segunda-feira, 4 de novembro de 2013

Guiné 63/74 - P12250: A guerra vista do outro lado... Explorando o Arquivo Amílcar Cabral / Casa Comum (6): Carta de Marga ('Nino' Vieira) a Aristides Pereira, presumivelmente de meados de 1964, em que refere um desembarque das NT em Gampará, que terá provocado a morte de "22 pessoas do povo e umas vintenas de vacas" (sic)

1. Transcrição de mais um documento do Arquivo Amílcar Cabral (*), disponível no portal Casa Comum (projeto ligado à constituição de uma "comunidade de arquivos de língua portuguesa", liderado e desenvolvido pela Fundação Mário Soares).

Trata-se  de um manuscrito, de 5 páginas, não numeradas, sob a forma de carta, entregue por mão própria, assinada por Marga (pseudónimo de 'Nino' Vieira, comandante da Frente Sul,  mais  conhecido, no seio da sua tropa,  por Caby, ou Kabi, seu verdadeiro nome de guerra) (**) em que comunica a Aristides Pereira  (no exterior, em Conacri, com o cargo de secretário-geral adjunto do PAGC) que:

(i) chegou ao chão dos Nalús [, ou seja, o Cantanhez,  região de Tombali],  depois de concluída uma  missão nas outras zonas; (ii) dá conta do desaparecimento do comandante Honório Vaz na Zona 7;  (ii) relata sumariamente  as consequências do ataque  das tropas portuguesas  desembarcadas em Gampará, dias antes de ele chegar à região de Quínara; (iv) fala de queixas do povo contra Malam Sanhá (, comissário político que tinha feito, antes da guerra, trabalho de mobilização de pessoal na região de Fulacunda, sob as ordens diretas de Amílcar Cabral); (v) manda lista de camaradas que têm cometido crimes (sic) contra a população na região  de Quinara (, já antes o problema da violência perpretada contra elementos da população por combatentes do PAIGC, se tinha levantado, no Congresso de Cassacá, realizado de 13 a 17/2/1964, no setor de Quitafine) ; e ainda (vi) refere  ataque das tropas portuguesas à base central [, presume-se. no Cantanhez

Repare-se ainda no trecho da carta em que, depopis da denúncia do Malam Sanhá e de outros camaradas sobre os quais recaem graves acusações, o 'Nino'  manifesta ao Aristides  o seu interesse em falar direta e pessoalmente, sem qualquer intermediário,  "com o Secretário Geral [Amílcar Cabral], a fim de  [expor-lhe] uns certos problemas respeitantes à n[ossa] luta". Não podia ser mais explícito: "Tenho certos assuntos que pretendo pôr ao Secretário face a face". O mesmo é dizer que secretário só há um...

A carta não tem data, mas pertence ao lote da correspondência dos responsáveis da zona sul, relativa aos anos de 1963/64 (algumas  são ainda de 1962, quando já havia ações de sabotagem e escaramuças com as autoridades portuguesas, por exemplo, o ataque, gorado,  á esquadra de polícia de Catió, em que o próprio 'Nino' participa!).

Entretanto, cotejando-a  com outra, de 29/8/1964, [, também dirigida ao Aristides Pereira, escrita com a mesma  letra (perfeitamenet legível, e num português relativamente desenvolto, acima da média da literacia de outros comandantes) e em que Marga (i) se queixa da falta de professores, tendo só um professor, o Areolino,  para tantas alunos, (ii) agradece o relógio que lhe enviaram, e (iii)  requisita  sabão "asepso" (sic), ] não temos dúvidas de que se trata de correspondência datada dessa altura (agosto/setembro de 1964)...


Revisão e fixação de texto: L.G. (*)
____________________

2. De Marga [Nino Vieira,  comandante da frente sul, então com 25 anos, foto à esquerda, disponibilizada por Virgínio Briote (**)] para Aristides Pereira [, secretário geral adjunto do PAIGC, desde 1964,  a viver em Conacri, e então com 40 anos]

Camarada Aristides:

A vossa saúde em companhia dos n[ossos] camaradas, são os meus maiores desejos. Nós bastante bons graças ao Devino [Divino] e ao povo.

Comunico-vos que vim [acabei] de chegar no dia 7 ao [chão dos] Nalus, depois de ter conduzido a missão, que fui confiado a cumprir nas outras zonas. Claro que fiz uma boa viagem, donde contactei face a face com os camaradas e o povo, explicando-lhes a razão que levou o Secretariado a tomar estas decisões, a fim de melhorar a nossa condição de luta no interior.

Passei por diversas bases e tabancas do povo. Demorei um mês para concluir toda essa volta. Não tenho encontrado nenhum obstáculo durante a minha viagem, nem tão pouco tenho visto reservazinhas [sic] da parte dos camaradas. Depois de ter contactado com o povo, manifestaram bastante os seus apoios quanto à luta e à decisão que foi tomada ultimamente para unificação das zonas.

Temos colocado responsáveis dos sectores e de bases em todos os pontos indicados.

O camarada Honório Vaz não se encontra na Z[ona] 7 e ninguém sabe do paradeiro deste. Alguns dizem que está na zona e os outros dizem que foi para o Senegal.

Dias antes de [eu] chegar a Gampará, as tropas portuguesas desembarcaram aí, onde destruíram todos os bens do povo. Mataram 22 pessoas do povo  e umas vintenas de vacas.

Junto [h]ouve pessoas do povo que têm participado queixas contra o Malam Sanhá e outros. Junto segue a lista dos camaradas que têm cometido crimes contra a população na área de Quínara. Junto queria contactar com o Secretário Geral [Amílcar Cabral], a fim de expô-lo [expor-lhe] uns certos problemas respeotantes à n[ossa] luta. Tenho certos assuntos que pretendo pôr ao Secretário face a face.

Da minha ida a Cubisseco, aproveitei de [para] trazer para a base central a camarada Carlota da Silva, afim de auxiliar o Areolino Cruz nas instruções [aulas de alfabetização], porque ele sozinho não pode. Trouxe-a comigo depois de ter trocado com ela algumas impressões, na apresentação do João Tomaz e Guerra. Ela já se encontra na base e deve começar a dar instruções [aulas], dentro destes dias.

O Sadjá Bambé disse para dizer ao Luís [Cabral] de mandar-lhe o seu relógio se já estiver pronto. Agradeço mandar-nos oferecer fardas, porque as que os camaradas tinham, foram destruídas pelos portugueses.

No dia 20 deu-se um grande ataque nos arredores da base. As tropas inimigas avançaram até à base central e destruiram aí [sic]. Tinham com eles um guia que conhece muito bem o caminho.

Agradeço ainda de mandar-me oferecer sabão assép[tico], se possível. As mercadorias ainda não atravessaram a fronteira mas vou fazer tudo com que isso atravesse [sic].

Podem confiar [a]o portador desta [carta] de trazer aqueles materiais para defesa dos rios.

Portanto termino. Desejando-vos a todos um bom sucesso nos vos[sos] afazeres. Marga [Nino Vieira]


Fonte
(s.d.), Sem Título, CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_39133 (2013-11-3)

Para ampliar o documento clicar aqui:

Casa Comum

Instituição: Fundação Mário Soares

Pasta: 04613.065.047Assunto: Comunica que chegou a Nalús depois de concluída a missão nas outras zonas. Desaparecimento de Honório Vaz. Ataque das tropas portuguesas em Gampará. Queixas do povo contra Malam Sanhá; lista de camaradas que têm cometido crimes contra a população na área de Quinara. Ataque das tropas portuguesas à base.

Remetente: Marga (Nino Vieira)

Destinatário: Aristides Pereira

Data: s.d.

Observações: Doc. incluído no dossier intitulado Correspondência 1963-1964 (dos Responsáveis da Zona Sul

Fundo: DAC - Documentos Amílcar Cabral

Tipo Documental: Correspondencia

Direitos: A publicação, total ou parcial, deste documento exige prévia autorização da entidade detentora.

______________

Notas do editor:

(*) Último poste da série > 31 de outubro de 2013 > Guiné 63/74 - P12229: A guerra vista do outro lado... Explorando o Arquivo Amílcar Cabral / Casa Comum (5): Relatório de 22/12/1966, assinado por Brandão Mané, sobre a situação militar na região Xitole-Bafatá, reportando importantes perdas em homens e material

(**) Sobre o 'Nino' Vieira,  vd. aqui poste de 9 de março de 2009 >  Guiné 63/74 - P4001: Nuvens negras sobre Bissau (19): 'Nino' Vieira (1939-2009): tão bom combatente como mau político (Virgínio Briote)

1 comentário:

Henrique Cerqueira disse...

Tenho muito respeito pelo povo da Guiné e lhes desejo com toda a sinceridade que sejam um povo feliz e independente.
Quanto ao Nino Vieira que descanse em paz e que a terra lhe seja pesada.Paz à sua alma nos quintos do inferno.
Henrique Cerqueira