1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 26 de Agosto de 2013:
Queridos amigos,
É facto que a paródia, a gargalhada e o dito inconveniente deixam de pé atrás todos aqueles que entendem que a guerra é um assunto muito sério, insuscetível de dichotes e paródias.
Facto é que a gargalhada saudável não se deixa impressionar por esses espíritos que exigem uma associação clara e perfeita entre a geografia da guerra e a panóplia de virtudes militares.
“Soldadó” é uma gema literária da literatura de guerra, sente-se quando se lê ou relê que já não se compadece com o figurino temporal, é uma derrisão que pertence ao melhor que a literatura de guerra produziu entre nós.
Um abraço do
Mário
Relendo uma obra-prima: Soldadó, por Carlos Vale Ferraz
Beja Santos
A derrisão, a chacota, o divertimento quase ilimitado em torno da guerra é uma permanente tentação literária. Perante o tratamento sério, a agitação de valores, o discurso sobre a bravura, o heroísmo, a plena abnegação de si, o escritor que se pauta pelo burlesco, a chalaça, a paródia e o chocarreiro modela a trama narrativa como se virasse a guerra do avesso, e quanto maior é a inspiração e o talento a prosa comediante torna-se plausível, o leitor é tomado por um humor cáustico e, no final, sabe bem medir as consequências da carga metafórica de tudo quanto leu. Quando lemos aqui no blogue o Jorge Cabral ou o Alberto Branquinho, dois alquimistas do riso, ficamos com a noção de que a gargalhada é o perfeito contraluz para estes teatros de guerra onde tudo corre ao contrário e a valentia tem outro significado.
Vem este apontamento para localizar “Soldadó”, de Carlos Vale Ferraz, ao que sei a sua única incursão pela graça fértil, esfuziante (Editorial Notícias, 1997). A contracapa é esclarecedora: “Soldadó é um militar destacado para África, em plena guerra colonial. Pouco dotado de inteligência e obediente que nem um cão, Soldadó sente-se às mil maravilhas nas suas funções militares. De um combate misterioso que ninguém sabe ao certo como começou, Soldadó foi o único ferido. Abre-se um inquérito para tentar esclarecer os factos ocorridos. É neste inquérito que os sargentos vão contando ao comandante encarregado do relatório a história incrível de Soldadó – o seu nascimento em cabeça seca, a sua incursão na vida militar, a viagem para África a bordo do Niassa, as suas funções militares em África. Com muito humor, são também relatados pitorescos e caricatos acontecimentos militares, pondo em causa toda a instituição militar e, muito particularmente, a guerra colonial”. É literatura tão universal quanto “Lugar de Massacre”, de José Martins Garcia, outro monumento literário, já com dois doutoramentos à sua custa, e de aqui já se fez referência. É certo que o autor transfere toda esta pirotecnia, todo este humor em fogo preso para Moçambique, mas cabe ali qualquer teatro de operações.
O nosso herói chama-se Fergusinho do Ó, não sabia ler nem escrever, era básico, mas não havia ninguém mais disponível do que ele: cangalheiro, sacristão, fiel de armazém, projecionista de filmes pornográficos, estivador e até piloto e guarda-costas de cíclicas excursões de prostitutas, vindas para animar os infortunados guerreiros.
Tudo se passa em Mueleka, um comandante recém-chegado promove uma reunião para apreciar o insólito caso do Soldadó. É este processo delirante que se vai desenovelando como portentosa comédia de costumes de corporação militar. Estão presentes o tenente-coronel, comandante de Mueleka, o segundo comandante e mais uma data de gente, como é o caso do narrador. O comandante quer tudo em pratos limpos, ao capitão Gorgulho cabe as primícias, Fergusinho do Ó nasceu em Cabeça Seca, terra de hereges, lá no ermo nortenho. O Soldadó foi apurado para as fileiras se bem que completamente blindado de inteligência, coube-lhe como escola o Regimento de Infantaria 13. Ficou demonstrado que não lhe podiam entregar uma G3, o Soldadó, por artes mágicas, disparava em todas as direções, só a boa sorte evitou acidentes mortais, foi assim que o reclassificaram em soldado básico, não sentiu qualquer pesar, depois foi mobilizado para a guerra.
Passo a passo, o Soldadó aparece associado a peripécias descomunais: durante uma missa campal deitou no cálice da consagração bagaço da intendência, o capelão contorcia-se de sufocação, com a goela em chamas. O tenente-coronel mais congestionado fica com a descrição das gentes de Cabeça Seca, a chegada das putas de Kampuka e a missão do Soldadó em receber as verbas pela prestação de serviço, controlando os tempos da mesma. A trama narrativa é uma delícia e não deixa desfalecer o leitor, à volta daquele tenente-coronel desfilam oficiais e sargentos de vária ordem, cada um é mais hílare que o outro, a facécia seguinte é mais divertida e descomposta que a anterior. Os testemunhos prosseguem, é preciso descobrir-se como é que o Soldadó está prestes a acabar a segunda comissão em Mueleka, querem fazer do Soldadó um herói e acabam por descobrir esta terrível irregularidade que em termos de justiça militar vai custar uns bons castigos a uma certa hierarquia negligente.
O Soldadó impôs-se, não há missão em que não se revele imprescindível e não dê bom andamento ao serviço, já zelou pelas meninas que visitam regularmente o quartel, foi cangalheiro, é exemplar como fiel de armazém, eis senão quando uma visita à habitação do Soldadó revelou algo de surpreendente: aqui se descobriram fios de ouro e de prata, carteiras todas limpas de dinheiro, algumas contendo fotografias de familiares, enfim, coisas que o soldado achara um desperdício irem para o fundo da terra numa urna de pinho, havia até mesmo dinheiro enrolado em notas o que indiciava que o Soldadó também descobrira as delícias com as meninas vindas de Kampuka. E não menos impressionante foi descobrir-se uma metralhadora HK, uma caixa de cinco dúzias de granadas de mão, uma G3, uma faca de mato e uns binóculos que ninguém soube como tinham ali ido parar. Acontece que este material terá tido muita utilidade quando começou um misterioso ataque a Mueleka, saiu do quarto, disparou infatigavelmente até ser ferido por um estilhaço.
Aquele ato veio mesmo a calhar, Mueleka estava nesse dia a ser visitada pelos altos comandos, aquele herói dava jeito, ainda por cima o general tinha ouvido o farto fogachal, o comandante viu ali a boa circunstância para conquistar uma medalha. Iniciado o processo para a condecoração, descobre-se que o soldado anda por ali há quase duas comissões, desaparecera a nota de substituição, ninguém deu por nada quanto à falta de rendição do Soldadó. Voltara-se o feitiço contra o feiticeiro. Quem fez o relatório do foguetório descobriu que este fora uma brincadeira combinada entre a companhia de caçadores e a artilharia para assustar o general e os oficiais do Estado-maior. O comandante tudo ouvia, já com os olhos revirados e exigiu que constasse que a guarnição de Mueleka sofrera um violento ataque do inimigo, do qual resultara um ferido e danos em instalações. E foi perentório, quem afirmasse o contrário iria a tribunal militar por traição. Atendendo ao tempo de serviço, disseram-lhe que iria rapidamente para casa, ele opôs-se: “Meu alferes, eu fico cá e o exército escusa de mandar vir outro soldado da metrópole para me substituir!”. Quis o destino cruel que a história, até agora pícara, tivesse um desfecho truculento, mesmo o comportamento dos soldados obedientes é imprevisível, e depois do que aconteceu o comando, oficiais e sargentos estavam radiantes, não percebiam a dor daquele Soldadó que se afeiçoara, de alma e coração, a Mueleka.
É uma novela espantosa, este “Soldadó”, pela arquitetura da irreverência, pela graça transbordante, pela galeria de gente pícara. Não dá para entender o silêncio à volta desta obra-prima, tão necessitada está de reedição.
____________
Nota do editor
Último poste da série de 22 DE JANEIRO DE 2014 > Guiné 63/74 - P12622: Notas de leitura (555): “Magrheb/Machrek – Olhares luso-marroquinos sobre a Primavera Árabe”, por Raul M. Braga Pires (Francisco Henriques da Silva)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
3 comentários:
Olá Camaradas
A dada altura (1973) o Matos Gomes esteve em Mansabá a preparar uma CCmds e certamente conheceu(?) um soldado da minha companhia de alcunha "O Cartucho" que satisfaz quase completamente à descrição do Soldadó. Penso que terá sido o tipo inspirador do escritor. Tinha uma profissão civil verdadeiramente estonteante - "cobrador de carrocel côr verde" - e, na tropa começou por ser pontoneiro de apoios fixos. Quando foi parar à minha companhia já ia na 12ª porrada. É que, embora fosse um tipo porreiro era doente da psiche e cada vez que ia ao HM 241 desertava ou, no mínimo, constituía-se ausente sem licença. Nessa conformidade, sempre que ia ao hospital passou a ir acompanhado por um furriel que o levava e trazia, para lhe evitar "tentações". Embora não tivesse dinheiro nem para mandar cantar um cego, ia para as tabancas à roda de Bissau e depois ficava por lá até resolver voltar. O que fazia não sei. O que comia e onde dormia também não. Mas de uma coisa estou certo, divertia-se. Na companhia, ajudava vagamente na cozinha, embora, em consequência das porradas, tivesse sido "reclassificado" em atirador. Porém, eu tinha uma certo receio da sua reacção em caso de perigo e, por isso, reclassifiquei-o em descascador da batatas, carregador de sacos e actividades afins e ele dava conta do recado. Sou mais eficaz do que o Serviço Psicotécnico!
Só me chateei com ele uma vez, quando recebi uma carta da mãe a pedir-me notícias. Creio que tinha um irmão que foi ao ar numa viatura minada e ficou hospitalizado. Por isso, nomeei-o escritor de aerogramas para a mãe, sentado numa cadeira, ao ar livre (para arejar as ideias) e armado de esferográfica BIC e munido de aerograma a condizer.
A pobre da mãe não voltou a contactar-me.
Que será feito deles, destas malhas que o Império teceu?
Um Ab.
António J. P. Costa
«Modelos» para o herói de «Soldadó» houve muitos!
No Olossato, conheci mais do que um.
J. Morais
"SOLDADÓS"
Houve muitos e certamente ao Coronel Matos Gomes não lhe faltaram "exemplos" para se inspirar.
Com o ingresso nas fileiras por conscrição e com as juntas médicas militares de avaliação a serem meras formalidades...nunca faltaram "soldadós".
Dei instrução a 52 soldados,18 dos quais eram analfabetos,e apesar de o facto de se ser analfabeto não significar ser menos inteligente, dos 18 analfabetos 2 eram completamente "imbecis".
Também havia os "espertos saloios"ou "chicos espertos" espécimen muito comum na sociedade tuga..que me irritam solenemente.
Apesar de tudo na Guiné havia maior selectividade..podiam ser analfabetos...mas tinham "esperteza nos cabeça".
Já agora também havia "sargentós e oficialós"..a bem da verdade.
C.Martins
Enviar um comentário