt.wikipedia.org

A coluna devia regressar hoje a Farim, mas não aconteceu devido à forte pressão exercida pelos soldados e graduados da CCaç 19, e alguns civis. Intuindo o perigo de ficar Guidage, apenas com mais 2 GComb brancos, como reforço. Os referidos ameaçaram seguir com a coluna, como é natural a população ia atrás. Alguns populares chegaram a fazer as malas e andaram com as trouxas à cabeça.

Foi enterrado entre o arame farpado e a vala, próxima da caserna do 1.º Pelotão o Soldado Manuel Geraldes da BCaç 4512, que ontem morreu na coluna.

O cantar do BUM! BUM! Pelas 19h15 nova flagelação com morteiro 82, durante 10 minutos; 1 ferido ligeiro. Repetem pelas 20 e 21 horas, na população 1 ferido ligeiro. Resto sem consequências.

As bases dos fogos situam-se a 2,5/3 km de distância, nas zonas: FACÃ – SAMOGE e BISSAKAL (Senegal), de FAJONQUITO e QUENHATO. Está bem dirigido, cai na zona dos espaldões dos obuses, dentro do quartel e tabanca. Devem ter postos de observação que vão regulando o tiro por meio de rádios. Flagelam de Bissakal, respondemos ao fogo, imediatamente atacam de Quelhato (lado oposto), etc, não nos deixando quase sair da vala ou dos abrigos. As NT no entanto têm-se portado bem.

Hoje chegou a vez do aquartelamento de Binta. Foi flagelado com morteiro 82 e RPG`s. Do lado de lá do rio. Pelas 19 horas sem consequências. Segundo se comentou, e salvo erro, nesta flagelação os nossos soldados ao tentarem responder com os nossos morteiros 81, encontraram os mesmos com terra no seu interior, impedindo que as granadas picassem e emergissem dos canos!... BIGENE continua a ser atingido com canhões sem recuo e de vez em quando com foguetões. Aqui em Guidage ouvem-se, são uns atrás dos outros. De noite tornam-se nítidos os clarões das saídas e as trajectórias, tendo por fundo o céu estrelado.

Em homenagem aos soldados da CCaç 19, uma foto do soldado mais velho da companhia que transitou da CCaç 3, em Guidage. Por mais que tente não consigo lembrar o seu nome.
Do blogue SPM0018 do ex-Fur Mil João Félix Dias. Com a devida vénia

Pergunta: Tu saíste alguma vez do aquartelamento? Em princípio, não... Como 1.º cabo cripto, não podias correr o risco de ser apanhado à mão (o que para o exército seria um cenário pior do que seres... morto)

Resposta: Até Abril de 1973 ia-se buscar água em bidons, colocados em cima de viaturas, para as necessidades do aquartelamento à nascente da bolanha de Guidage. A maioria das praças deslocava-se a esta nascente na bolanha, entre o Senegal e a pista de aviação para tomar banho. Com uma lata das conservas de fruta, apanhava a água que brotava limpa, ensaboava e tirava o mesmo atirando água para a cabeça e resto do corpo...
Dizia-se que a nascente já era Senegal! Até esta data íamos todos os dias lavar-nos lá... Depois passamos a ter o furo e água canalizada no quartel!
Zona perigosa, nas flagelações diurnas o IN flagelava esporadicamente este local. Numa destas flagelações, num Domingo e na hora da sesta, ficaram feridas gravemente duas bajudas (raparigas solteiras) que lavavam roupa. Uma delas com o pé estropiado... Evacuadas por via aérea para Bissau. 

Local da Nascente. 
Foto ©: Adquirida ao 1.º Cabo Radiotelegrafista Janeiro, Alentejano

Em 26.3.1972, de Domingo
Pelas 20h30 Guidage sofre ataque de 40 a 50 elementos, que se dividiu em 2 locais de ataque, um dentro da Guiné e outro no Senegal, do lado de lá da bolanha. Comandou Fai Sissé. Utilizou 2 metralhadoras pesadas, morteiro 82, Rpg`s 7 e 2, e armas ligeiras PPSH e Klaschnikov. Procurou alvejar os obuses e o posto de comando durante 20 minutos. Consequências: NT sem baixas e do IN desconhecem-se.

No dia seguinte, Segunda-feira 26, uma força armada de cerca de 15 militares atravessou a bolanha para fazer reconhecimento aos locais do fogo atacante, fui com eles! Por mais que tente não consigo recordar os nomes. O nosso Cap Inf Afonso José Carmona Teixeira pediu voluntários, assistindo perguntei se também poderia ir, respondeu sorrindo que sim.

Nesta foto, de óculos o Cap Inf Afonso José Carmona Teixeira da CCaç 19 e de bigode O Cap Carlos Ricardo da CCaç 3. Janeiro ou Fevereiro de 1972.
Foto recebida do Fur Mil João Félix Dias da CCaç 3.

Detectamos onde estiveram, avistamos as cápsulas das munições e um ou outro equipamento que esqueceram ou foram obrigados a deixar…

Os guerrilheiros com armas ligeiras dispararam com os pés enterrados na água da bolanha, fugindo ao nível da maioria do nosso fogo que lhes passou por cima…

Pela primeira e única vez atravessei a bolanha, para o Senegal, com água pelo peito e com a G3 nas mãos, no meio da coluna, atrás ou à frente do Furriel. Em certo local, sendo o mais baixo do grupo fiquei com àgua perto do pescoço. Imprudência ou insensatez a minha!…

Morei com os meus pais na Ribeira de Santarém, no verão quase todos os dias ía tomar banho no Rio Tejo…

 
Foto ©: Retirada do sítio Luís Graça & Camaradas da Guiné, com a devida vénia

Não foi a única saída do aquartelamento. Num determinado Domingo, já perto das 16h30 / 17 horas, com o capim muito alto e verdejante que chegava aos taipais da viatura, integrei um grupo de 6 elementos (2 brancos e 4 negros), que foi buscar dois porcos do mato (javalis), abatidos por um soldado mandinga caçador nativo da CCaç 19, que nos indicou o caminho…

Fomos de Berliet, e andamos cerca de 6 kms, ou mais! No percurso interroguei o Soldado se ainda faltava muito, respondendo: “É já ali. É já ali…” O ruído da viatura, a distância do quartel e a nossa força muito diminuta, só com a G3 na mão… Cheguei a ter receio de sermos detectados pelos guerrilheiros… Admirei a perícia do condutor (o Braima Djaura?), que atingiu velocidade excessiva, desviando-se das árvores… Regressamos mesmo a acabar o dia, já a escurecer.

Foi na região entre Quelhato e o Fajonquito … Também não recordo o nome dos que foram nesta acção. Saí porque o soldado disse ao nosso Cap Mil Inf José Vicente Teodoro de Freitas, a quem pedi autorização para sair, afirmou que os porcos estavam muito perto a cerca de 500 a 1000 metros e em zona de onde nunca tínhamos sido atacados. A companhia comprou o resultado da caça e a sua carne revelou-se bastante saborosa…

Um abraço a todos,
José Pechorro
Ex-1.º Cabo Op Cripto
CCaç 19
1971/73
Uidage - Guiné
____________

Nota de CV:

(*) Vd. postes de:

29 de Maio de 2012 > Guiné 63/74 - P9960: (Ex)citações (179): A actuação da FAP em Guidaje (José Manuel Pechorro)
e
5 de Junho de 2012 > Guiné 63/74 - P10000: (Ex)citações (184): Respostas a interrogações de Luís Graça, ainda sobre o tema Guidaje (1) (José Manuel Pechorro)

6 comentários:

Luís Graça disse...

José Pechorro:

Confesso que ainda não li, com atenção, o teu 2º poste, vou fazê-lo mais logo, quando for de comboio até ao Porto.

Estive a trabalhar no duro nas minhas coisas académicas. Mas dá para avaliar o teu grande empenho e competência na resposta (exaustiva!) às minhas perguntas.

Mereces um xicoração. Tenho pena de ainda não te conhecer ao vivo. Espero termos uma oportunidade um dia destes. Vives onde ? Olha, vou até Matosinhos, ao hospital, fazer uma visita a um doente que foi operado...

Tenho pena de não poder estar com a malta da Tabanca Pequena, que hoje se reúne ao almoço, nas novas "instalações hoteleiras"... Depois conversamos. LG

armando pires disse...

Camarada José Pechorro.
Tenho acompanhado, com emoção, os relatos que tem feito sobre "os dias de Guidaje".
Mas a emoção subiu ao rubro quando hoje percebi o qeu para mim já era uma suspeição.
Que o Camarada é da Ribeira de Santarém.
Eu sou de Santarém.
Confesso que o seu apelido não me é estranho, mas gostaria de uma outra ajuda, talvez a dee me dizer quem eram os seus pais.
Mais do que sinalizar a minha familia, creio que para si é mais fácil dizer que eu era sobrinho do Silvino cordoeiro, com estaleiro ali ás portas da ponte.
Como pode ver na minha ficha, sou de 69/70 - Bula e Bissorã. Pertenci à CCS do BCAÇ 2861.
Tem o meu endereço de e-mail na lista desta nossa Tabanca Grande.
Um enorme abraço.
armando pires

Anónimo disse...

Camaradas,
Imagine-se, se a crise de Guidage tivesse acontecido antes da captação de água no aquartelamento. Provavelmente aconteceria outra retirada, talvez com alguma cena dramática entretanto, resultado do desespero dos sitiados.
Numa avaliação aos diversos comandos portugueses, será muito dificil conferir a positiva. Afinal, era o "laissez passer-laissez faire", que determinava a atenção para as realidades básicas.
Note-se, ainda, como um eventual caso em Guidage, poderia ter sido simultâneo com o de Guilege.
Abraços fraternos
JD

Anónimo disse...

Caros Combatentes:
Ora aqui está, como as pessoas e os seus comportamentos dependem das circunstâncias, tal como referi no post do Martins de Matos. Quem lá está é que sabe o que fazer.Na verdade, em Guidage, apesar da água canalizada, houve um momento em que a decisão puderia ter sido outra...outro Guilege.
Um abração
Carvalho de Mampatá

Luís Gonçalves Vaz disse...

Caros Veteranos:

Depois de tanto ler depoimentos de ex-combatentes das suas experiências, na linha da frente, como estas em Guidage ou Guilege, já duvido da "certeza" das palavras do general EISENHOWER quando afirmava:
“O moral é o maior factor singular numa Guerra bem conduzida...; mas, sob as ordens de bons Comandantes, ele será sempre mantido entre as tropas, mesmo durante períodos prolongados das maiores adversidades.”
General DWIGHT EISENHOWER,

Um bom feriado
Abraços

Luís Gonçalves Vaz

Anónimo disse...

Caro Luís Vaz,
As palavras de Eisenhower são sábias, mas não acontecem por despacho. Nem obliteram aqueles deficits corrosivos da moral.
Não duvide, foram muito poucas as vezes que, no mato, vi oficiais superiores. E dos outros, era por acaso, quando as colunas se encontravam.
Um abraço
JD