Meu caro Luis Graça e todos os camaradas e amigos desta tertúlia,
Como o prometido é devido, aqui estou a enviar um excerto da minha obra “Guerra na Bolanha - de estudante, a militar e diplomata” (Âncora Editora, Lisboa, Março de 2015).
O episódio aqui relatado consta de páginas 159 a 161 do livro em apreço e é ilustrado com uma fotografia autêntica da época da autoria de Maurício Esparteiro.
Recordo que, em tempos, enviei para o blogue um relato do ataque a Mansabá em 3 de Abril de 1969 que também integra a obra.(*)
O lançamento foi efectuado em 17 de Março em Oeiras, mas será feita uma sessão de apresentação em Lisboa, na Sociedade Histórica da Independência de Portugal em 5 de Maio, pelas 18 horas, para a qual estão todos convidados e de que oportunamente enviarei para estas mesmas páginas um lembrete.
Saudações amigas
Francisco Henriques da Silva
(ex-Alferes miliciano de infantaria da CCaç 2402
e ex-embaixador em Bissau 1997-1999)
A Mina
Um pouco mais adiante, no nosso percurso para Bissorã é detectada uma nova mina e desta feita, coube-me a mim, como especialista em explosivos, levantá-la. Armado apenas com uma faca de mato lá fui desempenhar-me dessa ingrata tarefa, pedindo a todos que se afastassem pelo menos uns 50 metros e se refugiassem por detrás dos troncos das árvores.
À boa maneira lusitana, existia sempre um ou outro mirone, que, apesar dos avisos e das proibições, das ordens berradas pelos furriéis, iam ver as minas e manifestavam muita curiosidade em saber como se desmontavam. A certa altura irritei-me, tive de parar o que estava fazer e pedi ao meu “guarda-costas”, que estava para ali a olhar feito parvo, que se retirasse:
– Mas eu estou aqui para protegê-lo, meu alferes – disse-me ele.
– Oh, homem, não proteges nada! Vamos mas és os dois para o galheiro em menos de dois tempos! Além disso parece-me que esta mina está contra-armadilhada! Isto é perigosíssimo! – retruquei.
O que é que se passa pela nossa cabeça quando estamos a desmontar uma mina com cerca de seis quilos e meio de trotil? Sabemos que qualquer erro seria, como diziam os nossos instrutores em Tancos, o primeiro, o único e o fatal. Nesse momento tudo nos incomoda, as pessoas, o arvoredo, a areia seca do arremedo de estrada em que nos encontramos, os ruídos indefinidos da floresta, as formigas que, indiferentes, passeavam num carreiro ali ao lado; alguém que assobiou lá ao longe, sem qualquer motivo; o fumo de um cigarro que o furriel deitou ali bem perto de nós, há minutos. E depois o que nos passa em flashes sucessivos pela cabeça: os eléctricos amarelos de Lisboa, tão perto do nosso coração e tão longe; a namorada que já não tínhamos, mas que podíamos ter; a última música dos Beatles, que era bem gira; os pais, os irmãos e a avó, com os seus límpidos olhos azuis e o seu ar autoritário; os estudos inacabados; a estupidez incomensurável da guerra naquele país ignorado e que poucos sabiam localizar com exactidão no mapa. Enfim, o que é que, em boa verdade, não nos passa pela cabeça?
Mas, atenção: temos de nos concentrar, o importante é desactivar a mina, tão depressa quanto possível, mas sem grandes pressas. Temos medo? Creio que não. Estamos apenas apreensivos. Como é que isto se define? Não sei. A juventude e alguma inconsciência que a caracteriza acaba com qualquer vislumbre de medo e a prudência não é para aqui chamada. Vamos a isto? Vamos! Mãos à obra.
Olossato - Levantamento de uma mina
Com efeito, ao escavar a terra sob a parte inferior da caixa de madeira da mina anticarro, deparei com algo de estranho, que não sabia exactamente o que era. Parecia-me um arame, junto com um objecto redondo metálico em forma de pastilha. Não percebi muito bem o que era, mas estava desconfiado. Não conseguia, porém, escavar mais, até porque podia desequilibrar a mina e se esta estivesse contra-armadilhada podia dar por terminada a minha comissão na Guiné e começar de imediato outra no Além. Acresce que, à torreira do Sol, estava com as mãos suadas e sujas de terra. Não podia continuar. Lembrei-me de um alferes sapador que, umas semanas antes, lá para o Sul, ao tentar desactivar uma mina, com as mãos suadas, deixou escapar o percutor e ficou feito em carne picada, que, segundo me contaram, mal cabia toda dentro de um quico. Para rematar, com todos os acontecimentos do dia, estava enervado com pequenas coisas e não com a mina propriamente dita ou seria por causa dela? Parei para descansar, beber um gole de água, puxar de um cigarro. Sosseguei. Mas não tinha chegado ao fim das minhas tribulações.Chamei a minha gente, para conferenciar com os furriéis e um dos condutores.
– Meus amigos, aquela mina deve estar contra-armadilhada e eu receio que não consiga dar conta do recado. Alguém tem sugestões? Podemos rebentá-la no local. É o que se costuma fazer e é uma hipótese a considerar. Mas vamos, antes, tentar retirá-la com o guincho do Unimog. O que é que acham?
À falta de melhor, com uma ou outra hesitação, acabaram todos por concordar. Então expliquei-lhes o que pretendia fazer:
– Como esta coisa pode rebentar imediatamente ou a meio caminho, quando estiver a ser puxada, nunca se sabe, o pessoal vai-se afastar ainda mais. Portanto, recuam todos para uma distância segura. Vamos esticar o cabo até ao limite, depois vamos passá-lo pelo ramo daquela árvore – e apontei com o dedo para uma árvore próxima –, em seguida, vamos prender o gancho às pegas laterais da mina que são de corda. Finalmente, com toda a calma, içamo-la. Quando estiver no ar baixamo-la muito, mas muito, lentamente. – e voltando-me para o condutor – Percebeste? Atenção! Tudo pode acontecer. Deixem-se de brincadeiras! Isto é a sério! Não quero aqui ninguém de ninguém!
Todo o pessoal se abrigou a uma distância razoável do local, internando-se na floresta e escondendo-se atrás das árvores e dos morros de baga-baga. Com esta dispersão, corria-se o risco de sermos emboscados ou de alguém colocar o pé numa mina antipessoal. Porém, não houve nada. Os guerrilheiros assentaram a mina e terão ido à sua vida. Bom, procedemos com o maior cuidado. A mina elevou-se no ar, aí um metro ou um pouco mais. Não aconteceu o que quer que fosse. Depois baixámos o cabo muito devagar até repousar novamente no solo, ao lado do buraco, onde se encontrava previamente. Não estava contra-armadilhada como se temia, mas o inimigo havia deixado uma moeda de 25 tostões metropolitana presa a um clipe grande de escritório (!). Da estupefacção passei ao riso. Mas que ideia aquela! Desarmei, com segurança, a mina e a companhia lá ficou a ganhar 2000 escudos, que era o prémio por mina anticarro detectada e levantada (em geral, 1000 escudos para quem a descobria e outros 1000 para quem a levantava). O dinheiro reverteu, como habitualmente, para o fundo comum.
O resto da estrada foi cuidadosamente picada até ao subsector de Bissorã, cuja tropa, quase toda originária dos Açores, já estava preocupada com a nossa demora e alguns dos graduados, num acto meio-tresloucado foram ter connosco, ao limite da respectiva área, de bicicletas motorizadas!
A loucura não paga imposto.
C’était notre drôle de guerre!
____________
Notas do editor
(*) Vd poste de 7 de novembro de 2014 > Guiné 63/74 - P13858: Memórias de Mansabá (34): As amêndoas da Páscoa de 1969 (Francisco Henriques da Silva)
Último poste da série de 23 de maio de 2013 > Guiné 63/74 - P11616: Bibliografia de uma guerra (69): "Guiné - Terra que aprendemos a amar", mais um livro em sextilhas do nosso camarada Manuel Maia
7 comentários:
Camarada Francisco H. da Silva:
Nesses momentos de concentração necessários a todos os especialistas de minas e armadilhas, não haverá dúvida que a adrenalina sobe em flecha e todos os minutos atingem uma dimensão temporal excessiva pelas memórias e pensamentos que perpassam pelas mentes com tanta velocidade mas apesar disso com tanta nitidez. A sensação é a mesma que experimentamos quando nos encontramos em perigo de morte iminente. Lembro-me de já ter passado por essa experiência, a situação não a consigo recordar.
Há algum tempo o nosso camarada Mário Gaspar, também especialista em minas e armadilhas fez outro relato semelhante no blogue, que também me impressionou muito.
Gostei e gostei que vos tivesseis safado, desse e doutros perigos.
Um abraço
Francisco Baptista
Meu caro Francisco da Silva:
Emocionou-me o teu relato do levantamento da mina e só não te mandei parar, porque, estando tu a descrever a acção, certamente ela tinha sido bem sucedida.
A minha forte emoção, deve-se ao facto de ter eu, como comandante de um pelotão em operação de segurança assistido a uma situação semelhante em 1965, na estrada de Catió para Cufar, em que o infortunado furriel Silva, do BC 619, especialista em minas e armadilhas, bem sucedido em acções semelhantes anteriores, ter, subitamente desaparecido numa nuvem de fumo negro.
Malditos e estupidos prémios que tantas vidas, ingloriamente ceifaram.
Um abraço,
João Sacôto
ex Alf. Mil.
No dia 6 de Outubro de 1970 ouvi o alferes de minas e armadilhas da minha Companhia morrer vítima da explosão de uma mina antipessoal. Minutos depois fui chamado para continuar o trabalho que ele não havia acabado. Nesse momento prometi a mim mesmo nunca tentar sequer levantar alguma.
Em Dezembro de 1971 levantei uma mina anticarro mas recorrendo ao processo de a deslocar com auxílio de uma corda.
Carlos Vinhal
ex-Fur Mil Art MA
CART 2732
Guiné, 1970/72
"Drôle de guerra, cést ça!"... Não se pode traduzir á letra, que é uma expressão idiomática... Sim, "drôle de guerre", que ironia!... E no final, de levantar a mina e de teres suado as estopinhas, foste beber um copo, que bem merecias!...
Soberba descrição de uma situação-limite como era aquela de detetar e levantar uma mina... Que terror noss inspiravam as minas, A/C e A/P... sei do que falo, porque também caí numa anticarro, aos 20 meses... E vi os seus efeitos desvastadores noutras ocasiões...
Parabéns pela escrita e pelo livro... A título de consolação, somos até agora os combatentes que mais escreveram sobre a sua guerra, na história de Portugal!... Acho que, nesse capítulo, o nosso blogue tem dado uma ajuda...
Olá Camaradas!
Eu também fui a Tancos tirar essa especialidade: "mines and bloody tracks". Recordo ainda a primeira lição administrada e a frase lapidar: "nunca se armem em parvos".
Depois, com o calhamaço daquelas matérias, umas seiscentas páginas, fiz uma selecção informativa.
Levantei as minas que me couberam em sorte, sempre caixotes a/c, mas nunca pus as mãos por baixo, na base do caixote.
É que o disparador automático "rato", funcionava por descompressão, e podia estar assente numa base artificial de areia, deslocável com qualquer deslize de material, e dar-se-ia a descompressão. O que eu fazia, era como referiu o Carlos Vinhal: escavava lateralmente, fazia um laço apertado em redor da mina (a corda e o saco de sapador acompanhavam-me nas colunas), com puxões movimentava a mina... e prontos!
Outro cuidado que às vezes negligenciava, era correr as margens da picada em busca de um qualquer cordão detonante, para além de uma verificação sobre a eventualidade de companhia(s) a/p.
Depois de ter colocado o pessoal a recato (quando na excitação eles obedeciam à instrução de imobilização), a alguns metros de distância e em prevenção de emboscada, dedicava-me às tarefas com a faca de mato, mas tranquilo, pois não estava a correr riscos.
Num episódio da História da C.Caç.2679 é que suei as estopinhas, mas não vou repetir-me. E os prémios foram sempre para o Foxtrot saciar as sedes na cantina, na medida em que, tanto eu, como quem a(s) detectava não andávamos sós e sem protecção. Como diziam os mosqueteiros: todos por um... e com controle de riscos.
Abraços fraternos
JD
A propósito do "rato", uma peça desconhecida para a maioria, informo de que se tratava de uma aplicação perigosa, também para quem a colocava. O "rato" era armado, e não podia movimentar-se, a partir do momento em que a mina era assente.
Talvez por isso, os mofimentos fizeram pouca ou nenhuma utilização dele.
Do que temos tido conhecimento, é de minas armadilhadas, tipo fornilho, comandadas à distância, e deflagradas por dispositivo electrico, ou por cabo detonante. Daí, a importância da verificação das margens das picadas, de que o episódio de Guileje é um bom exemplo de destruição e morte. E foram várias as deflagrações desse tipo.
Abraços fraternos
JD
Muito obrigado pelos vossos comentários e pelo interesse demonstrado por esta obra que não tem grandes pretensões. Vou enviar mais um um ou dois textos para o blogue. Para além da guerra, propriamente dita, interessou-me, ainda mais, o pós-guerra, isto é como voltámos e como nos integrámos na sociedade portuguesa da época. Esses são os temas que eu entendo deverem ser abordados, com mais insistência, pois para muitos a reintegração e adaptação não se realizaram sem dificuldades, passe o eufemismo.
Abraço a todos
Francisco H. da Silva
Enviar um comentário