1. Quadragésimo oitavo episódio da série "Do Ninho de D'Águia até África", de autoria do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66), iniciada no Poste P10177, chegado até nós em mensagem do dia 26 de Janeiro de 2013:
DO NINHO D'ÁGUIA ATÉ ÁFRICA (48)
No Arizona, Novo México, Colorado e em outros estados dos
Estados Unidos, houve aldeias de naturais, foto recente do Tony,
em baixo, a que chamavam “Indios”, e nas histórias dos livros de
quadradinhos, que o Cifra lia, quando criança e nessa altura se
chamava To d’Agar, e que o Carlos, filho do Santos dos correios,
que tinha vindo dos lados de Leiria, lhe trazia, e aí, até
“Peles
Vermelhas”
lhe chamavam,
eram os
“Cheyennes”,
“Apaches”,
“Comanches”,
“Navajos”,
“Seminoles” e
outras
tribos, que
viviam de
produtos que
a natureza
lhes
oferecia.
Todos eram
guerreiros,
embora uns
fossem caçadores, outros pescadores, outros agricultores, outros
feiticeiros, e alguns até eram única e simplesmente chefes, com
uma grande coroa de penas na cabeça, e um grande pau na mão
representando a cabeça de uma águia, ou qualquer outro animal,
com que indicavam o norte ou o sul, onde iriam caçar os búfalos,
com um arco e uma flecha, e com uma pontaria que fazia inveja a
qualquer campeão olímpico de tiro.
Quando o Cifra esteve na nossa então província da Guiné
Portuguesa, também havia exactamente o mesmo, embora em menos
área de terreno, e com muito mais etnias, ou seja, havia
“Papeis”, “Balantas”, “Fulas”, “Bijagós”, “Mandingas”,
“Felupes”, “Manjacos”, “Biafadas” “Nalus”, diziam na altura que
havia quase vinte e quatro diferente etnias. Embora houvesse
mais percentagem de uma etnia do que outra em algumas áreas, se verificarmos bem era quase uma etnia por vila ou aldeia,
desculpem o exagero. Todas tinham, ou o Cifra pensava que
tinham, o seu chefe, a sua língua, para se expressarem, e se
deviam reger pelas suas leis, pelo menos era o que o Cifra
pensava.
Onde o Cifra esteve estacionado por dois anos, foto em
baixo, havia os “Balantas”, que eram guerreiros, caçadores,
pescadores, pastores e agricultores, e normalmente viviam em
agregado familiar. Tinham uma cultura muito própria, só deles,
que o Cifra tentou
aprender, e seguir
com todo o
respeito, a
princípio foi
difícil aceitarem-no,
mas com o
tempo, foram vendo
as suas intenções
e começaram a
acreditar, e como
eram um povo que
vivia com muito
pouco contacto com
europeus, e como o
Cifra já explicou
de outras vezes,
era preciso primeiro, cheirar o corpo, sentir o sabor da pele e
então sim, se acreditassem, dedicavam-se, e consideravam essa
pessoa como família, o Cifra, sempre admirou este povo e esta
cultura, mas era muito diferente daquela a que estava
acostumado, a ver no seu Portugal, que era um país europeu.
Um homem tinha três, quatro e cinco mulheres, que viviam
todas em comunidade, debaixo do mesmo tecto, tratavam dos filhos
umas das outras, ajudando-se, o homem exercia uma espécie de
“escravatura”, nas suas mulheres, pois elas é que trabalhavam
nos serviços mais duros na cultura do arroz, muitas com os
filhos pendurados nas costas, e baixadas na bolanha, tratando da
planta do arroz, por vezes
enterradas até aos joelhos,
creio que todas essas
bolanhas eram propriedade do
homem, que o Cifra nunca
soube se era o seu marido,
ou simplesmente “dono”, pois
por mais perguntas que
fizesse, a resposta não
tinha tradução, ou ele não
compreendia, que consoante a
sua riqueza, mais mulheres
podia adquirir, iam apanhar
lenha na floresta,
cozinhavam, algumas até
subiam às palmeiras, para
irem apanhar o fruto e fazer
aguardente, que os homens
bebiam, enfim eram uma
espécie de “escravas”,
desses mesmos homens, que a
maior parte do tempo, ficavam deitados na rede, mascando
cola, e com uma espécie de
bengalim nas mãos, com que
afugentavam algumas moscas do seu corpo, por vezes batiam nas
nádegas, dessas mesmas mulheres, para que se movimentassem um
pouco com mais rapidez.
Pelo que o Cifra observava, a mulher, só depois de uma certa
idade, quando já o marido não a usava mais, passe o termo, é que
teria uma vida mais pacata, pois normalmente, iria viver numa
morança com outras da sua idade, sempre próximo da morança do
seu marido, ou “dono”, pois o Cifra nunca soube qual era o
estatuto dessa mulher, e aí tomava conta dos filhos das suas
companheiras mais novas, cozinhava a panela do arroz, fumava o
seu tabaco, bebia o seu trago de aguardente de palma, que fazia,
e que normalmente estava a curtir num balaio, coberto com umas
folhas de bananeira, em qualquer lugar da morança, mas à sombra,
sem apanhar
sol, e
descansava,
berrando e
dando conselhos
às suas
companheiras
mais novas, que
nessa altura
eram as
eleitas, e
estavam na
companhia do
seu antigo
marido.
O Cifra
sempre acreditou, pelo que via, que os filhos e as filhas, foto
em cima, eram propriedade do marido, que normalmente, “vendia”,
passe o termo, ou única e simplesmente cedia, as filhas, ao
amigo “homem grande”, ou talvez a quem melhores garantias lhe
desse. Quando uma rapariga atingia a idade de catorze, quinze,
pois desasseis anos já era um pouco tarde, tinha que arranjar
marido, ou talvez “dono”, pois se não o fizesse, já não era bem
vista, e perguntavam, o que é que estava de mal com ela, que
ainda não tinha parido. Isto foi o que o Cifra observou na
região onde esteve estacionado por dois anos.
Em Portugal, e na província da Beira Litoral, portanto na
Europa, de onde o Cifra era oriundo, isto não era possível, mas
sim, na então província da Guiné, que estava situada na África,
que tinha os seus usos e costumes não
europeus, mas que o Cifra sempre respeitou, e afinal não era,
como ele tinha aprendido na escola primária da vila, a que
a sua aldeia do vale do Ninho D’Aguia pertencia, onde lhe diziam
que a província da Guiné tinha as mesmas leis, tal como a
província do Minho, do Alentejo, ou do Algarve, pois tudo eram
províncias de uma só nação, que era Portugal.
O Cifra, depois de frequentar outras escolas no estrangeiro,
verificou que tanto ele, como a maior parte da sua geração, na
escola primária que frequentou em Portugal, de proveito para o
seu futuro, única e simplesmente retirou de bom, alguma
disciplina forçada, saber ler e escrever em português com algum
rigor, fazer algumas operações com algarismos, mas num estilo
complicado, como por exemplo contas de somar, diminuir,
multiplicar e
dividir, conhecer o
mapa de Portugal,
onde havia algumas
cidades e vilas,
alguns rios,
estradas e caminhos
de ferro, e o
orgulho por ter
nascido nesse
cantinho da
Península Ibérica,
que é Portugal, com
um povo sofredor,
sol brilhante, à
beira mar plantado,
tudo o resto que o
professor Silvério
lhe explicava por horas, e exigia que a sua mente jovem
absorvesse, porque de outro modo lhe batia com uma régua de
madeira nas mãos, e com uma cana fina e seca nas orelhas, eram
assuntos sem qualquer interesse para o seu futuro, alguns até
nem eram verdadeiros, que induziam a sua mente jovem, num
tremendo erro, que o futuro veio mostrar, alguns anos depois.
O Cifra, só agora verificou que já está a ir longe de mais,
perdoem lá.
__________
Nota do editor:
Vd. último poste da série de 26 DE JANEIRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11007: Do Ninho D'Águia até África (47): Iafane, o barqueiro (Tony Borié)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
2 comentários:
Grande Tony
Não foste nada longe de mais, estes artigos são sempre benvindos, claro que estou a falar por mim e por muitos de nós, tenho a certeza que estão a gostar. A comparação de dois povos tão diferentes, nos seus usos e costumes, no fim têm semelhança em alguns pontos, mesmo havendo muita distância no tempo, a comparação dos quase extintos indios (acho eu), para os actuais balantas (1964-66). Estás mais uma vez de parabens e aqui vai um grande abraço do teu amigo Roger.
Delicioso...
Bernardo
Enviar um comentário