FRAGMENTOS DE MEMÓRIAS
10 - APROVEITAMENTO DOS TEMPOS LIVRES DE BISSAU
FEVº DE 1967
Em Bissau, no poilão, conheci alguém que se dizia, irmã do Amílcar mas nunca me interessou saber se o era mesmo, só gostava de a ouvir dizer, que e tal como eu, nem o podia ver.
Ouvi a voz da Rádio Argel ou Portugal livre, sei lá... e não gostei, bem como a Rádio Moscovo e ena pá... era um fartote de dizer mal de nós, dos nossos governantes, tal como hoje alguns fazemos, dos actuais. Por isso e não valendo a pena estar desinformado, mudava de canal que já nessa época era possível zappingar manualmente a rádio.
Dediquei-me à nossa, das Forças Armadas e como o Durão houvera sido também do meu pelotão, sempre ia transmitindo umas musiquinhas a meu pedido.
Tendo tempos livres aproveitei para "tirar" as cartas de condução militares. Já fora chofer de tudo o que havia com volante, desde jeep's, Unimogs, GMC's, Daimler's, mas aqui na cidade convinha ter um papel assinado, qu'os gajos da polícia, limpos e perfumados, eram beras com'ó caraças e pouco inteligentes, porque se atreviam a ser não só provocadores, mas também abusadores dos poderes que lhes atribuíam e não poucas vezes assisti a situações que poderiam ter vindo a originar verdadeiras cenas violentas.
Eram a Polícia... bonitos e bem fardados... de lenço ao pescoço e tudo, e até conheciam o local, onde estavam aquartelados, comendo do bom e do melhor. Piores que cuspideiras, que destas sempre podíamos fugir, quando derrubávamos os cibes e as víamos, quase posso afirmar que perderiam a fanfarronice se tivessem de combater na mata.
Só se não metiam com os fuzileiros que a experiência sempre deu mau resultado.
Era lindo de se ver como fugiam a sete pés quando os bispavam.
Bissau, começava a ter muitas mulheres Portuguesas, esposas dos ilustres. Inicialmente olhadas como se d'outro Mundo fossem, agora misturavam-se com a pasmaceira citadina e andavam livremente, não sem um ou outro dixote mais atrevido.
Criei uma equipa de futebol na 1.ª Rep, onde fui treinador, jogador em qualquer lugar (sim porque o que eu queria era manter-me activo), os jogos eram marcados para as manhãs de Domingo e deviam terminar na confraternização almoçaral... e assim se ia passando o tempo.
Se repararem na foto, notarão que o dono da bola, sou eu.
Não haviam chuvas agora e as tardes descambavam em passeios à piscina de Nhacra ou até em alegres petisqueiras de camarões em Quinhamel. O tiroteio ouvia-se cada vez mais estrondoso e perto.
Tudo caminhava bem para mim, mas roía-me continuadamente o meu próprio caminho feliz. Bastas vezes me apeteceu desistir e dizer com'ó meu pai: Vão pró Vatícano pázinhos (leia-se vatí, ou seja com acento no "i").
Mais tarde tive de lhe perguntar porque não Vaticano. Respondeu-me e percebi então que usava vatí pela mesma razão que carregava no primeiro "á" daquela palavra tão linda que define o órgão sexual masculino (?) e cujo nome não sei dizer nem ficava bem numa crónica deste estilo galhofoso, educativo e quiçá... quiçá... embora fosse palavra bem corrente na nossa linguagem.
Enquanto briosos militares qu'éramos, vulgar era o "vai pró... (isso). Era um intelectual o meu pai, creiam, aliás como sempre o foi e ainda hoje é recordado aqui perto, em Belas, onde como carteiro, cumpria a sua missão na tasca ali ao lado do rio na Rua Victor Córdon, onde fazia a distribuição, mas com regras que ele próprio estabeleceu, ou seja: quem queria saber se tinha correio, teria de pagar primeiro um copo de "três".
GANDA PAI, que pena tenho de não ser como tu foste.
Foram-me dadas hipóteses de conhecer gentes bem importantes, civis, e foram-se fomentando algumas boas relações entre quem ainda pensava Português, tanto que ainda hoje, quase 48 anos passados, embora poucos, somos amigos e contactamos.
Apreciávamos boa música, boas comidas, boas bebidas e as nossas conversas, foram-me dando conhecimentos que nunca poderia usufruir doutra forma.
Também começava a ser mensalmente possível ter contactos, com moças "verdianas" que ali vinham passar oito dias, em viagens de barcos comerciais que passavam por Cabo-Verde.
Musicalmente surgiu uma melodia que me obrigou até a comprar um "vira discos" e o próprio disco da "Aline," coisa bem linda cantada por um tal de Cristophe e eu que já julgava ter perdido a capacidade de sonhar, voltei a fazê-lo durante os momentos d'ócio.
Também o "Il Mondo" de Jimmy Fontana foi outro dos meus favoritos.
Depois veio o Gianni Morandi com o seu "Nom son degno di te" e lá se me agudizou o romantismo latente então.
Os versos mais pareciam terem sido escritos por mim e como que prestasse uma homenagem de despedida da Guiné, que fora minha nestes últimos 20 meses. Aquele verso "Num monte de pedras, pode nascer uma flor", que ainda hoje preservo ficou como um marco histórico e mais nenhum poeta me emocionou tanto ou escreveu, o que considero um grito de esperança.
COISAS, enfim, duma pobre mente, então e hoje ainda depauperada.
(continua)
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Nota do editor
Último poste da série de 12 DE JANEIRO DE 2014 > Guiné 63/74 - P12577: Fragmentos de Memórias (Veríssimo Ferreira) (9): Novembro de 1966 - Qual guerra?
2 comentários:
Ora bem, amigo Veríssimo
Cá estão mais umas memórias e reflexões sobre as mesmas.
Comecemos pelo fim, pelas músicas.
É curioso verificar como as coisas evoluíram de forma relativamente rápida e quase sem se dar por isso!
Referes Fevereiro de 67.
Pois em 4/5 anos muito se modificou o 'panorama musical'. Essa música então do Gianni Morandi deixou de ser 'tua propriedade' e era muito popular em toda a Guiné. De tal modo que nas rubricas de discos pedidos aparecia sempre e já com uma 'africanização' pois era corrente o locutor dizer: "e agora, para Mamadú Djaló, qui firma no Catió, vai cantar Gianni Morandi 'non son degno di bó'".
Como vês....
Depois, as 'verdianas',
Dizes que por essas alturas começaram a aparecer regularmente para 'animar' as noites...
Tais hábitos foram enraizados de tal modo que deixou de ser dependente das viagens dos barcos comerciais que passavam por Cabo Verde. E, recordo-me bem, em 71/72 haviam também umas mocitas metropolitanas que iam ganhar a sua vida 'animando' o "Gato Preto", "Chez Toi", etc.
Por esses anos a presença de civis do sexo feminino tinha também aumentado, de tal modo que para os que estavam em Bissau, como foi o meu caso, isso já não tinha nada de estranho, embora para o pessoal 'do mato', em trânsito, fosse marcante.
Gostei de ter ver na foto como "dono da bola". Treinador, seccionista, director, até jogador, um homem tem que se desdobrar, não é verdade? Mas o "dono da bola" é que de facto se impõe.
Referes também as diatribes do pessoal da PM e do 'amochar a bolinha' com os fuzileiros. Isso foi no teu tempo! Depois, também!
Ao falares de teres tirado as cartas de condução fizeste-me lembrar de como tirei a minha. Vou contá-la depois.
Agora, quanto à atitude tomada sobre as rádios que peroravam contra o regime de então, acho que há por aí uma inversão de valores. Quanto a mim, não era preciso nenhuma coragem para não as ouvir, a inversa sim, pois o regime reprimia quem o enfrentasse. Hoje o regime actual também não gosta, mas a forma de actuar é outra.
Para terminar, e já nem sei a propósito de quê, lembro-me que Roma não tolerava que uns fulanos que pertenciam ao 'seu território' na Ibéria, uns tais lusitanos, se lhes opusessem. Há até umas indicações de que o seu chefe Viriato apenas queria que o reconhecessem como 'amigo de Roma', com o estatuto próprio que isso, tal reconhecimento, conferia ao povo lusitano, mas Roma 'não podia ser derrotada militarmente' de tal modo que conseguiu que um punhado de lusitanos se vendesse e liquidassem o seu chefe...
Roma é uma entidade colectiva, no fundo um Estado composto por 'romanos' e é natural que muitos 'romanos', instintivamente, não gostassem do Viriato.
Abraço
Hélder S.
Caro Veríssimo,
Já leste as pertinentes observações do Helder, e como te arrogas de frontal e sério, vais ter que me explicar por que raio foste acabar a comissão a Bissau, com direito a visita familiar, jogatanas à Sporting, gandas patuscadas, etc.
No que respeita a ouvires ou deixares de ouvir as citadas rádios "libertadoras" ou "libertinas", digo-te que também não lhes passava cavaco, dada a forma assanhada como criticavam o regime lusitano. Que não era grande coisa, já eu sabia, mas não propunham melhor... e eu contentava-me com as guerras em moda dos trotkistas Barreto e Cardia no C.F.
Já agora, outro enigma fotográfico resulta de apresentares um jogador de óculos. Então nas vossas futeboladas não havia o risco de a bola andar no ar?
E por falares em romanos, lembras-te de quando em Roma a malta se distraía nos circos onde os escravos eram deitados às feras? Nessa linha, as verdeanas eram escravas? E as meninas do Chez-Toi que me excitaram tanto quando as vi de "hot pants"?
Sempre havia a diferença de sobreviverem, bem entendido. Confessa aí malandro, que saudades sentes da guerra.
Um abraço
JD
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