Um dia o meu grupo, o 4.º, estava escalado para uma operação com o Pelotão de Naturais e a Milícia, e o local era como qualquer outro. Localizava-se na mata do Jol, e em qualquer lado podia estar uma surpresa . Mas eu comecei a pensar na minha vida, naquilo que já tinha passado com quase um ano de Guiné e naquilo que acontecia a muitos, que também me poderia acontecer a mim nesse dia. Deitei-me tarde, estive a beber e a conversar com o meu amigo Alfredo Gaspar que também vai entrar nesta história.
Fui-me deitar e comecei a ter pesadelos, nos quais eu era perseguido umas vezes sem munições, outras a arma encravava, enfim, passei a noite toda nisto e convenci-me que ia morrer.
Estes pesadelos já os tive cá várias vezes, não logo a seguir ao regresso mas talvez nos últimos vinte anos.
Depois disto comecei a pensar como me ia safar de ir à operação.
O Capitão estava de férias e o Eduardo Moutinho estava a comandar a Companhia. Levantei-me e fui dizer-lhe que estava doente da garganta, ele só disse: "mas tu ontem estavas bem". Respondi: "estava mas agora estou assim".
Como eu nunca tinha falhado a nada, ele acreditou em mim, nem me mandou ao enfermeiro, só disse: "vê se arranjas um furriel para ir na tua vez".
Eu pensei para uma coisa destas só o Gaspar, fui direito ao abrigo dele, acordei-o e ele saltou logo da cama. Começou a vestir as calças e diz-me isto: "só agora é que dizes" e passados dez minutos já estava junto do Pelotão pronto para sair.
Não haveria muita gente a fazer o que o meu amigo Alfredo Gaspar fez.
Eles foram e vieram sem ouvir um tiro, no entanto se eu fosse não sei se seria assim.
Lembro-me de perguntar à rapaziada se gostaram de ir com o Gaspar à operação e um disse: "ele pendura granadas de mão em todo o lado e só tinha medo que ele levasse um tiro e aquilo rebentasse tudo".
E agora pergunto eu: onde se encontraria um maluco como o Gaspar para fazer uma coisa destas?
Curiosamente nem o Gaspar nem o Eduardo Moutinho se lembram disto mas eu lembro-me muito bem e é uma pequena homenagem que quero prestar ao maluco do Gaspar.
Vou tentar enviar algumas fotos com o Gaspar e se acharem que isto serve para alguma coisa podem usar.
Manuel Carvalho
Fotos com o Gaspar
Baile de recepção aos periquitos da 2585
____________ Nota do editor
Último poste da série de 21 de Julho de 2014 > Guiné 63/74 - P13424: Blogoterapia (256): "Prece de um Combatente - Nos Trilhos e Trincheiras da Guerra Colonial", para que as minhas memórias não se percam no tempo (Manuel Luís R. Sousa)
13 comentários:
Admirei imenso esta foto.
Uns garotos, nos confins do mundo.
Também passei por semelhantes situações, eu que era um doido por bailes.Embarquei para a Guiné no dia de Carnaval (Terça-Feira) de 1969.
Levei um fato e gravata para ir aos bailes.Quando era Domingo , estava no mato, só me lembrava, daquela malta amiga que estava nos bailes de Belas , na Porcalhota, no Ferroviario. (Etc.Etc.) Foi assim 22 meses de saudades.Mas cá estou.Haja Deus.
Olá camarada!
Admiro a tua franqueza e sinceridade ao contar a história desse medo que te assaltou e te fez entrar em tal pânico que até te obrigou a inventar uma doença.
Julgo que a maioria de nós passou por momentos desses ou semelhantes. Eu já referi aqui no blogue que a primeira vez que vi sangue na Guiné quase desmaiava, felizmente ninguém da companhia notou.
No passado consta que alguns comandantes militares forneciam aguardente aos seus soldados antes de entrarem em combate.Pelas fotografias verifiquei que tiveste mais sorte do que eu, pois nas terras onde estive de fulas e mandingas não havia, que eu recorde, bailes de bajudas com militares.
Um grande abraço
Francisco Baptista
De: Augusto Silva Santos
Para: Manuel Carvalho
Camarada e Amigo,
Não acredito muito naqueles que dizem nunca terem sentido medo... É um facto que muitas vezes só nos apercebemos da realidade após as coisas terem acontecido e, se na própria altura não tivemos medo ou tempo para o ter, mais tarde até sentimos aquele calafrio característico. Isso aconteceu-me algumas vezes... Eu tive um amigo meu que me dizia assim: "Eu cá não tenho medo, tenho é cagaço". Enfim, vai dar ao mesmo, só que com um pouco mais de humor. Acho que todos um dia tivemos esses maus pressentimentos, normal numa situação de guerra. E quantas histórias não há em que infelizmente muitas vezes esses maus pressentimentos se tornaram em realidade.
Gostei de ver as fotos. Bons tempos para aqueles que tiveram a felicidade de regressar.
Um abraço com votos de muita saúde.
Camarada e Amigo Carvalho
Passámos das boas no Jol, mas como já te disse, não me lembro do que relatas sobre te ter substituído numa ida ao mato. Mas a verdade é que eu estava melhor no mato que no quartel(?), apesar do risco. Sabes onde o meu grupo apanhou aquelas armas da fotografia?
Lembro-me de muitas coisas, especialmente as que mais me marcaram. Ainda hoje, passados 45 anos da vinda da Guiné,tenho pesadelos, mas tudo passa.
O que mais me lembra foi a amizade, camaradagem e a entre ajuda que havia na malta, especialmente os que como nós andavam no barulho.
Um abraço do amigo
Alfredo Gaspar
Meu caro Abílio,somos quase contemporâneos quando foste eu tinha quase um anito.Aquelas fotos são a recepção que fizemos aos piras da 2585 que nos vieram substituir.Não haverá muitos que tiveram uma recepção assim.Vemos lá dois bem integrados no ambiente.Como podes ver para dançar não é preciso fato e gravata, basta haver música e haver com quem.Dizes bem haja Deus e saúde.
Um abraço
Manuel Carvalho
Meus caros amigos Francisco, Augusto e Gaspar
Obrigado pelas vossas palavras vi que perceberam bem a mensagem que quis transmitir e sabem do que estamos a falar.
Quando falamos de certos assuntos num local como o Blogue corremos sempre o risco de nos explicarmos mal ou sermos mal interpretados
Amigo Gaspar aquelas armas devem ser de mais que uma operação porque que me lembre nunca apanhamos mais que quatro armas numa operação.
Saúde e um grande abraço
Manuel Carvalho
Caros Combatentes ou Camarigos
Antes de mais, para quem ainda não sabe, eu sou irmão do Manuel Carvalho, ele esteve em Jolmete eu em Mampatá, ele atirador eu enfermeiro. Assim, não posso aqui falar de minas ou de emboscadas como alguns especialistas. É claro que tenho a minha visão dessas coisas porque passei por elas, mas não tenho a autoridade dos especialistas na matéria. Porém, mesmo sendo suspeito, tenho que dar a este post do meu irmão um grande e merecido realce, pela singularidade do tema. Na verdade muita gente escreve para o blog, sobre os mais variados assuntos, ligados ou não à nossa presença naquele pedaço da costa ocidental de África. Alguns posts são centrados na autoglorificação ou na descrição de feitos épicos.
Faltava-nos um post como este, abordando a outra faceta do soldado que da o corpo ao manifesto, a visão do combatente que tem pais, avós, irmãos e que não quer deixar de os ver quando tem apenas 21 anos. O meu irmão, num gesto generoso de exposição dos seus sentimentos, revelando a sua franqueza e humildade, diz-nos o que sentiu num determinado momento da guerra. É que a guerra, ao contrário do que insensatamente alguns pretendem, não tem nada de épico ou glorioso porque, nela, só há vencidos. O que sucedeu ao meu irmão naquele dia, sucedeu a milhares noutro qualquer dia e esta é uma faceta que deve ser difundida com sentido pedagógico. A história desta e de outras guerras que não integre esta perspetiva é uma história manca.
Carvalho de Mampatá
Caro Manuel Carvalho
Muito sinceramente, acho este teu artigo uma peça que merece ser lida uma e outra e outra vez.
Porque aborda uma perspectiva que na maior parte das vezes está omissa.
Por alguma razão o Branquinho tinha uma série a que deu o título de 'não venho aqui falar de mim nem do meu umbigo', numa atitude de cautela relativamente aos 'heróicos heróis'.
O que aqui nos trouxeste é muito humano. Foi uma grande franqueza essa de te expores a possíveis apreciações mais negativas mas está cheia de autenticidade.
As fotos do bailarico de recepção aos piras são uma preciosidade. Não tínhamos visto nada deste género.
Ah, e subscrevo as palavras do 'mano Carvalho'.....
Abraço
Hélder S.
Caro Manuel Mano Velho Carvalho
Costumava-se... ou costuma-se dizer, quem tem medo compra um cão, ou então quem tem cú tem medo. Eu vou mais pela segunda, porque não acredito nessa dos "heróis": "eu não tenho medo de nada, eu faço e aconteço, etc e tal...", conversa. Toda a gente tem medo porque toda a gente tem cú. O que acontece é que alguns conseguem disfarçar melhor que outros. O que acontece é que em determinadas situações, não há tempo para pensar. O que acontece é que muito da bravura que parecemos ter, se trata simplesmente da ocasião. O que acontece é que muitas das vezes quando já passou o perigo, pensamos: "eu fiz isto? que maluquice!". O que acontece...
Esta tua estória só vem pôr preto no branco o que muitos "fanfarrões, pretensos heróis", não conseguem admitir e pior do que isso ainda inventam pra caraças, como se a gente não tivesse andado lá e não soubesse como era.
Um abraço de Bandalho para Bandalho.
cumprim/jteix
Rais vos parta, irmãos Carvalhos de Gondomar, vós que gostais da minha terra. e que a visitais com frequência, sois dos melhores "transmontanos" que eu tenho encontrado e fiquei encantado com o comentário que o mano mais novo fez ao texto do mais velho. Gosto muito de vós e à distância estou a gostar dos vossos antepassados que vos souberam transmitir príncipios tão fraternos e tão sólidos.
Um grande abraço
Francisco Baptista
Sou a Ana Carvalho, sobrinha do Manuel Carvalho, autor deste post, e filha do Carvalho de Mampatá.
É com alguma atenção e muito interesse que vou seguindo este blogue, responsável por me ensinar muito mais da história da Guerra do Ultramar do que qualquer manual de ensino de História de Portugal ministrado nas escolas portuguesas.
E desta vez, tinha de deixar aqui algumas palavras de agradecimento ao Manuel Carvalho, por ter a enorme humildade e coragem de partilhar publicamente este momento de "medo", porque são estes os testemunhos que contam o que foi esta guerra e assim se entende tão bem que mesmo os rapazes que não morreram lá, não vieram como foram.
Tenho ainda mais orgulho em ti, Tio Manel.
Ana Carvalho
Pois é Carvalho;aquelas armas foram apanhadas pelo meu grupo, numa opereação em que fizémos um golpe de mão num acampamento deles e quem nos fez a protecção ao grupo de assalto foi o 3º grupo. E não foram só estas armas que foram apanhadas, o boné que tens na cabeça é cubano; mas isso foram só mais uma farditas de caqui amarelo. Tenho uma fotografia mais completa, que um dia deste ponho aqui.
Um abração
Alfredo Gaspar
Queridos amigos e camaradas Manos Carvalho.
Os sonhos pesadelos continuamos a tê-los e provàvelmente até ao fim das nossas vidas.
Tive uma situação idêntica à do Mano Velho. A diferença está - esteve ou estará - em que me encontrava mesmo mal. E morreu o único soldado nessa noite do meu pelotão. E eu não estava lá.
Até hoje essa lembrança me revolta e passará em meados deste mês 46 anos sobre o acontecido.
Um abraço aos Manos e especialmente ao velho Manel Carvalho.
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