quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

Guiné 63/74 - P10948: Cartas de amor e guerra (Manuel Joaquim, ex-fur mil, arm pes inf, CCAÇ 1419, Bissau, Bissorã e Mansabá, 1965/67) (2): A caminho de Bissau




1. Em mensagem do dia 9 de Janeiro de 2013, o nosso camarada  Manuel Joaquim (ex-Fur Mil de Armas Pesadas da CCAÇ 1419, BissauBissorã e Mansabá, 1965/67), enviou-nos a sua segunda "Carta de Amor e de Guerra" que se segue: 





CARTAS DE AMOR E DE GUERRA

2. A caminho de Bissau

Estava a gostar da viagem marítima, apesar das angústias me enovelarem os sentimentos, apesar das imagens dos meus entes queridos no cais de embarque não me saírem da cabeça, principalmente as de minha Mãe.

Chegados à Madeira, eu fui um dos muitos que saíram para dar uma volta pela cidade do Funchal. Aproveitei para inaugurar a minha correspondência de guerra pondo no correio um aerograma para a namorada.

Durante o passeio fui alertado para as más condições físicas e higiénicas em que viajavam os praças. Eu, passageiro alojado em classe turística com ar condicionado, tempo gasto a pensar mais nos meus problemas pessoais do que em qualquer outra coisa, não escalado ainda para qualquer serviço na Companhia, fiquei muito surpreendido com esta informação.

No dia seguinte, navio zarpado do Funchal, dirigi-me aos porões para confirmar o que me tinham dito. Quando descia pensei logo em voltar para trás, tão acre, pesado e gorduroso era o ar que respirava. Mas continuei e o choque que sofri com aquela miserável situação foi tão grande que, no momento, odiei todo o poder político e militar que se permitia tratar assim os seus soldados. Como é que era possível?

Num diálogo de circunstância com alguns soldados presentes percebi o seu descontentamento mas demorei pouco tempo, tal era o incómodo. Tentando disfarçar a vontade de vomitar, saí apressado e revoltado. Umas horas depois ainda sentia fortemente tais cheiros porque as partículas em suspensão no ar que respirara tinham ficado, certamente, coladas nas minhas fossas nasais. Fiquei tão marcado que, 47 anos passados, ainda me parece senti-los presentes.

A viagem que, apesar das circunstâncias, me estava a agradar ficou estragada, senti-me ultrajado como homem e como cidadão de um país cujos diversos “chefes” assim tratavam os seus soldados ao mesmo tempo que lhes cantavam hinos de louvor pela sua coragem e patriotismo!

“O Niassa atracado no cais do Funchal prenho de jovens para despejar na Guiné”
© Rumo a Fulacunda, blogue fotográfico de Henrique Cabral


Lisboa, 5/8/1965

Meu querido: (…) já quase deixava de esperar notícias de bordo (…). [resposta ao meu aerograma enviado do Funchal] As tuas palavras de hoje, meu amor, vieram colocar mais um sinal, mais um ponto positivo na minha vida que tem sido nestes dias tão monótona, tão sem interesse. Vieram acordar-me deste letargo em que mergulhei sem forças para dele sair, desde que os teus pais me deixaram.

Foram embora domingo à tarde. Parecia-me que a tua mãe ia mais bem-disposta, mais calma e mais conformada. Aqui passou o tempo mais ou menos animada, parecia-lhe, dizia-me ela à partida, que ainda estava junto de ti. Eu sentia o mesmo. Tens uma mãe encantadora, meu querido. Eu fiquei deveras maravilhada com ela, com as atenções que me dedicou. [ (*)ver nota ] É bastante justo o amor, a dedicação, a admiração que lhe votas, (…). Eu farei tudo para lhe amenizar a dor, a saudade pela tua partida. Devia ter recebido uma carta minha a participar-lhe que não ia lá passar o domingo como tinha prometido. (…) mas eu não posso, embora tenha a 2ª feira livre até às 14 horas para podermos assistir ao juramento e investidura do Presidente da República. [Em 9/ VIII/1965, Américo Tomás inicia o seu 2º mandato como PR (1965-1972).]

(…). Consegui na hora da despedida sorrir-te, pôr nesse sorriso toda a minha esperança e toda a confiança no belo futuro que havemos de ter mas, interiormente, a minha constituição física ressentiu-se com a excitação de que depois fui tomada. Já é natural o que agora me aconteceu, quando me excito, por isso evito as viagens porque experimento um mal-estar, uma indisposição horrível. (…).

Olha por ti. Não desanimes, (…) é preciso que no nosso espírito haja um apoio, uma segurança, alegria indestrutível. Tudo passará, (…). E tu regressarás. (…). Acredito-o. Haverá nestes anos muita dor, muitas saudades, momentos de desespero mas para vencermos tudo isso e o mais a que estamos sujeitos é preciso que tenhamos um ponto de apoio, qualquer coisa pela qual teremos de vencer tudo para a possuir. (…). Nós somos capazes de transformar em triunfo todas as dores, fracassos, decepções. (…), apesar de tudo e contra tudo o que se lhes oponha. (…). Com esta segurança, querido, com esta força que nos guia podem vir desgraças, desânimos, decepções que sempre fica na nossa alma uma réstia de luz, de paz e alegria, capazes de suplantar todas as dores.

(…) aguardemos confiantes a hora do encontro.

(…). Beijo-te e abraço-te, meu amor querido. Só e sempre tua, N.



 Foto da mãe Belmira da Piedade, Maio/1967, pouco depois do meu regresso da Guiné
© Manuel Joaquim.


*Memória de minha Mãe:

Foi uma “moira de trabalho” na lida doméstica e na agricultura das suas pequenas propriedades. Meu pai, como carpinteiro, passava muito tempo fora e, a certa altura, partiu e foi emigrante durante 17 anos.

Analfabeta, nunca descurou a educação e a instrução dos seus três filhos. Quando herdou de seus pais incentivou o marido a vender a herança para custear os estudos dos filhos, na altura só os meus pois os manos mais novos andavam na escola primária. Assim se fez mas o dinheiro não durou muito e meu pai teve de emigrar: Lourenço Marques, Joanesburgo, Paris.

Ela ficou a tomar conta dos filhos, a cuidar da terra e a gerir as verbas mandadas pelo marido. Passados dois anos, a vida militar começou a ameaçar os filhos. Fui o primeiro a sê-lo, era o mais velho, mas adiei a incorporação dois anos, concedida por razões académicas, e o meu mano “do meio” foi juntar-se ao pai em Joanesburgo. A certa altura teve a “feliz” ideia de ir a Lourenço Marques oferecer-se para cumprir o serviço militar. Dizia ele que assim ainda poderia ir a tempo de se safar da guerra que já se adivinhava próxima e, por pouco, não o conseguiu. Teve azar, apareceu-lhe a guerra em Mueda, tendo a “sorte” de receber dela um premiozinho que foi a hospitalização por ferimentos sofridos.

Entretanto o filho mais novo chega aos 18 anos, então com o pai já em Paris e resolveu juntar-se ao pai, pois claro. E por lá ficou durante anos sem poder vir ver a mãe. Como estava com o pai, ela não se incomodava muito com isso. Mas mais um filho na tropa é que não! Já lhes bastava terem lá dois! Em janeiro de 1964 fui incorporado e a minha “mãe coragem” ficou sozinha, menos nos meses de férias de meu pai, com um filho em França e os outros no serviço militar.

Tive a sorte de ter o Pai e a Mãe no meu embarque para a Guiné mas a Mãe, um mês depois, com o marido e os três filhos dispersos, tornou a ficar sozinha! E assim ficou uns meses, com dois filhos na guerra até um deles regressar de Moçambique.

Guardo bem nítida na memória a imagem que dela levei para a Guiné: debruçada sobre o varandim do cais, amparada por meu pai e pela minha namorada, chorava e gritava de braços estendidos em direcção do navio. Situação terrivelmente dolorosa que me fez refugiar no interior do “Niassa” donde vivi a separação olhando os meus entes queridos através dos vidros, com o ruído ambiente do salão abafando totalmente o do exterior, vendo as imagens do cais como que fazendo parte de um filme mudo com centenas de figurantes e onde meus pais e namorada entravam como intérpretes, sendo minha MÃE a personagem principal.

A minha emoção, contida, amarfanhava-me. E lembrei-me das palavras de um instrutor para motivar os recrutas a empenharem-se no treino operacional: “quando embarcarem podem ter a certeza de que não regressam todos!” Olhei aquela “massa” de militares que enchiam o navio, já a afastar-se de terra, e fiquei a pensar se não seria um dos que não iriam voltar. Olhei para fora e, pensando naquelas mães que já só adivinhava ao longe, lembrei-me do João Villaret recitando na TV “O menino da sua mãe”, um poema de F. Pessoa que eu, na altura, abominava politicamente. E fiquei a perguntar-me:
- Quantos de nós se tornarão “o menino da sua mãe”?


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Nota de CV:

Vd. primeiro poste da série de 8 DE JANEIRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P10910: Cartas de amor e guerra (Manuel Joaquim, ex-fur mil, arm pes inf, CCAÇ 1419, Bissau, Bissorã e Mansabá, 1965/67) (1): A separação e a partida

7 comentários:

Luís Graça disse...

Que orgulho, Manel, ter-se uma "mãe coragem", como a tu... Todas as nossas mães foram "mães coragem", é verdade... Foram tempos muito duros, de solidão, de separação, de saudade...

Parabéns também por teres ido aos porões do navio... Eu não me lembro de lá ter ido... Mas esse cheiro nauseabundo persegue-me ainda hoje...

Parabéns pelo 2º poste da série... Acrescento um excerto de um poema meu... LG
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Um estranha forma de morte


Um estranha maneira de dizer adeus.
Um estranho povo, este,
que vem ajoelhar-se
no cais da partida,
não em oração,
em súplica,
para aplacar a ira dos deuses,
mas vergado,
vergado à toda poderosa razão
de Estado.

A Pátria contra a Mátria.
A tentacular força centrífuga
que de há séculos,
ó meu tuga,
te leva os filhos teus,
para fora.
Paridos e expulsos da Mátria,
para longe,
em má hora,
bem para longe,
muito para lá do mar.

Uma despedida breve,
com lágrimas salgadas no rosto
e lenços brancos
em fundo preto,
sob um céu de chumbo.
(...)

28 DE MARÇO DE 2007
Guiné 63/74 - P1630: Uma estranha forma de morte (Luís Graça)

http://blogueforanadaevaotres.blogspot.pt/2007/03/guin-6374-p1630-uma-estranha-forma-de.html

Tony Borie disse...

Olá Manuel Joaquim.
O início dos teus relatos, já me estão a tocar.
A viajem no porão, passei cinco dias de aflição, o que custava mais era descer os degraus, depois de lá estar, já se ficava atormentado e não se reparava no cheiro, não sei ao que cheirava, era a tudo, mais a xixi, já antigo!. Ao outro dia regressava-mos à luz do dia, amarelos e sem poder abrir os olhos!.
A tua mãe, a sua cara de sofrimento e amargura, era representativa da minha, que infelizmente, não estava lá.
A ternura da tua amada, simboliza jovens que se amavam, e foram separados à força, indo ele para um cenário de guerra, mas nunca perdendo a esperança.
Obrigado por estas recordações, que também são nossas.
Um abraço do Tony Borie.

Bispo1419 disse...

Escrevi no texto:

«(...) "O menino de sua mãe", um poema de F. Pessoa que eu, na altura, abominava politicamente.»

Não me saiu feliz a redação. Queria eu dizer que abominava a mensagem que me parecia sair deste belo poema mas não o seu autor.
Mensagem solidária e compassiva mas também mensagem de resignação como que justificando com o destino a desgraça daquela mãe e daquele filho, um "como sofres, mãe, mas foi o destino, o que tem de ser tem muita força!".
As traves do poema pareciam-me assentes numa aceitação natural e pacífica da guerra e seriam
o abandono dos combatentes, a solidão da morte,a "missão patriótica" ( «memórias que o Império tece») e eu, hipótese de "menino de sua mãe", queria revolta, queria uma mensagem contra as causas daquela morte, contra a guerra, qualquer guerra. Por isso, naqueles meus temos de juventude, este poema me incomodava tanto.
Não vou dizer o que dele penso hoje. Não é este o local para o fazer.

Manuel Joaquim

Luís Graça disse...

Para uma leitura do poema "O menino de sua mãe", de Fernando Pessoa, publicado em 1926:


(...) "Fernando Pessoa confiou a um amigo (o poeta Carlos Queiroz, sobrinho da sua namorada Ophélia) que foi inspirado para escrever “O menino de sua Mãe” por uma litografia que viu na parede de uma pensão, onde jantou com um camarada.

Mas o “menino de sua mãe” não é o soldado morto na guerra e representado nessa ilustração anónima, mas antes Fernando Pessoa ele mesmo (cf. João Gaspar Simões, Vida e Obra de Fernando Pessoa, págns. 29 e ss).

Com a morte do seu irmão mais novo, a sua mãe inconsolável volta-se novamente para “o seu menino”. Pessoa sente regressar por instantes um idílio possível, de carinho devotado, mas seria uma ilusão breve. Ás vezes tido como o poeta racional, pensador frio da realidade humana, Fernando leva sempre junto de si esse carinho materno que o alimentou nas horas decisivas da formação do seu ser e que até à morte o animavam na ternura de todas as coisas.

É o dia 13 de Junho de 1894 o último dia de Fernando Pessoa enquanto “menino de sua mãe”, é o seu último aniversário comemorado na exclusiva atenção da sua progenitora. Sem amigos, preso à sua mãe e ao pequeno mundo, o pequeno homem começa então a imaginar outros mundos e outras realidades. Trata-se de uma reacção, talvez inconsciente de fuga, à invasão do seu mundo por quem será brevemente o seu padrasto.

A sua mãe iria abandoná-lo, não em presença, mas talvez mais dolorosamente em afastamento e dedicação. Perdida a ternura, perdida a inocência do Éden, o “menino de sua mãe” torna-se mais frio, sombrio, dedicado ao palco interior dele mesmo, drama pessoal introspectivo, arco íris para dentro, explosão de sentimentos para sempre contidos que se revela em poesia.

Há uma mágoa que o inunda e que nunca o vai deixar: “no plano abandonado, que a brisa morna aquece”, note-se o “abandonado”, ele vai sempre sentir o abandono daquela em que sempre confiou o seu intimo e que depois torna difícil acreditar novamente no amor sincero. Em 1896, vai para a África do Sul e consuma-se o abandono, a deslocação terminal da sua identidade de fora (mãe) para dentro (o seu intimo drama pessoal). Talvez seja tão dolorosa a partida, a desilusão, a perda de tudo o que antes era seguro, que Fernando sente a necessidade de deslocar para outras personalidades, que ainda são ele mesmo, essa dor que lhe parece cruel demais para suportar sozinho.

Talvez por isso seja depois Álvaro de Campos, na Ode Marítima, a recordar de modo vivido a partida no vapor para longe. A partida, o corte com o passado edílico, o medo da nova vida, tudo isso marca decisivamente um jovem que procura saber quem é. (...)

Fonte: Sítio "Um Fernando Pessoa", dedicado ao grande poeta e pensador Fernando Pessoa, sua vida e obra.

http://www.umfernandopessoa.com/an%C3%A1lises/poema-menino-de-sua-mae.htm


Bispo1419 disse...

Caro Luís Graça,
desculpa mas permito-me glosar os primeiros versos do teu poema, acima:

Pois é, é a estranha maneira de dizer adeus de um estranho povo que ajoelha no cais da partida. Ajoelhado, não a rezar pela proteção dos seus soldados mas vergado pelo/ao poder politico-económico que o subjuga em nome de valores patrióticos que esse poder diz serem essenciais à existência da Nação e do Estado do qual se apropriou.

Sobre Fernando Pessoa, o grande, enorme poeta e pensador (a nível mundial), e a propósito do que escrevi acima sobre "O menino de sua mãe" transcrevo a sua resposta a um inquérito do Jornal do Comércio e das Colónias (em 1926), precisamente o ano da publicação de "O menino ...).

À pergunta, "Sim ou não Portugal, amputado das suas colónias, perderá toda a sua razão de ser como povo independente no comércio europeu?", respondeu:
- «Para o destino que presumo que será o de Portugal, as colónias não são precisas. A perda delas, porém, também não é precisa para esse destino.»
Mas uns anos depois, antes da sua morte (1935) como é óbvio,já dizia:
- «Devem desaparecer as colónias portuguesas. As colónias portuguesas são uma tradição inútil (...) e pesam sobre nós».

Não concordo com a análise freudiana de J. Gaspar Simões sobre o Pessoa de "O menino de sua mãe", o que não invalida que tenha em alto apreço a sua obra crítica. Mas o seu livro "Vida e Obra de Fernando Pessoa ..." é de 1950. Muita coisa sobre o poeta se descobriu depois (e continua).
E há um livro que aconselho, o qual muito me abriu para a obra do Pessoa:
ESTRANHO ESTRANGEIRO - Uma Biografia De Fernando Pessoa
autor: Robert Bréchon
edição: Círculo de Leitores, 1997
Estará esgotada no CL mas a licença editorial é da Quetzal que também a editou.

Abração

Manuel Carvalho disse...

Caro Manuel Joaquim

Duma maneira geral gosto muito do que escreves. Relativamente aos porões do Niassa estou totalmente de acordo com o que dizes e penso que foi uma das maiores indignidades que fizeram aos nossos militares que foram obrigados a viajar naquelas condições.Estive lá porque me disseram que um camarada deitava tudo o que comia fora, então trouxe-o para cima e tentei dar-lhe chá e outras coisas mas ele era já de si débil, naquela situação pior e chegou a Bissau bastante mal de saúde.Lembro-me de um insidente com militares da 15ª de Comandos que queriam vir para a coberta e o sargento de dia ao barco não queria deixar e as coisas estavam a ficar pretas.O assunto foi resolvido com bom senso.

Um grande abraço para todos.

Manuel Carvalho

Cherno Baldé disse...

Caro Manuel Joaquim,

Obrigado por partilhar com a malta da Tabanca o espaco mais intimo da familia e do teu generoso coracao. Emotivo e sem complexos. Continua assim, gostei.

Cherno Baldé