1. Em mensagem do dia 11 de Maio de 2014, o nosso camarada Francisco Baptista, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), trouxe até nós uma memória de Mansabá.
MEMÓRIAS DE MANSABÁ
32 - CONVERSAS FILOSÓFICAS
O alferes médico de Mansabá era um camarada pouco expansivo, sempre
com ar calmo e meditativo que lia muito sobretudo livros de yoga, mais
velho alguns anos do que a generalidade dos militares da Cart 2732,
era educado e prestável mas parecia-me por vezes que olhava para os
operacionais como os rapazes que andavam a brincar às guerras.
Guerra que ele detestava e temia também.
Como ele conheci alguns
camaradas de vários serviços que não tendo que sair para fora do
quartel viviam um pouco aterrorizados pois imaginavam o inimigo logo
ali à volta do arame farpado. Os operacionais que pela sua actividade
tinham que conhecer toda a área exterior do quartel alguns quilómetros
em redor, tinham outros medos mas não esse medo permanente do
desconhecido pois eles conheciam esses terrenos como os terrenos das
suas aldeias ou como as ruas das suas cidades.o que lhes dava outra
segurança psicológica.
A propósito das suas leituras e prática de yoga nunca esqueci uma
conversa que um dia tive com ele. Um dia falando eu da minha educação
religiosa tradicional e habitual na maior parte das famílias de
Portugal sobretudo a Norte, confessei que já tinha abandonado a
religião pois por alguns motivos, que terei desenvolvido, tinha
deixado de acreditar.
Ele disse que ao contrário de mim tinha sido criado numa família que
não praticava qualquer religião e não lhe tinham sido inculcados
quaisquer princípios religiosos. Com o passar dos anos, disse ele: comecei a sentir um vazio espiritual que me obrigou a dedicar-me ao
yoga para o preencher. A ti como muitos como tu, - dizia ele, - a
educação religiosa, deu-vos esse alimento espiritual e mesmo quando
negais os seus dogmas preenche o espírito nessa discussão e nunca
sentis esse vazio na alma que eu sentia.
Este diálogo foi para mim dos mais filosóficos ou metafísicos, como
lhes queirais chamar que eu tive na Guiné, eu que tinha desistido
praticamente da leitura e da reflexão intelectual quando embarquei
para lá e andava um pouco narcotizado pelo cheiro da terra africana, e
pelo seu calor tropical e que procurava gozar tudo isso e os prazeres mais imediatos
dos sentidos como qualquer animal instintivo.
Foi das conversas que
mais abanou comigo e me despertou do marasmo em que vivia, voltei a ficar
desperto e inquieto como quando lia na solidão da "casa velha" de
Brunhoso, os livros de Dostoiévsky, esse grande romancista e
filósofo. Lembrei-me de Rodion Românovitch Raskólnikov, o protagonista
de "Crime e Castigo" quando ele, sentindo-se só no mundo e só no
cosmos, pois tinha deixado de ser crente, com a alma vazia, acaba por
concluir que "se Deus não existe tudo é permitido" e que com essa
justificação acaba por matar a velha usurária mas que vai continuar só
e vazio pois o niilismo não lhe vai preencher a existência.
O diálogo sobre esta premissa irá continuar nas discussões
intermináveis, existenciais e filosóficos dos três "Irmãos Karamazov". Esse diálogo continua nas sociedades porque as bases filosóficas e
metafisicas que sustentam a moral vigente são baseadas em dogmas e
ensinamentos dos profetas das várias religiões, cristãs, islâmicas,
judaicas, hindus, budistas, animistas ou outras. Fora das religiões os
filósofos ainda não conseguiram criar um sistema filosófico universal
e acessível às multidões que possa substitui-las nas suas certezas
e ilusões e garantir paz e riqueza espiritual aos homens. Os filhos e
netos dos ateus e descrentes do nosso tempo, hoje andam, muitos, à deriva
à procura dalgum alimento para lhes saciar a fome que lhes vai na
alma e lhes reponha a alegria de viver.
Alguns tornam-se praticantes de yoga e doutras filosofias orientais,
outros tornam-se trabalhadores ou estudiosos compulsivos, outros
tornam-se consumidores de todos os produtos melhores ou piores que a
sociedade capitalista oferece.
Um assunto tão vasto e polémico carece da opinião de especialistas de
várias áreas do conhecimento para um debate sério, falo nele contudo
porque foi uma conversa que tive na Guiné e que periodicamente me vem
à memória.
Gravei na memória também conversas à mesa nas horas das refeições
na messe de oficiais em Mansabá, em que o principal protagonista era
o capitão Abreu, comandante do COP 6. Além dele estávamos 4 alferes da
CART 2732, o respectivo capitão, o alferes de transmissões, o
alferes médico e durante um mês (ou dois?) a sua esposa que lhe foi fazer companhia.
Havia uma Companhia de Comandos no quartel, com uma cultura
militar mais democrática e outros meios financeiros também, pois os
seus oficiais comiam com os restantes militares da Companhia,
sargentos e soldados.
Pela impressão que causava em todos nós, não quero deixar de falar da
mulher do médico, por sinal também médica, uma senhora elegante e bela, que sendo a única europeia e a única mulher no meio de tantos homens, naturalmente era alvo da atenção (discreta e educada) de todos.
A senhora porém não se sentia bem no quartel, notava-se mesmo que vivia
um pouco aterrorizada naquele ambiente de guerra. Para acicatar ainda
mais esses temores, havia dois alferes que por vezes, talvez por um
certo marialvismo consciente ou inconsciente se punham a falar dos
perigos da actividade operacional. Um dia tivemos uma flagelação de
armas pesadas ao quartel, em que felizmente não houve feridos, embora
tivessem caído algumas granadas dentro do quartel. Passados dois dias
o quartel e a messe ficaram com menos graça e beleza porque a esposa
do médico regressou a Portugal.
O capitão Abreu tinha sido adjunto do tenente-coronel Correia de
Campos, já muito falado neste blogue e considerado por muitos como um
grande estratega e dos combatentes mais corajosos que passaram pela
Guiné. Da forma mais direta, no estado mais puro, eu ouvi e os outros
presentes na messe de oficiais de Mansabá, com dois anos de
antecedência, pela voz do capitão Abreu. as razões subjectivas e
objectivas que conduziram ao desencadear da revoltas dos capitães em
25 de Abril de 1974.
Para mim foi música nova que não esperava ouvir da boca dum destacado
capitão da academia militar. Falava dessas razões pessoais, familiares
e políticas com a mesma coragem com que lutou ao lado do comandante
Correia de Campos, que tanto admirava. Era um homem honesto, um militar
competente mas já cansado da guerra, desiludido e descrente pelo rumo
da politica em relação aos territórios africanos.
Arruda dos Vinhos, 18JAN2009 - Convívio de pessoal da CART 2732.
Da esquerda para a direita: Cor Carlos Marques Abreu, que comandou o COP 6 com o posto de Capitão; ex-Alf Mil TRMS Brito Ribeiro do COP 6; ex-Alf Mil Nunes Bento, CMDT do 3.º Pelotão da CART 2732; ex-Fur Mil Carlos Vinhal do 3.º Pelotão da CART 2732 e ex-Soldado de TRMS Malhão Gonçalves da CART 2732, um dos organizadores do convívio, no uso da palavra.
Foto: Blogue A Madeirense CART 2732
Legenda: Carlos Vinhal
Desses dias de sol africano, calor tropical, trovoadas, chuvas
diluvianas, porque os ecos dos rebentamentos das granadas ainda soam
por vezes nos nossos ouvidos ou na nossa memória, e a discórdia
sobre o fim da descolonização ainda divide muitos camaradas, eu
propunha que esquecêssemos esse aspecto da política nacional e
internacional, e que voltássemos aos tempos da Guiné, quando éramos
todos amigos e estávamos dispostos a dar a vida uns pelos outros.
Sem querer entrar em polémicas desnecessárias já que todos temos uma
idade respeitável, e ninguém está disposto a abdicar das suas certezas,
para atenuar divisões e azedumes exacerbados, vamos pensar que somos
todos bons portugueses apesar de vestirmos camisolas de cores
diferentes.
Descobri recentemente um fado, "Velhas Sombras", muito bem cantado pela
Celeste Rodrigues, algo nostálgico e melancólico, bem musicado e com
um poema muito lindo. Recomendo-o a quem gostar da canção nacional que
nos identifica em todo o mundo.
Um grande abraço a todos os camaradas
Francisco Baptista
____________
Nota do editor
Último poste da série de 23 DE ABRIL DE 2014 > Guiné 63/74 - P13027: Memórias de Mansabá (31): Com o tempo interiorizámos três ou quatro coisas: (i) que tínhamos sempre medo; (ii) que de dentro do mato era muito difícil disparar um LGFog ou até um morteiro; e (iii) depois do primeiro tiro tínhamos a ideia que conseguíamos controlar as coisas (Ernesto Duarte, ex-fur mil, CCAÇ 1421/BCAÇ 1857, Mansabá, 1965/67)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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9 comentários:
Gostrei muito do teor filosófico do teu texto...
Em retribuião, aqui tens a letra do fado "Veklhas Sombras", interpretação de Celeste Rodrigues, música de autoria de Nóbrega e Sousa, e versos de António Sousa Freitas...
Um alfabravo. Luis
Por toda a vida as sombras passam
Num rumo igual a outro rumo
As sombras vão e não se abraçam
E as vidas são nuvens e fumo
Assim eu passo também
Meus dias, meus anos
Num sonho antigo que tem
Tristezas, enganos
E só dou por mim agora
Meu amor, a cantar aquele dia
Estranho dia estranha hora
Das velhas sombras tão sombrias
Amar-te é como o amor responde
Ao seu apelo ao seu cantar
E traz as sombras em que esconde
A tua sombra, o teu olha
Vd. Portal do Fado
http://www.portaldofado.net/component/option,com_jmovies/Itemid,336/task,detail/id,3665/
Já agora, como se chamava o alf médico a quem te referes ? Não penso que seja uma informação confidencial...Tens o contacto dele ? Não o queres convidar para integrar a nossa Tabanca Grande ?
É bom lembrar que precisamos de, no mínimo, 5 a 6 novos membros por mês, 60 a 70 por ano... Se não o blogue extingue-se...
É o risco que Portugal está correr... Quando fomos para a guerra, no início da década de 60, nasciam 200 mil portugueses... Hoje nascem 70 mil...
Caro amigo Francisco Baptista
Gostei muito do teu texto, numa partilha intimista e de séria reflexão. O que posso dizer-te é encorajar-te a que continues na busca da Verdade de ti , da tua Vida e do teu Ser. Creio ser esse o objectivo último da reflexão filosófica.
E tudo para que sejas feliz. É o que desejo para ti e para todos nós.
Um abraço de amizade
JLFernandes
Caro Francisco Baptista:
Este lado da guerra que tão bem aqui retratas não era tão raro como possa parecer a quem não andou por lá. Pelo contrário, a angústia decorrente daquele ambiente era propícia à reflexão sobre o papel dos humanos e dos estados, no mundo. Daí até à interrogação sobre as concepções teístas e ateístas vai um passo muito pequeno. Essas discussões levavam horas e ajudavam-nos a passar os dias mas não só. Quase sempre conduziam-nos a uma conclusão nada metafísica - afinal, que estávamos ali a fazer? ao serviço de uma ideia construída por quem? ao serviço de que interesse? com que legitimidade? mas o que é legítimo?
Um abração
Carvalho de Mampatá.
Amigo Luís Graça:
Não me recordo do nome do alferes médico, perguntei também ao amigo Carlos Vinhal, pois estivemos ambos na Cart. 2732 em Mansabá e ele também não se recorda.Como me parece também que os tempos dele na Guiné foram dificeis de suportar e como ele era bastante reservado, acho que não gostaria de partilhar essas memórias com uma camaradagem tão alargada como a da Tabanca Grande.
Grande abraço
Francisco Baptista
Caro camarada Francisco Baptista
Gostei.
São reflexões interessantes.
Mostram como uma mente 'desinquieta' pode procurar e encontrar respostas. Não digo "a resposta", mas sim pistas, caminhos, proposições.
Depois, é só continuar o caminho em busca do aperfeiçoamento interior.
Há quem aproveite o(s) momento(s) de uma peregrinação física para potenciar uma peregrinação interior. Fazer o "caminho de Santiago" ou mesmo o de Fátima, interiorizando pensamentos, reflexões, autocríticas, seja lá o que for, com o propósito de encontrar um novo "eu" será sempre uma experiência transcendental.
Claro que o(s) resultado(s) depende(m) sempre de nós, da seriedade que se puser na demanda, na vontade e/ou determinação que colocarmos na acção.
Interessante, também, as outras indicações que deixaste.
Abraço
Hélder S.
Francisco Baptista
16 mai 2014 11:31
(...) Gostaria de ir ao almoço da Tabanca dia 14 mas acontece que vêm os meus netos da Alemanha passar cá uma semana e isso complica tudo.
Um grande abraço
Francisco Baptista
Obrigado, Francisco. Vamos manter as coisas como estão. Pouca gente, afinal, quer dar a cara. Pelas minhas contas é 1 em 100...
Quanto ao encontro, não há nada mais importante do que os teus filhos e netos. Aproveita o máximo dos dias... Esperemos ter força para fazer, para o ano, o X Encontro Nacional da Tabanca Grande. E nessa altura talvez possas vir.
Um alfabravo. Luis
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