1. Quadragésimo quarto episódio da série "Do Ninho de D'Águia até África", de autoria do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66), iniciada no Poste P10177, chegado até nós em mensagem do dia 12 de Janeiro de 2013:
DO NINHO D'ÁGUIA ATÉ ÁFRICA (44)
O Canjura não era o Canjura Turé, esse era milícia e ajudava
os militares, servindo de guia tradutor, era só o Canjura e
andava farto de guerra, mesmo farto.
O Canjura era um
africano já com uma
certa idade, que andava
por ali, ajudava nas
obras do
aquartelamento, por lá comia e
andava vestido com a
roupa que lhe dava o
Cifra e outros
militares. Fazia
recados, quando era
preciso limpar alguma
zona, ou qualquer
trabalho que não
envolvesse muita força
física, o Canjura era
chamado. O Cifra acredita que todos os
aquartelamentos no
interior tinham o seu
“Canjura”. Quando não
ia dormir à sua
morança, que estava em
muito mau estado, pois não era sua mas de alguém
que “foi no mato” e a abandonou, tendo o Canjura tomado posse dela, dormia debaixo de
alguma viatura militar que estivesse a jeito no aquartelamento
em obras.
Sabia o nome de quase todos os militares do Agrupamento a
que o Cifra pertencia, pois foram dos primeiros a ocuparem o
novo aquartelamento, fazia a saudação, colocando-se em sentido
antes de falar, não importava que fosse soldado ou coronel,
aquilo já era um vício, podia ver o Cifra dez vezes por dia, que
fazia sempre a saudação, embora o Cifra lhe dissesse por um
milhão de vezes para
parar com aquilo, pois
todos gostavam dele sem
saudação, mas ele não
ouvia. Perguntavam-lhe a
idade e não sabia, onde
nasceu e não sabia, se
tinha família e não
sabia, mas via-se a
aflição no seu rosto,
demonstrando sempre algum
desespero com receio que
o mandassem embora do
aquartelamento, talvez já
o tivessem mandado embora
de outros locais. Andava farto de guerra e de fugir,
isso era o que dizia
ao Cifra, dizendo também que queria morrer em
“chão balanta”, nem que
fosse com um tiro ou
numa explosão de uma
granada de morteiro, mas queria ficar em “chão balanta”. Muitas
vezes, quando lhe davam um cigarro, ria-se e aceitava, também
aceitava cerveja e café. Na altura da refeição, lá estava à espera, às
vezes com outros africanos, ele próprio controlando e não deixando ninguém avançar sem o Arroz com Pão, que era o cabo
do rancho, dar ordem.
O Canjura era popular no aquartelamento, todos sabiam o seu
nome e lhe davam roupa, botas, cigarros. Quando alguém não
queria qualquer coisa, dizia-se:
-
Dá ao Canjura!.
Às vezes andava melhor vestido que muitos militares. Um
dia, nunca se soube quem mas desconfiava-se que tivesse sido
alguém do comando do Batalhão de Artilharia “Águias Negras”, que estava estacionado no aquartelamento, nas instalações
recuperadas do que tinha sido um
antigo convento de padres de uma
ordem religiosa francesa, o
vestiu a rigor, com umas divisas
de major, brilhantes, novas a
luzir nos seus ombros. Era uma
cópia, imitando o tal major
“Petinga”, que era o oficial de
operações especiais do
Agrupamento, a que o Cifra
pertencia, o tal que tinha dado uma enorme
bofetada num prisioneiro, com as
mãos amarradas, que caiu no chão
desamparado, só porque este lhe
disse que queria ser tratado como
prisioneiro de guerra, e fizeram, talvez a troco de qualquer
promessa de cigarros ou outra coisa qualquer, o bom do Canjura ir ao gabinete do tal major “Petinga”, bater à porta e
apresentar-se, em sentido, com uma perfeita saudação.
Calculem a fúria do major ao abrir a porta do seu gabinete
e deparar com o bom do Canjura, vestido tal e qual, parecendo
mesmo uma cópia do major “Petinga”!
____________
Nota de CV:
Vd. último poste da série de 12 DE JANEIRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P10927: Do Ninho D'Águia até África (43): Lodo e tarrafo (Tony Borié)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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4 comentários:
Que história enorme, Tony
armando pires
Caro Tony,
Se o nome do teu amigo Canjura é verdadeiro, então tratar-se-ia de um individuo da etnia Mandinga ou do grupo etno-linguístico Mandinga (Saracolé, Soninqué, Jacanké, Mansoanké, entre outros).
No entanto, não se pode excluir a possibilidade que fosse um Balanta mas, nesse caso, o nome seria emprestado, como acontece com alguma frequencia nesse grupo étnico.
Um abraço amigo,
Cherno Baldé
Olá Cherno.
O nome é o que ele dizia que era, e eu mesmo fui com ele ao registo da espécie de câmara municipal que existia na vila de Mansoa, onde o funcionário que era meu amigo, do convívio na sede do clube Os Balantas, que eu chamava Sedney Poitier, pois era parecido com o actor Norte Americano, que nessa altura fazia alguns filmes que viamos na sede do clube e arranjei um cartão de identificação, pois só assim podia transitar, com o nome de Canjura Mansoa, isto em fins de 1964.
O Canjura, já tinha alguns cabelos brancos, o que diziam que era raro, e dizia muitas vezes, num português acrioulado, que eu compreendia: "se queres ir depressa, vai sózinho, se queres longe vai comigo", isto era um provérvio africano, creio.
Um abraço, Tony Borie.
Viva Tony,
Mais uma estória simples, bem narrada, sobre os epísódios do quotidiano guineense.
Mas triste, no que se refere à agressão a um homem de mãos atadas. A guerra não precisava de vexames. Acho eu, apesar de ter sentido raiva em combate, que os vencidos reconheciam os vencedores, e estes deviam ponderar a situação inversa, porque, afinal, quem é que combatia por gosto?
Um abraço
JD
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