sexta-feira, 8 de junho de 2012

Guiné 63/74 - P10012: Cartas do meu avô (7): Quinta carta: O primeiro encontro com... ela, e o meu regresso a casa, em Pedra Maria (J.L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil, CCAÇ 728, Bissau, Cachil e Catió, 1964/66)




Lisboa > Beira Tejo > 21 de fevereiro de 2012 > Eram os difíceis os nossos regressos... da Guiné,em 1966...

Foto: © Luís Graça (2012). Todos os direitos reservados.




A. Continuação da publicação da série Cartas do meu avô, da autoria do nosso camarigo Joaquim Luís Mendes Gomes, membro do nosso blogue, jurista, reformado da Caixa Geral de Depósitos, ex-Alf Mil da CCAÇ 728, Os Palmeirins de Catió, que esteve na região de Tombali (Cachil e Catió) e em Bissau, nos anos de 1964/66. 

As cartas, num total de 13, foram escritas em Berlim, entre 5 de março e 5 de abril de 2012. (*)


B. QUINTA CARTA > Primeiro Encontro com a Madrinha de Guerra


Outro facto muito importante estava para acontecer. Tudo estava combinado. Era o primeiro encontro com a A.T. , a minha madrinha de guerra. Não nos conhecíamos pessoalmente.

Com o reduzido conhecimento do local, assentou-se que ela estaria próximo dum pontão, interior ao cais, frente a umas escadinhas, que saem da 24 de Julho, e vão dar perto do Museu da Arte Antiga.


Ela estaria vestida com fato, saia e casaco, muito claros. Traria uma malinha branca, sobre o estreito e longo, na mão e sem alças. De óculos escuros.

Mais tarde vim a saber que a Mãe dela estava a assistir ao encontro, a partir das tais escadinhas lá em cima. Muito tiveram de esperar. O desfile não seguiu o rumo que lhe havia dito, por alteração de última hora, e o encontro deu-se muito mais tarde.

Por ela, foram passando dezenas e dezenas de militares desembarcados. Estes reconheciam-se bem, pela farda amarelada que traziam e a cor da pele ainda mais… A todos ela confrontava, discretamente, com a imagem que retinha da minha fotografia.
- Foi um longo penar… - disse-me ela depois.
- Ai, e se é este!?...e aquele!..que horror!...

Finalmente, aconteceu. Eu vi-a de longe, sem ser visto. Deu para a apreciar. Olhei-a bem, de cima a baixo. Baixinha como eu. Tinha umas boas pernas e, toda ela era bem feita. Um busto enriquecido e bem desenhado. Fiquei satisfeito.

Gostei. Fui-me abeirando. O rosto, de linhas especiais, era muito expressivo. Tinha qualquer coisa de judia. Às tantas, fez-se luz…Olhámo-nos e, cumprimentamo-nos, cerimoniosamente, à boa maneira da época. Por dentro, havia muita alegria, em cada um de nós. Brilhava-nos nos olhos…

Falou-se pouco. O tempo era escasso para mim. A minha companhia partiria para Évora. A guerra não estava ainda morta… Assentamos no que faríamos a seguir e, logo, foi a despedida.

Foi um encontro acridoce. O resto ficaria para depois. Pelo teor das cartas, parecia-me que estava tudo garantido. Mas, pressentia que muito havia que desbravar, para um e para outro.


II – Ida a Pedra Maria

Depois de Évora, vieram uns dias de férias, ainda por conta da tropa. Tinha de subir ao Norte. A família , os tios e primos, a irmã estava emigrada em França, o irmão pequenito, estava com a sua madrinha, na casa dos meus pais em Pedra Maria.

Estavam ansiosos como eu, todos à espera. Ninguém veio, nem à minha partida para Bissau nem à vinda. Por razões do custo… tempo e dinheiro.

Foi sempre assim. Os momentos mais cruciais da minha vida, por vontade do destino, tive de os enfrentar sempre só. Só eu e Deus. Fé n’Ele, nunca faltou. É e foi sempre o meu segredo. O rio da minha vida correu sempre por onde Ele mo encaminhou. E deu sempre certo.



O reencontro com Pedra Maria foi uma festa. Tinha a sensação de que um século tinha decorrido, desde que, lá atrás, de manhãzinha, tomara a camioneta do Cabanelas, com a guia de marcha para a Escola de Mafra.

O espectro da guerra estava arredado. Definitivamente. Outras guerras estavam para vir.
Desde logo, a adaptação à vida normal do dia a dia. Era como se tivesse descido as escarpas do Everest. Em vez dos rigores do frio e das ameaças do abismo, tudo, agora, me parecia uma pasmaceira.

O sono foi-se e com ele vieram noites terríveis de insónia. O cérebro batia-me ferozmente, cá dentro da cabeça, como se fosse um tigre numa gaiola. Tive de pedir ajuda a um médico. Vieram os fármacos. Às toneladas. De arrasar. Passei do verão para o inverno duro. De tremer. Era só dormir… dormir…e, quando acordado, era como se tudo estivesse longe e sob um denso nevoeiro. Fiquei incapaz de escrever uma letra. Quanto mais uma carta.

A A.T. vociferava lá em baixo em Lisboa, como se eu estivesse a escarnecer dela. Pensava que eu tinha desistido.
- Bem dizia a minha Mãe…- confessou-me ela depois, convencida do logro em que vivera.

A muito custo, consegui dizer-lhe que andava a cair de sono, por força do tratamento. Ela acreditou. Pelos livros de guerra que lera, sabia que a ambientação pós-guerra é penosa. Os militares regressados do Vietname e Indochina, davam que falar, lá pela América.

Ficou mais serena. Confiadamente, à espera das melhoras. Diziam-mo as suas cartas, constantes, agora vindas pela mão do senhor Bastos. O carteiro de toda a vida, lá na terra. Umas semanas depois, o sol das melhoras começou a raiar. Comecei a ter vontade de fazer alguma coisa. Com o dinheirito que tinha amealhado.


Era preciso fazer obras lá em casa.O poço quase secava, no verão. Era preciso afundá-lo ou abrir outro noutro sítio do quintal. Não havia um quarto de banho a sério, lá em casa.
Pelo menos isso. Foram a tarefa para os dias que se seguiram. Serviram-me de acelerador e ambientador.

No final, quando o poço já regurgitava de água, havia que montar um motor eléctrico para abastecimento à casa. Tratei tudo numa casa da especialidade lá na vila. Vieram trazer-me um motor. Por três mil e quinhentos escudos, nunca mais esqueço.

Deveria ser novo. Com toda a certeza. Pus-me a olhá-lo. Não me cheirou bem. Aquilo não reluzia a novo. Pensei.
- Estes estupores pensam que me enfiam o gorro. Pensam que estão a lidar com um puto. Enganam-se. Nem imaginam a escola em que andei.

Chamei lá casa o meu tio Tónio. Era serralheiro de profissão. A ele ninguém o enganaria.
Confirmou-me que sim. Era um motor em segunda mão…
- Ó raios!...



Peguei na bicicleta e em cinco minutos estava a entrar porta dentro da tal loja. Com cara de problemas…A loja era muito conceituada na terra. De gente séria.
- Ou vocês me vão lá, imediatamente, pôr um motor novo ou vamos ter muito sarilho…
ainda não arrefeci da guerra da Guiné…
- Ai, o Sr. Gomes veio da Guiné? – perguntou o dono.
- Sim, há um mês.
- Então conheceu lá o coronel da marinha, fulano…
- Muito bem. Foi meu comandante, lá no sul…em Bolama e Catió.
- É isso mesmo. Ele estava em Bolama.
- Pois, ainda é da minha família - respondeu, já muito amistoso e conciliador.
- Mais uma razão. Ou o motor aparece lá imediatamente, ou eu vou ter uma conversa com ele. Sei muito bem onde encontrá-lo.
- Fique descansado. Aqui o meu empregado vai já lá pô-lo.
- Então que venha já que eu vou com ele.

E assim foi. Nesse dia o motor, via-se que era novo a espelhar, não parou de tirar água para o tanque, toda a manhã.

A maturidade e a experiência da vida militar estavam a dar os seus frutos.



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Nota do editor: 



(*) Último poste da série > 2 de junho de 2012 > Guiné 63/74 - P9985: Cartas do meu avô (7): Quarta carta: regresso à metrópole, 4 dias depois da inauguração da Ponte Salazar (J.L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil, CCAÇ 728, Bissau, Cachil e Catió, 1964/66)

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