sábado, 22 de fevereiro de 2014

Guiné 63/74 - P12756: Blogoterapia (249): Reflexões sobre a vida e a morte (Juvenal Amado, Galomaro, 1971/74)


Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Galomaro, hoje... Foto da Missão Dulombi (com a devida vénia...)~


Guiné > Zona leste > Setor L5 > Galomaro  > c. 1972/74 > O aquartelamento, sede do comando e CCS/BCAÇ 3872. Foto de Juvenal Amado



1. Texto e e fotos enviados  pelo nosso camarada Juvenal Amado (ex-1.º cabo condutor auto, CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1971/74), com data de 19 do corrente:


Na vida nada há tão certo como a morte e ela não é sempre de valor igual. Se não,  vejamos os comentários que nós próprios fazemos;

“Era ainda tão jovem, vai fazer tanta falta! Ou, “Já tinha muita idade e até foi uma esmolinha”!

A nossa geração foi confrontada tantas vezes com ela. Encará-la e esquecê-la seguidamente, faz parte de alguma irresponsabilidade e capacidade de dádiva dos nossos verdes anos que dizem respeito ao primeiro terço da nossa idade adulta.

Foi assim que ela enfrentou a morte durante 13 anos. Enfrentou-a com alguma leveza, inconsciência e espirito de aventura, a que se predispunha e o facto de aquela guerra não pôr directamente em risco as nossas cidades e as nossas famílias, resguardadas das bombas e restante violência, que uma guerra acarreta no chão sagrado dos nossos avós.

Por vezes de forma sorrateira, outras vezes com a violência, com o horror, a surpresa de sermos confrontados com a morte e sofrimento de quem momentos antes falava, ria, bebia, ou partilhava um cigarro.

Os gritos, os tiros e as explosões, levavam tempo a passar para o subterrâneo do nosso consciente, o que tanto temíamos tinha acontecido, o nosso mundo ficava virado do avesso.

Pensávamos que só acontecia aos outros.

Chorávamos ali no chão vermelho e sol escaldante e perante a incredulidade de quem nos pudesse observar procurávamos e recolhíamos os bocados, desde os membros aos restos de farda e até ao mais pequeno pedacinho de atacador. Nada ficava para trás. Talvez quiséssemos apagar o que tinha acontecido e não deixar nenhuma prova da tragédia da nossa passagem ali naquele dia de má memória.

É da natureza Humana rejeitar o sofrimento e ao afastarmo-nos daquele momento o mais rapidamente possível, ansiavámos assim que a dor se tornasse cada vez mais suave e menos presente. Depois ajudávamos a recolher os seus pertences e revíamos tudo o que se poderia enviar às famílias.

Víamos o homem para além do que connosco lidava no dia a dia. As cartas da namorada, as fotos, a garrafa de whisky cuidadosamente guardada para festejar o regresso, o robe chinês, o serviço de chá, e os corpiés que aos poucos adquiriram para fazer parte do enxoval dos dias felizes.

Comprados na loja do libanês,  eles seriam o orgulho na cama de casal após o casamento. Essas coisas eram compradas à custa de não se beberem umas cervejas ou mesmo uma viagem de férias a casa, pois o magro pré não dava para muito mais.

Mas esses objectos valiam agora mais do que quem os tinha comprado porque,  parafraseando o poeta, eles prestavam ainda para alguma coisa, ao contrário os donos jaziam inertes para sempre sem utilidade.
Passavam a ter um valor inestimável como recordação para quem eram destinados, até que outro amor surgisse, pois a dor castradora da vida não pode nem deve ser para sempre.

As caras e as situações, voltaram quando a idade mais nos aconselhava a uma vida sem preocupações e passeios à beira mar.

Com o envelhecimento essa dor visita-nos mais amiúde. A morte aparece de várias formas, porque ela tem muitas caras e,  ao contrário da nossa juventude, aos poucos todos ganhamos consciência de que somos finitos esperando no entanto que esse dia ainda seja longínquo.

Acabamos por nos despedirmos dos nossos avós, pais, tios e por fim dos amigos que nos são queridos. Pela ordem natural esperamos partir um dia, deixando para trás os nossos descendentes para nos honrar a memória, como nós honramos a memória dos nossos ascendentes.

Hoje as nossas memórias estão cheias de sombras que todos os dias crescem. Ficam os momentos vividos, as gargalhadas, as celebrações da vida a felicidade dos momentos únicos.

Cada um que parte, leva um bocado de nós e do nosso Universo, porque a morte é o tempero que nos faz dar valor à vida.

Juvenal Amado



Guiné > Região de Tombali > Gandembel > CCAÇ 2317 (1968/69) > O "suplício de Sísifo": os homens-toupeira construindo (e defendendo) a sua "casa" no "corredor da morte", em tempo recorde... [Construindio aquartelamentos, 'bunkers', abrigos, espaldões, abrindo valas, picadas, etc., também fomos "coveiros de nós próprios"... LG]


Foto: © Idálio Reis (2007) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados.

3 comentários:

Luís Graça disse...

Juvenal:

Belíssimo e oportuno texto sobre a vida e a morte que formam um "continuum"... Temos estado, no nosso blogue, muito expostos à morte (ou às más notícias da morte...) nestes últimos dias, pelo que vem muito a propósito o teu texto blogoterapêutico...

Já agora, fica aqui um sugestão de leitura adicional: um texto meu sobre reprsentações sociais da vida, a morte, a saúde, a doença, nos nossos provérbios populares:

http://www.ensp.unl.pt/lgraca/textos73.html

Aqui ficam alguns provérbios, selecionados por mim, sobre o tópico morte/vida:


"A morte não escolhe idades"

"A tris matou quem quis"

"A vida é um sono de que a morte nos desperta"

"A vida tem uma porta só, a morte tem cem"

"Ano de muito peixe ano de mortes"

"Antes a morte que tal sorte"

"Esta vida são dois dias e o Carnaval são três"

"De má vida se engendra a morte"

"Esta vida não chega a netos nem a filhos com barba"

"Mais vale andar neste mundo em muletas do que no outro em carretas"

"Mais vale morte que má sorte"

"Mal desconhecido com seu dono morre"

"Mal viver, mal acabar"

"Morreu, acabou-se"

"Na hora da morte não vale a pena tomar remédio"

"Nada mais certo do que a morte; nada mais incerto do que a hora da morte"

"Não há cousa tão junta a outra como a morte à vida" (Séc. XVI)

"Não há morte sem achaque"

"Nem rei nem papa à morte escapa"

"O que no leite se mama na mortalha se derrama"

"O sono é a imagem da morte"

"O temor da morte é a sentinela da vida"

"Onde entra a morte entra a má sorte"

"Para a morte o remédio é abrir-lhe a boca"

"Para tudo há remédio senão para a morte" (Séc. XVI)

"Quem de novo não morre de velho não escapa"

"Quem mal vive mal acaba"

"Quem nasceu para a forca não morre afogado"

"Quem se mata morto fica e, se não morre, entesica"

"Só uma porta a vida tem, enquanto a morte tem cem"

"Tal vida tal morte"

"Temer a morte é morrer duas vezes"

"Tosse seca – trombeta da morte"

Torcato Mendonca disse...

##
"Temer a morte é morrer duas vezes"
copy/paste ##

Abraço Juvenal
Já reparaste que tememos muito mais a doença, este desvario aonde caimos como Povo e etecetera...do que a morte????

Veio de lá? Creio que sim. Até a constipação que me acompanha há 2/3 dias é uma revolta...Mas tens razão e eu ainda vou começar a pensar em algo... depois desta vida terrena se finar...sem padres ou mesinhas claro...
Ab,T.

Hélder Valério disse...

Caro amigo Juvenal

Uma descrição notável das tuas reflexões sobre a 'vida e a morte'.
Certamente que as notícias que esta semana, em catadupa, e só daquelas que damos conta no nosso Blogue, assolaram o nosso conhecimento, te terão influenciado, ou melhor, motivado, para fazeres o teu trabalho.

Tudo o que escreveste faz sentido.
É, insofismavelmente, verdade.
Mas não podemos inverter o curso desses acontecimentos. É certo que aqui e ali podemos encontrar casos ou situações em que os acontecimentos podiam ter sido de outra maneira, podiam ter um curso diverso, podiam sim senhor, mas isso já não era a mesma narrativa.
Os "ses" são sempre especulativos e de facto não alteram por si só a realidade, apenas servem para entreter...

Hoje, "as nossas memórias estão cheias de sombras que todos os dias crescem", escreves tu.
É verdade, e este Blogue, o seu conteúdo, é bem testemunho disso.

Abraço
Hélder S.