1. Mensagem do nosso camarada Abel Santos (ex-Soldado Atirador da CART 1742 - "Os Panteras" - Nova Lamego e Buruntuma, 1967/69), com data de 16 de Janeiro de 2014:
Meus caros camaradas
O que vos conto é verídico, pois fui o protagonista.
Em pleno dia, na baixa da cidade do Porto, nos tempos idos do mês de Junho de 1969, encontrando-me em gozo de férias, ainda sobre a responsabilidade do exército português, um dia fui ao cinema Batalha, sito na Praça com o mesmo nome, onde passei um bom momento de diversão, que me ajudou a esquecer um pouco as recordações ainda recentes que assolavam o meu espírito.
Finda a sessão, descia eu a rua então chamada de Santo António, hoje de novo 31 de Janeiro, e muito bem, em homenagem aos heróis revoltosos de 1891 que protagonizaram a primeira tentativa de implantação da República, pois o povo do Porto esteve sempre e continua a estar contra os tiranos, passava eu em frente à Igreja dos Congregados, mesmo defronte à Estação dos Caminhos de Ferro de S. Bento, quando de repente, sem que tal no momento o justificasse, me jogo para o chão em posição de defesa como se estivesse no teatro de guerra. Isto foi reacção a um estrondo ensurdecedor, vindo do lado da estação ferroviária, que mais me pareceu uma morteirada ou um obus em pleno bombardeamento.
Passados uns segundos que pareceram eternos, reagi e fiquei estupefacto quando me vejo rodeado por pessoas que não conhecia, preocupadas com o que me tinha acontecido. Eu próprio não soube responder, e gostaria que alguém me explicasse o porquê desta minha reacção. Seria ainda o stress ou trauma da guerra?
Fachada da Igreja dos Congregados, à esquerda e Rua 31 de Janeiro em frente. À direita, na penumbra, parte da fachada lateral norte da Estação de S. Bento.
Foto: Blogue Álbum de Viagens, com a devida vénia.
O certo, é que depois desse episódio não mais me aconteceu nada de parecido, fiz uma vida normal até agora, mas esquecer esta situação é que nunca consegui.
Este episódio que se passou comigo faz-me pensar em camaradas que estarão sofrendo com tal doença, mas sem apoio de quem tem responsabilidades no sector da saúde, esquecendo-se que foram os combatentes que morrendo, sangrando e ficando mutilados, os catapultaram para o estrelato, e que agora olham com indiferença para esses bravos heróis, apenas preferindo falar das relações com África, pobres coitados.
Por agora é tudo, um bom 2014 para todos.
Abel Santos
P.S. - Quero deixar vincado que nada me move contra África.
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Nota do editor
Último poste da série de 16 DE JANEIRO DE 2014 > Guiné 63/74 - P12590: Blogoterapia (246): A Op Lança Afiada ou a Impotência da Escrita (Torcato Mendonça, ex-al mil art, CART 2339, Mansambo, 1968/69)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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2 comentários:
Caro Abel Santos:
A tua história fez-me lembrar o que se passou comigo quando estive cá de férias da primeira vez, que foi ir ao cinema com um colega meu, que era o dono e condutor do carro. Falo de 1965 (ano).
Par ir-mos ver o espetáculo tivemos que ir por uma estrada que durante uns quilómetros atravessava um mato.
Ia todo a tremer e sem o sangue a correr a contrastar com a descontração (natural e lógica)do meu companheiro de viagem.
Ele nem se apercebeu, nem eu lhe disse nada.
Antes uns dias, afinal, tinha andado no mato da Guiné aos tiros.
Felizmente que tudo se recompôs com o tempo.
Um abraço
Rui Silva
Caro camarada Abel Santos
O teu relato é semelhante a muitos outros que se ouviam contar.
Na realidade, os 'reflexos condicionados' que ia-mos instintivamente adquirindo, faziam-nos ter essas atitudes defensivas e de alerta. Coisas que muitos dos que cá estavam connosco nessas ocasiões não percebiam e até pareciam às vezes que nós estávamos a exagerar....
Lembro-me de que quando vim de férias, em Julho/Agosto de 71, em plena época das festas das aldeias, também me sucedeu ficar perturbado aquando do estralejar dos foguetes mas consegui refrear os impulsos, embora tivesse que 'sair de fininho', pois não estava com muita disposição para festas.
Também me sentia desenraizado, em relação ao ambiente, de tal modo que me remetia ao silêncio e não me sentia à vontade na roda viva em que todos os outros pareciam viver.
Quanto a essas situações ainda hoje poderem afectar alguns dos nossos 'companheiros de aventura africana', calculo que sim, embora não conheça os números e só agora, mais recentemente, ser mais notório e público o acompanhamento de casos de stress de guerra. Relembro que já foi referido o trabalho do Dr. Afonso de Albuquerque, há muitos anos, nesse âmbito, mas a falta de apoios não deram muita visibilidade a tão meritório trabalho.
Abraço
Hélder S.
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