segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

Guiné 63/74 - P11016: Notas de leitura (453): "A Mulher Portuguesa na Guerra", coordenação do Cor Alberto Reis Soares e "A Pátria ou a Vida" por Gertrudes da Silva (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 30 de Outubro de 2012:

Queridos amigos,

Creio que a generalidade dos textos incorporados no livro “A mulher portuguesa na guerra” terão sido publicados na revista da Liga dos Combatentes.

Os depoimentos das enfermeiras paraquedistas são muito interessantes, Maria Zulmira André conta como foi buscar um ferido e um oficial paraquedista, responsável pela missão, a informar que não podia de modo algum deixá-lo morrer. Soube mais tarde que se tratava do capitão Peralta, oficial cubano.

“A Pátria ou a Vida”, de Gertrudes da Silva, é um livro emocionante, porque justo, varonil no recorte das figuras que vão dar respiração a tudo quanto se segue, todos convergem para o RI 15, dali abalam para a Guiné.

É reconfortante encontrar tão bons nacos de prosa de que ninguém fala, até apetece tocar o sino e perguntar aos editores porque ignoram documentos de altíssima qualidade.

Um abraço do
Mário


"A mulher portuguesa na guerra"; "A Pátria ou a Vida"

Beja Santos

“A mulher portuguesa na guerra e nas Forças Armadas”, coordenação do coronel Alberto Reis Soares e edição da Liga dos Combatentes, 2008, reúne textos de mulheres que viveram a guerra, acompanhado familiares ou como enfermeiras paraquedistas, as primeiras profissionais na frente de combate. No que toca à Guiné, este livro acolhe textos de um ex-combatente da CCAÇ 1418, José Jesus Cristóvão, e textos das enfermeiras paraquedistas Ivone Reis, Maria Arminda Lopes Pereira dos Santos e Maria Zulmira André.

Escreve José Jesus Cristóvão: “Partindo de Nova Lamego, íamos fazer uma operação a Madina do Boé. Deslocaram-se duas companhias, em viatura até ao Cheche, localidade junto do rio Corubal. A companhia que seguia à frente pisou uma mina e o militar que ia ao lado do condutor apanhou com a explosão em todo o seu lado direito. Já era noite, não foi possível a evacuação por helicóptero, tivemos que recolher num abrigo subterrâneo até ser dia para poder ser evacuado. Muito cedo, logo que foi possível ao heli, ele lá estava para evacuar o nosso camarada. O heli a poisar e já a maca corria (era levada) por dois camaradas nossos. Do heli salta uma enfermeira paraquedista agarrada à mala dos primeiros-socorros. Quando chegou junto do nosso camarada ferido, com a sua ternura feminina dá-lhe um beijo, ou mais do que um, acaricia-o, conforta-o e acompanha-o para dentro do heli… lá fomos atravessando o rio Corubal na precária jangada, em direção a Madina do Boé, tive este pensamento: que tamanha força pode fazer uma mulher na guerra! Ela não deu um beijo só ao meu camarada ferido… também deu um beijo a cada um de nós, que avançávamos!”.

A enfermeira Arminda tem um longo depoimento, intitulado “A minha vivência na Guiné”. Deixa-se o registo de algumas das suas memórias: “Eu tinha sido destacada para uma base de operações em alerta para evacuação urgente de feridos, desenrolava-se na zona de Cantanhêz uma grande operação militar. Numa evacuação o ferido mais grave era um turra, como se chamava na época. Vendo que o sol incidia sobre a sua cabeça, apressei-me a colocar-lhe a minha boina para o proteger, mas os outros feridos africanos indignaram-se porque era bandido. Porém, para nós, enfermeiras paraquedistas, era apenas mais um ferido a necessitar de todo o meu saber e empenhamento”. Descreve outra situação: “O avião foi puxado para junto dos bidões de areia e do arame farpado que protegia a área do quartel, onde o piloto e eu nos refugiámos. Os soldados à nossa volta deitados no chão com armas prontas a fazer fogo, montaram uma frente de proteção. O quartel foi posto às escuras e continuámos à espera dos feridos que nunca mais chegavam. Senti medo, pedi aos soldados que nos defendessem, porque, apesar de ter tido instrução de fogo, a nossa principal arma era a bolsa de primeiros-socorros. Fomos informados que um jipe com feridos estava a chegar. E agora que fazer, com feridos mas sem ordens para voar de noite? O ferido mais grave era um soldado com uma mão esfacelada e em estado de choque. Percebi de imediato que aquele jovem ia morrer se ali ficasse mais tempo, quanto mais se tivéssemos que esperar pelo amanhecer. O piloto e eu falámos sobre o assunto, ambos assumimos que íamos sair dali. Depois colocado a maca do ferido grave, os outros quatro feridos ligeiros foram distribuídos da melhor forma para me permitir um pequeno espaço de manobra. Com auxílio de uma lanterna de bolso, canalizei uma veia e pus o sangue a correr. O piloto deu instruções ao capitão para que o quartel se mantivesse às escuras, as autometralhadoras de proteção foram colocadas na pista no sentido da descolagem para que se acendessem e iluminassem quando o avião começasse a rolar. Dada a máxima força ao motor, o piloto iniciou a saída a acendeu-se um farol que existia no quartel (…) O piloto fez sair o avião numa linha de subida contínua e quando o ruído do motor mudou de som endireitou-o, evitando a copa das altas árvores. No ar, a caminho da nossa base, o fogo inimigo ainda tentou alcançar-nos, tarde de mais. Felizmente o ferido manteve-se vivo e o sangue posto a correr ia estabilizando a sua situação. Tanto o piloto como eu pensávamos que íamos ser castigados, mas tudo acabou em bem. Quanto ao ferido, ajudámos a salvar-lhe a vida”.


“A Pátria ou a Vida”, por Gertrudes da Silva, Palimage Editores, 2005, é uma grande, muito grande surpresa. É dedicada à CCAÇ 2785, que combateu na Guiné entre Setembro de 1970 e Setembro de 1972. É uma escrita escorreita, plausível, apresenta um grupo ilustrativo de atores, dá-lhes dimensão, o leitor navega facilmente pelo seu mundo.

Primeiro, João Benvinda, o mais velho de um ranchinho de 6 irmãos, já foi pastor de cabras e ovelhas, guardador de vacas e bezerros, cavador, mondador e mateiro: “E assim que os irmãos foram chegando à frente, fez-se jornaleiro de enxada, seitoira ou de gadanha nas mãos”. Foi de assalto para França, não resistiu ao chamamento da família, tinha de cumprir os seus deveres com a Pátria. O seu nome é mesmo João da Silva Rodrigues, depois deram-lhe um número mecanográfico. Apresentou-se na incorporação para a recruta no quartel de Viseu. Os seus melhores tempos eram os que passava no pinhal, a correr, a saltar e a rastejar. Seguiu para a cidade do Nabão. O cabo miliciano da sua secção é um gajo implicativo, o aspirante parece ser mais humano e o capitão também não parece ser mau sujeito. Gosta muito da Amélia, meteram-se em cavalarias altas, a rapariga está grávida, o melhor é acelerar as coisas para que ela não passasse pelas normais vergonhas destas irregulares situações.

Segundo, o 1º sargento Cebola, na sua criação passou por tudo, desde pastor a lavrador. Amparado por um tio que era irmão da mãe e guarda-republicano em Bragança, lá conseguiu tirar a 4ª classe nas escolas regimentais e depois a escola de cabos. Pensa com os seus botões que não vai propriamente em funções de combatente. Olha à sua volta e vê os cabos milicianos que são miúdos ainda mal acabados, os aspirantes até sabem-se dar ao respeito e o nosso capitão é outra coisa, mas envolve-se demasiado em tudo.

Terceiro, temos o gingão José Carlos Ribeiro Antunes, felizmente teve um pai com pulso, senão nem o 5º ano teria concluído, transpôs a porta de armas do RI 5, que era o centro de formação de sargentos milicianos, agora está na unidade mobilizadora que é o RI 15. Ofereceu-se para os Comandos e para os Rangers, em ambos os casos foi rejeitado por causa daquela maldita cicatriz que lhe apanhava toda a largura da coxa direita, sinal da parvoíce da queda numa brincadeira tola com uma motorizada.

Quarto, o aspirante Costa, nado e crescido até aos primeiros três anos em Ferreira do Alentejo, vila onde o seu pai teria sido colocado no final do curso de alistados da GNR. Recebeu rigorosa educação que lá em casa se distribuía com muita sopa e batatas cozidas, e pouco pão e menos carne. Andou pelo seminário, descobriu depois que gostava doidamente da Maria do Rosário, chegaram mesmo a um quase vias de facto. Foi depois para Coimbra cursar Direito, viu-se embrulhado no turbilhão da crise de 1969, após sumariamente interrogado e fichado pela PIDE/DGS, foi convocado para o curso de oficiais milicianos. À socapa, aderiu ao PCP. Adaptou-se a Mafra, juntou-se à insubordinação coletiva em reação à morte de dois camaradas num acidente com engenhos explosivos, na praia da Foz do Lizandro.

Dá gosto ler esta prosa sem arrebiques nem embaraços, a prova provada que a ficção não pode ser a realidade voltada do avesso. Segue-se a apresentação do nosso capitão.

(Continua)
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Nota do editor:

Vd. último poste da série de 25 DE JANEIRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11001: Notas de leitura (452): Fernando Baginha e o assassinato de Amílcar Cabral (Mário Beja Santos)

1 comentário:

João Carlos Abreu dos Santos disse...

As 268 páginas epigrafadas «A Pátria ou a Vida», não são "dedicadas" à CCac2781; e muito menos «à CCAÇ 2785», numeração atribuída a uma subunidade de artilharia (e que serviu na RMM em Dez70-Jan73).
O autor, Diamantino Gertrudes da Silva (20Fev1943), coronel de infantaria na situação de reforma, foi alferes comandante de pelotão da CCac1642 no noroeste de Angola (Fev67-Mar69); e, como capitão, comandou a CCac2781 no subsector de Bissum, apenas durante uma 1ª parte (Nov70>Fev71?), daquela que foi a sua 2ª e última comissão ultramarina.
Relativamente à 2781, a quem possam interessar memórias de alguns veteranos daquela subunidade de infantaria, além do disponível nos v/postais 670 e 4522, também "no exterior" existem alguns tópicos, como
p.ex, em guine-bissum.blogspot.pt/ e em facebook.com/Bissum .

Quanto ao "pensamento e opiniões progressistas" do referido oficial (MFA) - comunicadas em 'simposium' três anos após haver publicado o supra citado livro -, podem ser (re)lidas no postal 2632 deste mesmo blogue.
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