CARTAS DE AMOR E GUERRA
4. Um mal-entendido (?)
Logo na segunda carta de Bissau disse à namorada que a minha vida se modificaria em muita coisa se, quando eu voltasse da Guiné, não encontrasse a minha Mãe viva. E rematava dizendo: “estou convencido que até tu me perderias”.
Ora, ao ler tal coisa, imaginou-me logo numa atividade política perigosa (lembre-se a época!), convencida que era o amor pela minha mãe que me tinha andado a impedir tal atividade. Até não andou longe do que eu indiciava no texto e que não era mais que uma previsão bastante radical e até, naquela altura, sem suficiente sustentabilidade ideológica. O eu dizer que a namorada me perderia era porque a via sem condições e sem bases ideológicas para me “acompanhar” em qualquer movimentação mais ativa, de cariz político.
Incompatibilizado com a situação de guerra no Ultramar aconteceu ter-lhe dito, pouco tempo antes de embarcar, que se não fosse a minha mãe eu não compareceria ao embarque pois tinha gente que me colocaria em França sem grandes problemas. Tinha a certeza que minha mãe não compreenderia tal atitude, vá-se lá saber porquê. Não seria pela fuga em si, meu pai estava em Paris, já lá tinha o filho mais novo e quase todos os mancebos da zona tinham feito o mesmo caminho. Talvez porque fugir equivaleria a perder-me de vista, logo eu, “figura prestigiada na aldeia e arredores” devido à minha profissão, professor do ensino primário, profissão que já exercia há dois anos e da qual os meus pais se orgulhavam. E tinham razão para isso, eu também me orgulhava de exercer tal função, apesar do vencimento ser escasso, para não dizer que mal dava para comer e vestir.
Cabe aqui dizer que entre todos os mais de 30 mancebos da minha freguesia e do meu ano, apurados para o serviço militar, só dois tinham estudos para além da 4ª classe e eu era um deles. Percebo o orgulho de meus pais com o resultado dos seus sacrifícios para pagarem os meus estudos. É que o único ensino público mais próximo, para além do da escola primária, era prestado em Leiria, Figueira da Foz e Coimbra (a distâncias de 35 a 50 Kms). Assim, quem quisesse estudar mais, tinha de pagar hospedagem numa daquelas cidades ou então pagava o colégio particular em Pombal. Não era de admirar tal situação pois o povo não precisava de saber mais do que “ler, escrever e contar”, frase justificativa do governo do Estado Novo para o recrutamento de “regentes escolares” em vez de professores diplomados, ao mesmo tempo que criava postos escolares em vez de escolas. E depois há para aí gente espantada com a falta de desenvolvimento económico e social deste país! A “coisa vem bem de trás” e não é de um momento para o outro que se resolve um atraso de séculos na sua política educativa.
Em 1967, pouco depois da chegada da Guiné: Com meus pais, José e Belmira.
©Manuel Joaquim
Lisboa, 24/8/1965
(…) não deve passar-se nada com a tua mãe a não ser preguiça de teu pai para escrever. (…). (…) a tua mãe, oito dias depois do teu embarque, já andava bem-disposta, pelo menos conformada, e fisicamente também se sentia melhor embora ainda não tivesse ido ao médico. (…). Encontrá-la-ás com certeza quando voltares. Não penses que vai acontecer o contrário, (…). Mas se isso acontecesse? … Que farias?
Não preciso perguntar-to. Sei-o. Conheço-te bastante bem para descobrir o que pensaste ao falares-me em tal assunto. Agora que vejo que só o amor pela tua mãe (…) é capaz de te fazer renunciar ao que desejas acima de tudo, estou certa de que por nenhum outro amor serás capaz de sacrificar-te.
Falares abertamente contra isto e aquilo, expores as tuas ideias, fazeres valer os teus direitos e os de todos os que, contigo, estão subjugados seria a tua satisfação, a tua vitória. Mas seria o teu desaire, o teu aniquilamento completo, do mesmo modo.
Eu sei que não pensaste que me irias magoar com as tuas palavras, meu amor. Foste mesmo duro, (…). Em que contribuo eu para que a tua mãe viva ou não viva? Em nada. E no entanto tu sacrificar-me-ias. Estás ou não seguro dos sentimentos que nos unem? Creio que sim.
Disposta a dar tudo por ti, a lutar, a trabalhar como até agora porque a batalha nunca está ganha, serei vítima ou heroína, tu o decidirás já que me entreguei à tua disposição. De ti depende muito do que sou ou virei a ser.
(… … … )
Bissau, 1965/67: Entrada de Santa Luzia com duas bandeiras hasteadas.
Foto e legenda de Henrique Cabral, CCaç 1420. © Rumo a Fulacunda, blogue de H. Cabral
Bissau, Agosto 31/65
(… … …)
Minha querida, (…) sobre o que te provocou uma irritaçãozinha na última carta (…). É que tu viste a frase seca, brutal, com um significado único. (…). Foi assim que pensaste, não foi? E então vá de vociferares, de te lamentares, se calhar até de chorares.
(…).
A minha mãe criou-me com muitas dificuldades. (…). É razoável, humano, tremendamente humano que ela procure tirar, de todo o seu sacrifício passado, a satisfação (…) de me ver avançar na vida incluído num outro ambiente (…). Para quem viveu com tanto sacrifício, (…), sujeita a todas as vicissitudes da vida rural, colocar um filho fora daquele círculo vicioso é uma coroa de glória.
Embora me não sinta nada “grande”, não posso contrariar essa opinião que as pessoas simples do campo fazem da vida dos que se livram de cavar terra ou de a ela estarem sujeitos. (…)
Ora dizia eu na outra carta que, se voltasse aí e não encontrasse a minha Mãe, a minha vida modificar-se-ia completamente. (…) E então, esqueci-me de ti? Não.
[Se morresse] …a minha Mãe perderia tudo, nunca chegaria a olhar com orgulho a progressão do seu filho, (…), a sua vida teria sido um contínuo lutar sem resultados à vista. (…). Tudo aconteceria como se tivesse semeado uma seara com todo o carinho e sacrifício e, na hora da colheita, faltassem as forças (…) para colher os frutos do seu trabalho. (…). É mais que razoável esta comparação.
(… … …).
Aquilo (…) [em que pensava] ao dizer que a minha vida se modificaria era a (…) que a minha Mãe nunca conseguiria compreender mas sei que tu compreenderias e, ouso afirmar, até me ajudarias.
(…) nada temas. Eu velo por ti. (…) Talvez como tu nunca imaginaste nem imaginas. (…). Eu amo-te assim como és mas, (…), insisto que te cultives, que progridas ainda mais. (…).Tem calma e não te apoquentes.
(…). Sou um fala-barato? Não. Vejo os acontecimentos. Talvez por já ter passado por eles e te conhecer bem para poder afirmar-te isto.
(… … …)
Bissau, Setembro-7/65
Sem dúvida que gostei muito da tua última carta. Não posso deixar de o dizer. Esta alegria de ver-te abrir os olhos, de corpo afeito ao mundo a arrostar com o que der e vier, sincera contigo e com o próprio mundo das coisas que te rodeiam, não podia deixar de me impressionar agradavelmente.
O mundo, tu sabes, é tão complexo! O que é preciso é (…) decifrar os seus mistérios. Não, de maneira nenhuma se deve é declarar que estes são insolúveis e, temerosamente, deificá-los.(…).(… … …).
(… … …)
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 23 DE JANEIRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P10991: Cartas de amor e guerra (Manuel Joaquim, ex-fur mil, arm pes inf, CCAÇ 1419, Bissau, Bissorã e Mansabá, 1965/67) (3): Em Bissau
10 comentários:
Manuel Jaquim, como eu percebo esse "amor de mãe" (possivelmente a tatuagem mais popular que se fazia nos nossos braços, na época):
(...) "A minha mãe criou-me com muitas dificuldades. (…). É razoável, humano, tremendamente humano que ela procure tirar, de todo o seu sacrifício passado, a satisfação (…) de me ver avançar na vida incluído num outro ambiente (…). Para quem viveu com tanto sacrifício, (…), sujeita a todas as vicissitudes da vida rural, colocar um filho fora daquele círculo vicioso é uma coroa de glória." (...)
Caro Manel,
Fala barato não terás sido, mas que te meteste numa bonita enrascada entre saias, isso sim.
Podes agradecer aos Deuses e a tua compreensiva esposa, por não teres perdido neste pequeno "mal-entendido" todas as penas do corpo.
Obrigado pela sinceridade e realismo do quadro da época que, certamente, teve seus reflexos e consequências indirectas em outros quadrantes. Continua.
Um abraço amigo,
Cherno Baldé
(...) "Cabe aqui dizer que entre todos os mais de 30 mancebos da minha freguesia e do meu ano, apurados para o serviço militar, só dois tinham estudos para além da 4ª classe e eu era um deles". (...)
É bom lembrar isto... Não como arma de arremesso político-ideológico contra o Estado Novo que nos mandou para a guerra, mas para reforçar a ideia do nosso atraso secular... E já que falas em três dezenos de mancebos do teu ano e incorporação, prontos a lutar e a morrer pela Pátria, pergunto-te quantos não terão morrido nos cinco primeiros anos de vida...
Portugal estava longe, em meados do séc. XX, de ter entrado na senda dos países desenvolvidos cujas taxas de mortalidade infantil, evoluíram de 35 para 7, no período do pós-guerra até ao final da década de 1980.
Em 1910 a taxa de mortalidade infantil, entre nós, era de 209 (morriam 209 crianças, até a um ano, em cada mil); só 40 anos depois é que está abaixo dos 100 (94 é valor referente a 1950).
Até 1974, os valores das taxas de óbitos de crianças até 1 ano de idade por 1000 nados-vivos colocavam-nos entre os países do continente europeu de mais elevada mortalidade infantil, ao aldo da Jugoslávia.
Só a partir desse ano, é que se dá início ao percurso de um declínio sensível: (i) em 1995, a taxa de mortalidade infantil já está dentro da média europeia (7.4), embora continuasse ainda a ser a mais elevada da UE; (ii) hoje é um das dez melhores do mundo.
Fonte: Luís Graça (1999)
http://www.ensp.unl.pt/lgraca/textos30.html
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(... )"Portugal surge na lista da UNICEF referente aos dez países com a mais baixa taxa de mortalidade registada no ano passado, com uma taxa de 3,4 mortes até aos cinco anos por cada mil nascimentos.
"O primeiro país da lista (que inclui apenas países com mais de 500 mil habitantes) é Singapura, com uma taxa de 2,6, seguida da Eslovénia, Suécia, Finlândia, Chipre, Noruega, Luxemburgo, Japão e Portugal.
"A lista dos dez melhores países termina com a Dinamarca, com 3,7 mortes em cada 1.000 nascimentos." (...)
Fonte: Sol, 13/9/2012
http://sol.sapo.pt/inicio/Sociedade/Interior.aspx?content_id=59031
Olá Manuel Joaquim.
Descreves realidades, sim a mãe, pelo menos no meu tempo, representava quase tudo, o pai era o pai, representava aquele respeito do pai, mas a mãe era só carinhos, mesmo até quando limpava a cara aos filhos, com um avental sujo e encardido!.
Quando acabávamos a quarta classe da instrução primária, as pessoas idosas, já nos apontavam que sabíamos ler e escrever, portanto éramos "letrados", os que tinham o previlegio de continuar a estudar, eram apelidados de "doutores".
Por favor continua.
Um abraço, Tony Borie.
Manel, quem não "pensou", ao menos, em arranjar uma "copine" (a fêmea do "copain") em França, de preferência em Paris, na "rive gauche" ?!... Quem não "pensou", não "desejou"... Que lance a primeira pedra...
Que ingénuos que nós éramos!... Românticos, "ma non troppo"... O exército foi muito mais "allegro"...
Em suma... Obrigado, por partilhares mais um "segredo"... sem teres que ir para a "casa dos segredos"...
Ó Manel, então aquilo faz-se?
Pregar um susto daqueles à namorada? S´+o lhe disseste o que disseste porque lhe estavas a escrever a milhares de quilómetros de distância.
Cara a cara, não eras homem para isso.
Até amanhã
armando pires
Oh Luís, nem me fales!
Paris nos meus tempos de juventude era o "mundo" mais desejado, mais sonhado, o único de onde poderia sair a revolução salvadora e purificadora desta pobre humanidade sujeita à "exploração do homem pelo homem"! E tinha Gréco, Brassens, Brel, etc. etc. e ... " et Dieu créa la femme" Brigitte Bardot a erotizar o meu abafado, infeliz e oprimido percurso de vida.
Grande abraço
Manuel Joaquim
Caro Manuel Joaquim,
Já há algum tempo atrás noutro post que escreveste deixaste-me a pensar que deves ter tido uma família espectacular.
Pois no meio rural não era nada vulgar os pais porem os filhos a estudar para além da 4ª. Classe a não ser os mais abastados.
Mesmo nas grandes cidades principalmente Lisboa e Porto como é o meu caso já só fiz o exame de admissão às Escolas Técnicas, porque o meu pai achou que não tinha pedalada económica para me manter no Liceu. E mesmo assim depois de ter completado o 1º. Ciclo tive que saír para ajudar o meu pai na sua tarefa de pequeno comerciante.
Assim aos 12 anos fui desviado dos bancos da Escola para o trabalho em pé, porque o meu pai dizia que empregado de balcão não se senta.
Passado um ou dois anos fui para empregado de escritório e para não deixar de estar sentado voltei aos bancos da Escola Comercial Oliveira Martins até entrar para a tropa já devidamente diplomado com o meu canudo de guarda-livros conforme se dizia então.
A vida não era fácil e então nos meios rurais era muito mais complicada.
Isto tudo só para dizer que aprecio muito o que escreves e a experiência de vida que já demonstravas têr.
Um grande abraço para todos.
Adriano Moreira
Pois é, meu caro Adriano Moreira:
Parece incompreensível, aos olhos de hoje, a situação do ensino público em Portugal nos meados do sec. XX. No meu caso nem para a Escola Técnica poderia ir porque tal coisa não existia em Pombal aquando saí da "primária", escola aquela que só apareceu uns anos depois na parte final da década de 1950. Para os que quisessem ( e pudessem) continuar a estudar havia um colégio particular "a pagantes", o colégio Marquês de Pombal onde completei o Curso Geral dos Liceus.
Dinheiro (não) havia: em 1959, as dívidas da família obrigaram meu pai a emigrar.
Aqui tens a razão porque a memória de meus pais me é tão querida e emocionadamente agradecida.
Grande abraço
Manuel Joaquim
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