sábado, 19 de janeiro de 2013

Guiné 63/74 - P10963: Do Ninho D'Águia até África (45): Os meus galões (Tony Borié)

1. Quadragésimo quinto episódio da série "Do Ninho de D'Águia até África", de autoria do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66), iniciada no Poste P10177, chegado até nós em mensagem do dia 15 de Janeiro de 2013:


DO NINHO D'ÁGUIA ATÉ ÁFRICA (45)



Quando criança, o Cifra, que nessa altura se chamava To d’Agar, descalço e com uns calções que tinham sido do irmão mais velho, assistia com algum frio no corpo, às classes do professor Silvério, que entre outras coisas lhe dizia:
- O grande navegador e explorador Nuno Tristão, navegando numa “casca de noz”, por volta do ano de 1450, sempre debaixo dos auspícios do reino de Portugal, descobriu a Guiné, onde existem leões, elefantes, tigres e macacos.

E mostrava um mapa mundo pendurado na parede, apontando com uma cana fina e seca, com que lhe batia nas orelhas, algumas vezes, para um pequenino espaço, onde dizia que aí era a Guiné.
Estas palavras do professor Silvério não mais lhe saíram do pensamento, primeiro por mencionar leões, elefantes, tigres e macacos, e segundo por lembrar a cana, fina e seca, com que lhe batia nas orelhas.
Nunca gostou que lhe batessem, o pai e a mãe repreendiam mas não batiam, só os irmãos mais velhos é que às vezes lhe batiam, mas coisa sem importância, e estavam logo amigos, mas não gostava.
Se algum adulto lhe batia por qualquer coisa que tivesse feito, que não estivesse de acordo com as regras, que esses mesmos adultos ditavam, ficava revoltado e chorava, às vezes por horas.

Os amigos, antigos combatentes, já estão a pensar que ao Cifra, hoje deu-lhe “pró moral”, mas não, tudo isto vem a propósito de no tempo em que o Cifra esteve estacionado no aquartelamento de Mansoa, na então província da Guiné, e dado ao desenvolvimento do conflito armado, que com o passar do tempo se intensificava cada vez mais, o aquartelamento funcionava como se fosse um posto avançado de fronteira, com chegada e saída de militares e equipamento bélico, que às vezes, talvez debaixo de algum stress, pois a partir de Mansoa entravam no verdadeiro cenário de guerra, os militares criavam pequenos conflitos, dentro do grande conflito em que estávamos todos envolvidos, e não era necessário ser bom observador para ver que havia militares, mas cada caso era um caso, como por exemplo o soldado atirador, Curvas, alto e refilão que tinha uma linguagem reles e agressiva, que não acatava ordens e tinha algum desprezo pela sua própria vida, outros, eram mesmo graduados, poucos, felizmente muito poucos, quase que se contavam pelos dedos da mão, que deviam de ter assimilado o treino total a que foram submetidos, e agora em pleno cenário de guerra, não aguentavam a pressão psicológica, da responsabilidade que tinham entre mãos.

O tempo que nos resta, a nós antigos combatentes, já não é muito, e deve ser gasto com coisas que nos alegrem e façam viver esta idade de ouro, o mais feliz possível, e não deve ser gasto em críticas a nenhum de nós, tudo o que fizemos de bom ou de mal já lá vai, e isto é só única e simplesmente um lembrar de situações, que alguns de nós, até vão sorrir, ao lembrarem-se de algo que se passou consigo, ou em seu redor. O rascunho do boneco que o Cifra fez, a personagem tem seis ou sete divisas, só para não se confundir com nenhum graduado. Mas continuando, esse treino era agressivo, muitas vezes doloroso, eram treinados sobre uma grande pressão psicológica, dizendo-lhes que tinham que servir de exemplo, pois esses militares iam ser lideres, e tinham que manter o poder nas mãos, não interessava se tinham de usar o sistema de agressão física, se tinham que usar o sistema de intimidação, o que interessava era que no final desse treino, estivessem habilitados, para poder ter nas mãos todos os seus subordinados de modo a os poderem dirigir, controlar, e colocarem nas mais remotas e violentas zonas, sem que esses subordinados, pudessem dizer uma só palavra de que não se sentiam confortáveis. Se no final do treino estivessem habilitados para isso, o referido treino tinha sido perfeito.


Houve alguns, como o Cifra disse anteriormente, felizmente muito poucos, que assimilaram totalmente e seguiram todos os regulamentos de treino, e foram durante a sua estadia em cenário de guerra uma cópia do sistema, onde possivelmente lhe diziam: vai em frente, és o melhor, a razão é sempre tua, todos sobre os teus galões, têm que acatar as tuas ordens, em caso de dúvida, elimina o elo mais fraco, se for preciso usa a tua força física, pois estamos a treinar-te e a explicar-te as artes de luta, que não são explicadas aos soldados, para isso vais ser um líder, tens o compromisso com a tua Pátria de a representar, tu, em algumas situações és a Pátria!.


Daí nasceram alguns “Rambos” e “Justiceiros”, como nos filmes de cowboys, em que o xerife, com duas grandes pistolas, é quem decidia quem era o bom e o mau, e assim tínhamos, em cenário de guerra, militares, alguns com galões, que usavam todo o seu poder nos seus subordinados, usando a força física no corpo de outros militares e “partiam tudo à chapada”, eram os tais “donos da verdade”, ou “donos da guerra”, que sem saberem o que faziam, estavam a quebrar as mais exemplares regras da humanidade, que era terem contactos físicos e agressivos, fazendo mazelas e danificando o corpo e a dignidade de outro ser humano. Depois, como eram justiceiros e pessoas com muito bons sentimentos, vestiam a pele de “Madre Teresa” e eram capazes de dizer:
- Fiz mazelas no teu corpo, feri-te na parte mais íntima da tua dignidade, quebrei as mais exemplares regras da humanidade, mas era para teu bem, pois se escrevesse a dizer mal de ti, ficava no teu registo pessoal, portanto, uns simples pontapés e umas bofetadas até te tornam mais militar e mais agressivo, não fiques com vergonha dos teus colegas, porque eles, não tarda muito, também vão levar e se não te portares com juízo, depois sim, é que te estrago a vida com relatórios de não obediência, e agora, se te está a doer, vou levar-te ao Pastilhas, para que te ponha aí uma qualquer ‘pomada”!.

Não sabendo, esse graduado, que na sua inocência, tinha feito o maior mal do mundo a esse colega militar, que foi o ter tocado e danificado o seu corpo e a sua dignidade de homem novo, que nesse momento, precisava de confidência e toda a moral do mundo para resistir ao ambiente de conflito, em que então se encontrava.

Bem, o Cifra, acredita que já está a ir longe demais, vai pôr um bocadinho de “água na fervura” e vai dizer: ah, grande Curvas, alto e refilão, que no caso de ser insultado ou tentarem agredi-lo, não olhava para as divisas e não lhes virava a cara e não lhes tinha qualquer receio. Mas nunca usou a força física, era só uma linguagem reles, dita por uma cara com feições de guerreiro, que às vezes metia algum respeito, também nunca foi castigado, pelo contrário.

O Cifra sempre pensou que esses militares nunca foram os verdadeiros culpados de todas essas anomalias, mas sim o sistema e o governo que os treinou, talvez nunca os tivessem treinado para seguirem as regras do respeito e fazerem crer aos seus subordinados que podiam seguir as suas ordens porque única e simplesmente confiavam neles e viam neles um líder, porque a disciplina tem que ser consentida e não imposta, e esta surge naturalmente se houver capacidade de liderança, como dizia há dias um antigo combatente que também viveu, como nós as agruras de um cenário de guerra, pois esses militares, que repito eram poucos, alguns até eram pessoas com bons sentimentos, tendo muitos ficado traumatizados pela responsabilidade que lhe tinham dado, pois sem eles mesmo querer, tinham recebido e assimilado totalmente esse treino, que era deveras violento, e dado em muito pouco tempo, e creio que esse treino, neste princípio de guerra, não era acompanhado psicologicamente, para se saber se o carácter e os sentimentos das pessoas que o recebiam tinham capacidade para isso.

Já agora, e vem mesmo a “talhe de foice”, como era costume dizer-se na altura, quer o Cifra reproduzir, com o devido respeito, e pedindo perdão por esta liberdade, um enxerto de um texto que o nosso prestigiado camarada Beja Santos transcreveu de um livro, que creio é “Da Guiné a Angola, Fim do Império”, do senhor coronel Piçarra Mourão, que serviu na Guiné, na região do Oio, a mesma onde o Cifra serviu uns anos antes, onde a certa altura diz:

“A NAÇÃO, E OS SEUS MENTORES LIMITAVAM-SE A MANDAR COMBATER A QUALQUER PREÇO. O ACOMPANHAMENTO PSICOLÓGICO DOS HOMENS, EM QUALQUER FASE DO SEU EMPENHAMENTO, NUNCA FOI VISTO, TRATADO OU FALADO”.

Pelo menos no tempo em que o Cifra esteve na então província da Guiné, e pelo que lhe foi dado observar, era verdade, NUNCA FOI VISTO, TRATADO OU FALADO.

O Cifra só agora verificou que já vai longe demais no texto, os amigos antigos combatentes vão por certo dizer que “já chega de moral”, o Cifra tem que falar é das emboscadas e da guerra na Guiné, mas como sabem o Cifra era um razoável militar, mas um fraco, mesmo muito fraco guerreiro e também nunca gostou que o professor Silvério lhe batesse com a cana fina e seca, nas orelhas.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 15 DE JANEIRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P10946: Do Ninho D'Águia até África (44): O Canjura andava farto de guerra (Tony Borié)

2 comentários:

José Botelho Colaço disse...

Olá Tony Borié começo por dizer que na minha C.caç 557 também tinha um soldado curvas por ser alto e um corpo um pouco mal ajeitado na pele só que não era refilão era "bom rapaz".
Gostei desta tua crónica mas desculpa, pareceu-me que andaste aqui um pouco a fazer uso das curvas para dizeres o que pensas ser recto!...

Um abraço
Colaço.

JD disse...

Viva Tony,
Esta matéria que trazes à tertúlia pode parecer tabú, e na generalidade assim poderá considerar-se, tendo em vista a reserva da abordagem.
Havia, de facto, durante períodos da instrução para oficiais e sargentos milicianos, situações ocasionais que se configuravamm com o que referes da preparação. Havia em outros escalões e situações das Forças Armadas quem transmitisse a título pessoal ou institucional essa espécie de autoritarismo entendido como transmissor de auto-confiança. Vide a célebre frase de que as ordens são para ser cumpridas.
Ao contrário, também houve quem admitisse em contestação, que no ambiente da guerra poderia impor as suas leis, a irreverência, a revolta, ou a indisciplina.
Afinal, essas diferentes atitudes não eram mais do que expressões de personalidade e educação.
O que nunca houve foram programas coerentes de preparação para a guerra, para a convivência com outros povos, para a própria convivência ao nível das unidades.
Abraços fraternos
JD