segunda-feira, 25 de agosto de 2014

Guiné 63/74 - P13532: Notas de leitura (626): Mário Soares e a descolonização da Guiné (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 13 de Fevereiro de 2014:

Queridos amigos,
O historiador David Castaño é autor de um livro recente sobre o papel de Mário Soares na revolução portuguesa.
No artigo ora em análise, Castaño procede a exame o ideário dos oposicionistas ao regime de Salazar e a evolução operada em Soares sobretudo após a criação da Ação Socialista Portuguesa.
Descreve os equívocos, ilusões e crispações vividos logo no arranque do I Governo Provisório e como foi evoluindo o sentir da descolonização da Guiné, negociações que Soares acompanhou do princípio ao fim e que foram, aliás, as únicas negociações em que Soares agiu como principal negociador português.

Um abraço do
Mário


Mário Soares e a descolonização da Guiné

Beja Santos

A revista Relações Internacionais R:I publicou no seu número de setembro de 2012 o artigo intitulado “Abrindo a Caixa de Pandora: Mário Soares e o início da descolonização”, por David Castaño, investigador do ISCTE e do IPRI, doutor em História Contemporânea e autor do livro “Mário Soares e a Revolução”, Publicações Dom Quixote, 2013. Dá-nos uma grande angular da evolução do pensamento de Soares acerca da do património colonial, clarifica o confronto entre Soares, ministro dos Negócios Estrangeiros e Spínola, presidente da República, e descreve toda a intervenção de Soares na descolonização da Guiné, aliás a única em que interveio.

Primeiro, em 1960, Soares é um dos redatores do Programa para a Democratização da República, documento que registava o ideário da oposição “democrática, republicana, liberal e socialista”. No tocante à política ultramarina, este sector de oposição reclamava “a imediata institucionalização da vida democrática, sem discriminação racial ou política, para todos os territórios e todos os povos”. Indicavam-se várias medidas destinadas à criação de elites locais, entre outras. Ou seja, estava-se ainda longe de falar em autodeterminação e de independência. A proposta foi rapidamente ultrapassada com os acontecimentos de 4 de fevereiro de 1961, em Angola. Neste novo contexto, estes oposicionistas defendiam que o problema ultramarino era essencialmente político, havia que “reencontrar na paz – nunca na guerra – o caminho do diálogo entre as populações”. Um segmento expressivo da oposição cerrou fileiras em torno da defesa da África portuguesa. O livro de Frantz Fanon, entretanto, abalava as gerações mais jovens, a guerra da Argélia tornava-se-lhes claro que chegara a hora de dar um novo rumo às colónias. A Ação Socialista Portuguesa, a partir de 1964, condena política colonial da ditadura, reclama “o direito à autodeterminação e à independência das populações submetidas à nossa soberania”. Em 1970, numa conferência em Nova Iorque, Soares defendeu que a democracia era “incompatível com o prosseguimento da guerra colonial, e defende o fim da guerra". Estas declarações foram um dos motivos que o conduziram ao exílio.

Segundo, à chegada a Lisboa, na Estação de Santa Apolónia, Soares declarou que uma das prioridades imediatas passava por assegurar o “respeito pelos princípios de autodeterminação”, referiu-se aos contactos que durante o exílio tivera com líderes dos movimentos africanos alertou para o perigo do desenvolvimentos de movimentos separatistas brancos. Spínola pede-lhe para efetuar uma viagem pelas principais capitais europeias a fim de explicar o sucedido em Portugal. Durante esse périplo, Soares apercebe-se que quase todos os líderes europeus pressionam os contactos com os movimentos de libertação. Já ministro dos Negócios Estrangeiros, reúne-se com James Callaghan, primeiro-ministro da Grã-Bretanha. Castaño escreve: “Soares defendeu que a prioridade era a Guiné. Era necessário alcançar um cessar-fogo, separar a questão de Cabo Verde e preparar-se a realização de um referendo quando se realizassem as eleições em Portugal. Em sua opinião, Portugal não podia reconhecer imediatamente a Guiné-Bissau pois não existia um mandato popular nesse sentido já que o Governo em funções tinha origem num golpe militar, pelo que só depois de realizadas eleições em Portugal e consultados os guineenses se poderia dar esse passo”.

Tinham-se iniciado em Londres negociações com uma delegação do PAIGC, Soares acreditava que se ia conseguir um acordo de cessar-fogo, a troca e a libertação de prisioneiros, estabelecer-se-ia a retirada de tropas portuguesas e alguns pontos do território, seguir-se-iam negociações para implementar o princípio da autodeterminação, Soares contava igualmente com a boa vontade da OUA do bloco de Leste. Só que as negociações não evoluíram como o ministro português perspetivara. Os negociadores do PAIGC mostraram-se rígidos, recusaram e consideraram muito grave a proposta de consulta às populações, recordaram que o Estado da Guiné-Bissau já era reconhecido por 84 Estados e que em breve a Assembleia Geral das Nações Unidas podiam admiti a Guiné-Bissau e mais recordaram que a Assembleia Geral já tinha adotado uma resolução em que condenava Portugal pela ocupação ilegal de uma parte do território. As negociações foram interrompidas. No resumo das conversações de Londres, o chefe da delegação do PAIGC, Pedro Pires, anotava que os negociadores portugueses reconheciam que os seus soldados já não queriam combater. A pressão internacional crescia, os países africanos e os países escandinavos defenderam junto de Mário Soares que Portugal deveria reconhecer, sem qualquer tipo de consulta, o Estado da Guiné-Bissau. Mas Spínola mantinha-se intransigente, queria a realização de consultas populares. E Soares parte para Argel, o PAIGC mantém a sua postura intransigente. Soares mudara entretanto de posição, ele que se revelara defensor da realização de um qualquer tipo de consulta, mesmo para o caso guineense, deixava claro que passara a ser partidário do reconhecimento imediato da Guiné-Bissau. “Numa reunião dos ministro dos Negócios Estrangeiros dos países da NATO, realizada em Otava, nos dias 18 e 19 de junho, Soares informou Callaghan que o caso guineense era peculiar e que a independência poderia vir a ser alcançada sem a realização prévia de uma consulta popular”. Soares reúne-se com Kurt Waldheim, secretário-geral da ONU, e expõe-lhe francamente as diferentes posições em jogo, Waldheim defendeu que se devia fazer uma distinção entre a situação da Guiné-Bissau que já tinha a independência reconhecida.

Terceiro, é a descolonização e as suas vias possíveis que vai precipitar a crise política que levará à queda do primeiro-ministro, Palma Carlos, defensor da aprovação de uma constituição provisória que claramente reconhecesse o princípio do direito à autodeterminação. Os acontecimentos sucediam-se em turbilhão, Waldheim é confrontado com o pedido de adesão da Guiné-Bissau às Nações Unidas, Soares é informado pelos mais variados canais diplomáticos que a maioria esmagadora dos Estados aprova a ideia. O MFA da Guiné intervém, no início de julho aprovara uma moção em que se defendia que “a realidade político-social da República da Guiné-Bissau e do PAIGC” não era “compatível com o seu enquadramento nos limites de uma autodeterminação pela via de um referendo ou qualquer outro processo semelhante”, exigia-se que o Governo português reconhecesse “imediatamente e sem equívocos a República da Guiné-Bissau e o direito à autodeterminação e independência dos povos de Cavo Verde”. Spínola apercebe-se que não tem margem de manobra e promulga a Lei 7/74, que irá ficar a ser conhecida como a lei da descolonização. No início de Agosto, Waldheim chega a Lisboa. No comunicado final da visita, o Governo português declarava-se pronto a reconhecer a República da Guiné-Bissau como Estado independente e disposto a celebrar imediatamente acordos com a República da Guiné-Bissau para a transferência imediata da Administração. A 8 de agosto as negociações foram retomadas em Argel e no dia seguinte os representantes de Portugal e do PIAGC alcançaram um protocolo de acordo. A 26 de agosto, novamente em Argel, assinou-se o acordo e ficou agendado para 10 de setembro o reconhecimento da Guiné-Bissau.

Estas foram as únicas negociações em que Mário Soares agiu como principal negociador português. A partir de julho, com a chegada do major Melo Antunes ao governo como ministro responsável pela descolonização, o MFA tomou as rédeas do processo.
____________

Nota do editor

Último poste da série de 22 de Agosto de 2014 > Guiné 63/74 - P13524: Notas de leitura (625): “Che Guevara: La clave africana, Memorias de un comandante cubano, mebajador en la Argelia postcolonial”, por Jorge Serguera (Papito) (Mário Beja Santos)

7 comentários:

Joaquim Luis Fernandes disse...


Caros amigos e camaradas

A leitura proposta, em apreço, trata de assuntos muito sérios, que tiveram consequências para milhões de homens e mulheres, de então até aos dias de hoje. O que então parecia evidente, veio a revelar-se contaminado pelo erro. De concessão em concessão, desprezaram-se os princípios e seguiu-se o politicamente correcto, na lei do menor esforço. Escamotuou-se a verdade e deixou-se que a mentira se afirmasse como única verdade.

As responsabilidades foram de muitos! Por actos e omissões, internos e externos,de dentro e de fora, os activos e os passivos. Principalmente os dirigentes dos países, organismos e instituiçõrs envolvidos. E nunca de uma só pessoa ou grupo, do governo ou da oposição, das FA ou da Guerrilha.

Todos fomos responsáveis, embora uns mais do que outros.

Abraços
JLFernandes

Torcato Mendonca disse...

Olá JLFernandes, é um assunto delicado no tratamento.É. Não quer isso dizer que dele não falemos.

Qual foi a Colonização boa?
Qual foi a descolonização sem problemas e alguns graves.
Quantas decadas levaram os argelinos franceses a serem integrados? Já estarâo?

Ia ser longa a esplanação em assunto ,com 40 anos sómente,e com tanta "gente" por aí que viveu esse problema...digamos -problema...

O Mário BSantos trás-nos, de quando em vez, assuntos que vale a pena reflectir neles.


Abraço, T.

Anónimo disse...

Caros camaradas

No caso específico da Guiné,salvo alguns casos pontuais e no meu ponto de vista irrelevantes,tudo se processou segundo as regras, tanto militares como civis.

E porquê ?

Simples...existia apenas o paigc.
O número de "metropolitanos" era diminuto e muitos deles até decidiram ficar.
Mas o mais importante foi que as grandes potências não estavam minimamente interessadas na Guiné.

E foi tudo.

AB

C.Martins

JD disse...

«impõe-se não esquecer que o Secretário-Geral do Partido Socialista, ao fazer parte do 1º.Governo Provisório, aceitou como plano de acção para o ultramar, sem exceptuar qualquer "Provincia Ultramarina", a "instituição de um esquema destinado à consciencialização de todas as populações residentes nos respectivos territórios, para que, mediante um debate livre e franco, possam decidir o seu futuro no respeito pelo principio da autodeterminação sempre em ordem à salvaguarda de uma harmónica e permanente convivência entre os vários grupos étnicos, religiosos e culturais" que seriam mantidas "as operações defensivas" destinadas a salvaguardar a vida e os haveres dos residentes de qualquer cor ou credo"; e se iria dar "apoio a um acelerado desenvolvimento cultural, social e económico das populações e territórios ultramarinos com vista à participação activa, social e política de todas as raças e etnias na responsabilidade da gestão pública e de outros aspectos da vida colectiva".
Isto equivale a se ter reconhecido que não havia derrota quando o Dr Mário Soares começou a negociar com os chamados Movimentos de Libertação. A "dinâmica" que levou às soluções que se vieram a adoptar, criou-se através dessas negociações, tal como estava a contar o então Ministro dos Negócios Estrangeiros.» - Livro Negro da Descolonização, pg. 451.
Após o Acordo de Lusaca (7DET74), "com identidade de pontos de vista" e "homogeneidade de propósitos", dizia o Dr. Mário Soares: "o Partido Socialista deu as suas provas, Pudemos dizer que, desde o início, quem iniciou a descolonização, foram os socialistas, que sempre tiveram um combate comum e estabeleceram relações com o MPLA, com o PAIGC, e com a Frelimo" - iden, pg.107.
Não sei se contraditória, se atabalhoadamente, em 06MAI74, a O Século, referiu "tornou-se evidente para nós que o problema era muito urgente e que surgiriam problemas graves se houvesse demoras no processo de descolonização" - ibidem, pg.111.
Outra pérola: "os principios são essenciais e um político que os esqueça é um homem sem estofo, um oportunista" - ib. pg.157. Lembro aqui, que aceitou integrar um governos patrocinado por Spínola, a quem traíu institucionalmente, além do pormenor, de que qualquer das negociações não foi legitimada democraticamente. Mas isso de democracia, para Soares, é de somenos.
JD

JD disse...

Em 09OUT74, um mês depois de Lusaca, Mário Soares esclarecia:
"Como é que se exerce o direito de autodeterminação nas colónias? Esse é o problema. Através de uma votação democrática em que cada homem terá um voto? Em quase todos os regimes africanos actuais, existe um partido único. Esse partido único existe em Moçambique. Nós tínhamos assim duas possibilidades a seguir: ou impunhamos um referendo, e então íamos dar a possibilidade a certos grupos fantoches, que não existiam antes do 25 de Abril, de poder aparecer em público, ou íamos reconhecer aquele movimento nacionalista que conduziu uma guerra durante treze anos em Moçambique. Nós seguimos o segundo caminho por razões pragmáticas" - Livro Negro da Descolonização, pg.65.
Esta estrutura moral e prática de um governante, parece um bom contributo para a lucidez da traição. Infelizmente, os resultados de tais acções políticas, quer no ultramar, quer na metrópole, deram os piores resultados, e, ainda hoje, reflectem-se nas respectivas sociedades: mais pobres (ou empenhadas), de frágeis estruturas sociais e económicas, onde capeia a dependência e a corrupção.
Abraços fraternos
JD

Antº Rosinha disse...

Quando Mário Soares chegou no dia 26 de Abril, já Pedro Pires, Luís Cabral e Nino Vieira tinham passado à muito tempo e nem sabiam se ele existia.

E, segundo o que os jovens guineenses aprenderam na escola, ainda estão à espera do agradecimento de Mário Soares, o facto da luta dos heróis do PAGIC lhe terem permitido "viver" em democracia.

A Juventude Amilcar Cabral de Bissau, quando do partido único, não aceitava a "ingratidão" e "arrogância" de Mário Soares e cutros democratas ou pseudo, portugueses, que deviam tudo aos guerrilheiros do PAIGC, e não queriam agradecer, antes pelo contrário, ainda queriam que fosse o PAIGC a venerá-los.

E de facto, digo eu, ex-colono, e também retornado, e tambem ex-emigrante, nem aqueles paises eram nada sem nós, Salazar , Mário Soares, etc. e antepassados, nem nós seriamos o que somos, sem a convivência de séculos com tanta gente.

Fizemos tudo o que foi possível para chegarmos a esta felicidade.

Antº Rosinha disse...

Quando Mário Soares chegou no dia 26 de Abril, já Pedro Pires, Luís Cabral e Nino Vieira tinham passado à muito tempo e nem sabiam se ele existia.

E, segundo o que os jovens guineenses aprenderam na escola, ainda estão à espera do agradecimento de Mário Soares, o facto da luta dos heróis do PAGIC lhe terem permitido "viver" em democracia.

A Juventude Amilcar Cabral de Bissau, quando do partido único, não aceitava a "ingratidão" e "arrogância" de Mário Soares e cutros democratas ou pseudo, portugueses, que deviam tudo aos guerrilheiros do PAIGC, e não queriam agradecer, antes pelo contrário, ainda queriam que fosse o PAIGC a venerá-los.

E de facto, digo eu, ex-colono, e também retornado, e tambem ex-emigrante, nem aqueles paises eram nada sem nós, Salazar , Mário Soares, etc. e antepassados, nem nós seriamos o que somos, sem a convivência de séculos com tanta gente.

Fizemos tudo o que foi possível para chegarmos a esta felicidade.