Prefácio, por José António Paradela, Arquiteto
[por cortesia do prefaciador e do autor da obra, meus amigos de Ílhavo]
(...)
Tive oportunidade de apresentar o segundo livro com um texto até hoje inédito e que me parece fazer todo o sentido deixá-lo aqui, porque este livro é apenas a cúpula do edifício que o autor agora deu por acabado. Não vai pois a História ficar roubada da sua versão relatada na primeira pessoa. Daí a importância destes livros.
“Caro Valdemar:
Passados quase 50 anos, talvez, como muitos de nós, eu tivesse matéria para contar algumas histórias, mas falta-me o engenho e sobretudo a tua aguda memória, capaz de gravar imagens a fogo no leito do tempo.
Leio novamente as tuas histórias e gosto sempre mais. Isto só me acontece com certos livros, mas nem sempre pelos mesmos motivos. Estou a lê-las e a recordar-me de Alain Gerbault ( À la Porsuite du Soleil ), e de Hemingway (O Velho e o Mar), mas sobretudo de Melville de(Moby Dick).
O barco de que falas, o teu Coimbra, já não é de madeira, nem os cabos são de cânhamo, e a baleia tem agora a dimensão dos labirínticos campos de gelo flutuante. Mas o alento que te atravessa a alma é da mesma natureza, agora consubstanciado na caça ao cardume viscoso e fugaz sob o gelo.
Estas circunstâncias são para ti um apelo, um desafio à aventura, à vitória da descoberta, granjeada num segundo fôlego, ou mesmo num terceiro, quando os outros já ficavam abaixo da linha do horizonte, confundidos com a névoa.
Um das fotos que ilustra o livro: o navio "Coimbra", arrastão da Empresa de Pesca de S. Jacinto. Foi o último navio que o Valdemar Aveiro comandou, antes de se reformar da vida do mar. Continua, contudo ligado a esta empresa armadora, agora como administrador. Nasceu em Ílhavo, e vai fazer 80 anos no próximo mês de dezembro. (Reproduzido do livro, com a devida vénia...).
Descobriste e ensaiaste os mapas do comportamento da manta gelada, para evitares o seu abraço fatal. Mobilizaste os marinheiros – os rapazes, como lhe chamas, para o festim opulento corporizado na sacada de peixe de braço dado com o navio, esse saco-prenúncio do pão para os que em terra esperavam.
Não foste, e ainda bem, o capitão Ahab de Melville, ou o Santiago do Hemingway, mas a associação é inevitável. Trata-se de vontade em estado puro, de maratonas diariamente repetidas, no afã de levares à terra a mensagem da vitória: Ganhámos! Como há 2500 anos na Grécia. Os homens mudam pouco!
Estamos perante um livro de prodigioso apelo à memória.
À memória do tempo vivido por entre aventuras e histórias, que por vezes assume um tom narrativo confessional, para reconstituir um passado feito de retratos minuciosos de seres que existiram (muitos existem ainda felizmente) e que marcaram o teu trajeto, quase sempre sobre as águas, que do planeta são ainda a parte incógnita.
Não falo dos peixes e da sua geografia, mas dos homens que as habitaram, estes de quem tu falas e que agora convocas a sair do esquecimento. São histórias assumidas conscientemente como um ajuste de contas contigo mesmo e com aqueles que contigo andaram ou te cruzaram a rota.
O que afirmas, na singularidade e sinceridade da tua escrita, é o tempo em que viveste outro tempo, marcado pelos amigos, ou mesmo por aqueles que contigo se confrontaram. E também a falta que isso agora te faz.
Outra das fotos que ilustra o livro: (Reproduzida aqui com a devida vénia...).
Paciência, meu amigo, isso é a vida, que faz de cada um de nós uma narrativa única, marcada pela força dos companheiros de aventura e que dentro de nós se arvoram ainda como cínicos que ficaram para nos invectivar e evocar esse tempo de esperanças, amores e desilusões.
Cap Valdemar Aveiro |
Um tempo de outrora, mas também de hoje, porque está dentro de nós.
Este livro é o livro que faltava…
Falo do assunto que coloquei como frontispício deste texto: O esquecimento. A História com agá grande tem sempre os seus sacerdotes, que vasculham bibliotecas e alinham factos inventando elos de ligação quando necessário. É útil mas insuficiente.
Walter Benjamim, filósofo maldito agora recuperado, desconfiado da historiografia oficial, incitava a “escovar a história a contra pelo”. Para ele o perigo estava no esquecimento, no silenciamento da memória. Dizia ele: “Toda a imagem do passado… corre o risco de desaparecer com cada instante presente que nela não se reconheceu”.
O teu livro, os teus livros melhor dizendo, porque para mim podiam ser juntos num único, escovam a história a contra pelo. Haverá quem faça a “história oficial” da Faina Maior, mas é necessário buscarmos o que nela foi esquecido ou abafado, isto é, o que não existe nos arquivos. Os vestígios que o tempo sufocou, as personagens e os episódios que foram ou não chegaram a ser mesmo, colocados nas notas de rodapé dos historiadores oficiais.
O teu livro tem também esse mérito: não deixa silenciar, e regista de modo vivíssimo e rigoroso as ligações orgânicas dos homens – com nome e tudo como tu fazes questão de escrever – aos seus instrumentos e às suas palavras, essas que te obrigaram a fazer um glossário. (Podes acrescentar nesse glossário: “camisolinha interior = copo de bagaço”).
A compreensão histórica de determinados contextos sociais passa obrigatoriamente por aqui:
Pelas ligações estabelecidas entre os homens e os seus instrumentos (em que a linguagem é seguramente o mais importante), e até pelos copos, naturalmente… Lembro-me de Pessoa, e sobretudo de Mussorsky, ardido no álcool, a legar-nos música imortal.
Hoje, que a Internet comporta e transporta milhões de histórias, podemos ser levados a pensar que o problema já não existe, esquecendo que alguém terá de as contar. Só que não basta contá-las. E é neste ato de contar, que acompanha os humanos desde os primórdios, neste incontornável filtro da inteligência e do “coração”, que reside a pedra filosofal capaz de transformar uma narrativa banal numa obra de arte viva e perene como tu fizeste para nosso encanto.
Não relataste apenas histórias de uma vida, não personalizaste o navio como já vi, fazendo-o arfar como um animal no esforço da corrida. Ou, como em Hemingway, plasmando no peixe a ansiedade do homem. Contextualizaste um mundo de relações humanas entre o povo flutuante e errático da pesca do Atlântico Norte, cuja aventura cairia minorada se a não contasses. E o modo como o fizeste entra pelos domínios da grande arte de narrar.
Para terminar, porque o importante mesmo é ler os teus livros, dir-te-ei que – ainda que esta seja apenas a tua versão dos factos – ela não deixa de ser menos verdadeira. E é uma parte fundamental da História, doa a quem doer...
Walter Benjamim, filósofo maldito agora recuperado, desconfiado da historiografia oficial, incitava a “escovar a história a contra pelo”. Para ele o perigo estava no esquecimento, no silenciamento da memória. Dizia ele: “Toda a imagem do passado… corre o risco de desaparecer com cada instante presente que nela não se reconheceu”.
O teu livro, os teus livros melhor dizendo, porque para mim podiam ser juntos num único, escovam a história a contra pelo. Haverá quem faça a “história oficial” da Faina Maior, mas é necessário buscarmos o que nela foi esquecido ou abafado, isto é, o que não existe nos arquivos. Os vestígios que o tempo sufocou, as personagens e os episódios que foram ou não chegaram a ser mesmo, colocados nas notas de rodapé dos historiadores oficiais.
O teu livro tem também esse mérito: não deixa silenciar, e regista de modo vivíssimo e rigoroso as ligações orgânicas dos homens – com nome e tudo como tu fazes questão de escrever – aos seus instrumentos e às suas palavras, essas que te obrigaram a fazer um glossário. (Podes acrescentar nesse glossário: “camisolinha interior = copo de bagaço”).
A compreensão histórica de determinados contextos sociais passa obrigatoriamente por aqui:
Pelas ligações estabelecidas entre os homens e os seus instrumentos (em que a linguagem é seguramente o mais importante), e até pelos copos, naturalmente… Lembro-me de Pessoa, e sobretudo de Mussorsky, ardido no álcool, a legar-nos música imortal.
Hoje, que a Internet comporta e transporta milhões de histórias, podemos ser levados a pensar que o problema já não existe, esquecendo que alguém terá de as contar. Só que não basta contá-las. E é neste ato de contar, que acompanha os humanos desde os primórdios, neste incontornável filtro da inteligência e do “coração”, que reside a pedra filosofal capaz de transformar uma narrativa banal numa obra de arte viva e perene como tu fizeste para nosso encanto.
Não relataste apenas histórias de uma vida, não personalizaste o navio como já vi, fazendo-o arfar como um animal no esforço da corrida. Ou, como em Hemingway, plasmando no peixe a ansiedade do homem. Contextualizaste um mundo de relações humanas entre o povo flutuante e errático da pesca do Atlântico Norte, cuja aventura cairia minorada se a não contasses. E o modo como o fizeste entra pelos domínios da grande arte de narrar.
Para terminar, porque o importante mesmo é ler os teus livros, dir-te-ei que – ainda que esta seja apenas a tua versão dos factos – ela não deixa de ser menos verdadeira. E é uma parte fundamental da História, doa a quem doer...
Como dizia um combatente da guerra civil espanhola ao relatar a sua experiência: “… no sé yo cuanto le puede importar a usted ésto que le estou diciendo, no sé si esto le puede importar a alguièn, porque estas cosas no las cuentan los libros, esto no sale nunca en la historia, pero sabe lo que lo digo? Esta es mi verdad”.
Esta é a tua verdade, e através dela resgataste do esquecimento, todos os que convocaste, e através deles todos os outros.
Muitos recuarão ao centro de onde partia o tempo, onde os minutos eram iguais à eternidade, ali, onde os teus livros, de páginas já amareladas continuarão a ensinar aos homens o que foi aquela vida!“
Julho de 2012
José António Paradela, arquiteto
[, natural de Ílhavo; foto à direita; Costa Nova,
agosto de 2007; foto de L.G.]
Dedicatória ao autor, antigo comandante do navio Coimbra aos pescadores e marinheiros que com ele trabalharam ao longo de uma vida
Nota do editor
(*) Vd. último poste da série > 16 de fevereiro de 2014 > Guiné 63/74 - P12725: Notas de leitura (563): "Murmúrios do vento", da autoria do cap Valdemar Aveiro, o 3º livro de um trilogia sobre a epopeia da pesca do bacalhau, que chegou a ser alternativa à guerra colonial (Prefácio de José António Paradela, arq) (Parte I)
(*) Vd. último poste da série > 16 de fevereiro de 2014 > Guiné 63/74 - P12725: Notas de leitura (563): "Murmúrios do vento", da autoria do cap Valdemar Aveiro, o 3º livro de um trilogia sobre a epopeia da pesca do bacalhau, que chegou a ser alternativa à guerra colonial (Prefácio de José António Paradela, arq) (Parte I)
2 comentários:
Zé António [mail enviado a 28/2/2014()
Aqui tens os links... Mas ainda quero publicar um texto meu, com as minhas notas de leitura... Manda ao Valdemar com um abração, o meu apreço e o meu obrigado pelo livro e pela dedicatória... Boa noite, Luis.
http://blogueforanadaevaotres.blogspot.pt/search/label/Valdemar%20Aveiro
Vê também aqui (uma referência, mais antiga, de 2007, aos dois livros anteriores)
http://blogueforanadaevaotres.blogspot.pt/2007/11/guin-6374-p2300-memrias-da-outra-tropa.html
Temos nove referências à pesca do bacalhau, no nosso blogue, que vai já a caminho dos 10 anos, 12500 postes, 650 membros registados, 5,5 milhões de visitantes, nos últimos cinco anos, 45 mil comentários (desde 2009)...
http://blogueforanadaevaotres.blogspot.pt/search/label/Pesca%20do%20bacalhau
... E estás à vontade, tu ou o Valdemar, para escrever aqui sobre estes) tópico(s)...
O livro (e o teu prefácio) também foi divulgado na nossa página do Facebook > Tabanca Grande Luís Graça
https://www.facebook.com/people/Tabanca-Grande-Lu%C3%ADs-Gra%C3%A7a/100001808348667
Anónimo Anónimo disse...
José Paradela
28 fev 2014 23:54
Luís:
Já reenviei para o Valdemar. Gostei muito da tua comunicação. Roubei a foto que me tinhas tirado. Obrigado e um grande abraço. ZP
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