segunda-feira, 9 de junho de 2014

Guiné 63/74 - P13261: Notas de leitura (599): Relendo um dos escritores obrigatórios da década de 1960: Álvaro Guerra e a Guiné (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 11 de Dezembro de 2013:

Queridos amigos,
Álvaro Guerra revelou inicialmente uma atração pelo neorrealismo e logo a seguir mergulhou no nouveau roman, foi uma corrente literária que ele seguramente referenciou em Paris, onde estudou após o regresso da guerra da Guiné, foi dos primeiros, de lá veio ferido.
“O Disfarce” em si é um livro menor, não passará à história da literatura, mas há nele parágrafos rutilantes, uma linguagem arrancada das vísceras, a autobiografia não se esconde, parece dizer-nos. E Álvaro Guerra é um daqueles escritores que nos leva a pensar que chegou a hora, tal o numerário de boa prosa em volta da guerra da Guiné, de fazer-se uma obra antológica com algumas das páginas de que os nossos vindouros sentiram júbilo pelo dito e pelo feito.

Um abraço do
Mário


Relendo um dos escritores obrigatórios da década de 1960: Álvaro Guerra e a Guiné

Beja Santos

Tenho-me interrogado vezes sem conta quanto à premência em se fazer um levantamento dos mais belos trechos literários em torno da guerra da Guiné.
É evidente que há hoje um suporte correspondente à identificação dos escritores e das respetivas obras, é meio caminho andado, tenho a maior satisfação em ter e andar a contribuir para essa pesquisa que se tem revelado quase inesgotável e deveras surpreendente.
Há páginas extraordinárias, e procurarei, neste exercício avulso, mostrar a partir de um dos primeiros livros de Álvaro Guerra, nosso camarada da Guiné, destacar algumas dessas páginas que nos merecem orgulho genuíno, são páginas com que nos identificamos, que muitas vezes falam por nós, são um incomensurável legado que deixamos para os nossos vindouros.

O romance chama-se “O Disfarce”, a sua primeira edição saiu na Prelo, em 1969, a segunda nas Publicações Dom Quixote, a terceira nas Edições “O Jornal”. Insisto que os parágrafos que se seguem são por minha conta e risco, tivesse eu o mister de andar à cata do que melhor se escreveu e de “O Disfarce”, este era o meu Álvaro Guerra eleito:



Capítulo primeiro

De narizes no ar, farejavam o céu, o motor do avião muito perto, mesmo sobre as suas cabeças mas para além do nevoeiro cerrado, um grande inseto matreiro, invisível, irritantemente só nos ouvidos dos homens de narizes no ar, as armas na mão, empoleirados nos camiões estacionados no extremo da pista rodeada de pequenos grupos, para cada um sua metralhadora, as ligaduras brancas dos feridos quase brilhando entre os verdes e castanhos dos homens, da terra e das plantas, as ligaduras dos feridos deitados nas macas, sentados nos jipes, ou de pé, narizes no ar como os outros, ou ansiosos ou ciumentos, mas todos impacientes, e, enfim, uma sombra sobre a pista, por um momento, logo dissolvida naquele nevoeiro tão denso que molhava e, dentro dele, o besoiro de prata que zumbia cada vez mais fraco, mais longe, até definitivamente se extinguir.
– Vai-se embora – disseram.

Voltará, pensou aquele homem novo, olhando a mancha vermelha na ligadura que lhe envolvia o braço imobilizado. Vinte e duas horas antes, um pedaço de ferro louco e escaldante atravessara-o, a bala da sorte, um pequeno cilindro de metal com endereço incerto na cabeça pontiaguda, igual à bala do azar que levava na ponta a morte para o companheiro do lado – a mesma explosão, o mesmo projétil, a mesma carne, o mesmo sangue, talvez apenas uma vontade de tal modo mais forte, um amor de tal modo mais apaixonado, um instinto de tal modo mais lúcido que nessa tão discutível, cruel e aguda diferença a morte se decidira pelo mais fácil. Por ali, raramente se falava da morte mas quando tal acontecia a sua tradução era destino, dias contados, fatalidade, e o medo era, também, como se não existisse como se não fosse evidente no próprio corpo e na memória, demência, angústia e raiva (o 118 a andar oito quilómetros pelo seu pé, sem ajudas, com um buraco que começava na clavícula e acabava nas costas um pouco acima da cintura, a andar oito quilómetros, após o que e apenas ao avistar a coluna de socorro, desmaiara.


Capítulo terceiro

Estava sentado no meio daquela escuridão carregada de odores gordurosos, a “mulher grande” tinha-o deixado ali sozinho, no meio da cubata, e fora buscar a rapariga, algures na aldeia adormecida, no silêncio, no silêncio habitado de ameaças, no halo humano da noite cujo centro era ele ali sentado, atento mas abandonado ao que viesse, tateando a pistola com um gesto impreciso, sem fumar para poder sentir-se inlocalizável, escondido dos outros e de si próprio, imóvel, numa breve existência uterina, paradoxalmente tocada de angústias e temores. A “mulher grande” fora em busca de Safi, dobrara fleumaticamente a nota de cinquenta pesos e guardara-a sobre o pano que trazia enrolado à volta dos quadris e fizera saber que aquele era o dinheiro para Safi, após o que se deixara ficar, maliciosa e muito digna, à espera que ele entendesse que faltava alguma coisa mais – o seu dinheiro. Só depois abalara, não sem primeiro superar a paupérrima chama do candeeiro pelo que o cheiro a petróleo se tornou mais intenso e se misturou com os odores gordurosos e mornos da escuridão absoluta da cubata onde ele estava (…) A “mulher grande” entrou e, depois dela, Safi. Ficaram as duas a discutir animadamente na língua quente e sincopada dos Fulas, sem o olhar, sem mesmo reconhecerem a sua presença, defendidas pela ininteligibilidade do que diziam mas ele adivinhava como o auge da sua humildade, o fundo sem fundo da queda da natureza que lhe era própria, ele sentado, imóvel no escuro, e duas mulheres negras decidindo a sua sorte, no outro canto das trevas.

Finalmente, a “mulher grande” reacendeu o candeeiro e ele tornou a ver o interior da cubata, as cabaças, os panos coloridos, o arroz, as duas tábuas com versículos do Corão, a chaleira de esmalte, o bidão da tropa, as esteiras, o chão de terra, as paredes de adobe, a cama. Era aquele o escuro que o rodeava. Não, não era. Agora, encolhida no canto mais longe da luz, estava Safi, Safi falsamente inexpugnável, com seu olhar feroz de bicho acossado, longe, longe. Tão longe que ele suspeitou jamais pudesse lá chegar. E a sua suspeita bastou para que, num último alarde de orgulho, se levantasse e saísse.


Capítulo nono

Foi logo a seguir. Caiu em cima deles a surpresa, uma chuva de ferro, estampidos e silvos de ar vergastado e quedas e ramos partidos e pragas e explosões e o gargalhar fantasmagórico das rajadas matadoras e o homem ao lado dele com o sangue no ventre e nas mãos que disse “Ai, mãe!” e morreu. Atrás da sua árvore, levou a mão ao bolso e tirou-a, a reluzente granada com quem os seus dedos andavam calhados de amor e vício, puxou a argola amarela num repente de furor e ficou um momento a mirá-la, a cavilha apenas presa pelos dedos brancos de força enquanto, desfocado, o cadáver do ventre sangrento o olhava fixa e friamente; jogou-se para a luz, para lá do escudo eleito, e atirou-a para de onde vinha a morte sonora e a invisível que semeava surpresas de sangue. Por um momento foi a rainha da metralha e da luz ondulante de calor e do inacessível outro lado da estrada e foi a esperança também, soturna esperança subindo numa nuvem de pó castanho após deflagrar e se desfazer como um velho astro em meteoritos escaldantes. Mas já não estava sobre o coração, nem à cintura, nem no bolso, e ele ficou terrivelmente tranquilo, monstruosamente tranquilo e sozinho, a pensar na mulher de quem gostava, na adolescência provinciana e em certos lugares seus preferidos e em como eles seriam se e quando lá voltasse, enquanto, tranquilamente, disparava a metralhadora. Tudo estava adiado. Até o esquecimento.
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Nota do editor

Último poste da série de 6 DE JUNHO DE 2014 > Guiné 63/74- P13245: Notas de leitura (598): "Quem Semeia o Vento Colhe Tempestade!", publicação da Direção-Geral da Cultura da Guiné-Bissau (Mário Beja Santos)

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