Queridos amigos,
Hoje fiquei-me pela cidade, a visita a um pequeno museu na comuna de Ixelles, onde tenho sempre surpresas.
E deambular faz bem, os chuviscos passam depressa, e tínhamos o céu desanuviado. As livrarias com preciosidades em segunda mão são outra tentação, tão grande ou tão pouca que encontrei a preço reduzido "La découverte de l'Afrique", de 1965, e onde largamente se fala de Azurara e Duarte Pacheco Pereira e das nossas itinerâncias pelo Benim e Tombuctu.
Há pratos substância que me irão regalar nos próximos dias: Lovaina e a retrospetiva Chagall. Eu depois conto, e com muita satisfação.
Um abraço do
Mário
Bruxelles, mon village (3)
Beja Santos
Restam poucos vestígios das muralhas medievais da cidade, já li que havia cerca de 50 torres de atalaia, no passeio anterior mostrei-vos a Porta de Hal, quando ia a caminho da Feira da Ladra local. Vou-vos mostrar agora a Torre Anneessens, ou o que dela resta, aprecio a sério a natureza desta intervenção, indo por este bulevar adiante vamos dar à Biblioteca Real, sempre que estou de visita a este Burgo não gosto de perder as suas exposições, sempre marcantes, está num dos locais iconográficos de Bruxelas, o Mons des Arts, lá no alto tem-se uma das vistas mais esplendorosas da cidade. Adiante, a propósito da retrospetiva Chagall, falaremos desse local de visita obrigatória. Ali perto estão dois museus incontornáveis, quer o dedicado à obra de René Magritte, quer os Museus Reais de Belas Artes, recheados do melhor da pintura deste país.
Outro pormenor da Torre Anneessens, resta dizer que estamos perto do popular bairro de Marolles. E depois da história medieval vamos mudar de agulha para um banho de arte, no museu de Ixelles.
O pretexto era vir à exposição de Gao Xingjian, francês de origem chinesa, autor prolífico galardoado com o Prémio Nobel da Literatura em 2000, artista múltiplo: homem de teatro, cineasta, artista plástico, muito respeitado por consagrar a sua obra à exploração dos fluxos da consciência através do movimento da tinta sobre o papel.
Deambulei pelas dezenas e dezenas de obras de mestre Gao, confesso que não é manifestação de arte que me faça faísca, reconheço a delicadeza, mas isto é tão frio, para lá dos meus sentidos, que visitei a exposição cometendo a blasfémia de estar sempre a comparar com uma espantosa exposição de gravuras japonesas, que vi em Bilbao. Este senhor não é santo do meu culto, paciência, são coisas que acontecem, mas o que veio a seguir valeu a pena esta vontade de visitar o museu de Ixelles, onde tenho assistido a acontecimentos culturais insuperáveis.
Saí diretamente da exposição do mestre Gao para esta, dedicada aos artistas belgas, durante a I Guerra Mundial. Muito económica e talentosamente organizada, deu para mergulhar no contexto da época, no pós-impressionismo, no fauvismo, no futurismo, no expressionismo, uma encruzilhada de artistas que ficaram na Bélgica e outros que partiram para o exílio nos Países Baixos e Grã-Bretanha, a exposição revelava também pastéis, desenhos a lápis, litogravuras de testemunhos de guerra, cenas de combate, destruições, anúncios de tômbolas para ajudar os carenciados. Estavam também presentes artistas do pós-guerra, gente que experimentava outras formas de modernidade como o expressionismo ou o surrealismo. No fim da guerra extinguiam-se as manifestações fauvistas, apareceram artistas interessados numa nova dimensão da arte abstrata, o construtivismo, em que se notabilizaram os soviéticos. Fixei com muito agrado este trabalho de Victor Servranckx (1897-1965), um artista que se manterá fiel a este tipo de arte abstrata até ao fim da sua vida.
Victor Servranckx, Opus 53, 1923
Finda esta exposição, entrei numa sala onde vi todo o processo de restauro de um quadro do pintor simbolista Jean Delville, O amor das almas (1900), uma tela de grande formato (268x150), inspirada no Banquete de Platão, no qual Aristófanes descreve o mito da androgenia, tema que encarna perfeitamente o ideal do simbolismo em finais do século XIX. Aqui se evoca a nostalgia de uma unidade e harmonia originais que se vieram a perder. A tela representa dois amorosos enlaçados que parecem em levitação, os corpos estão envolvidos numa voluta e parecem conduzidos para um céu luminoso. Ao longo das paredes eram dados pormenores sobre os processos de restauro envolvidos.
O museu de Ixelles ainda tem mais exposições, vou passar de raspão pela do genial artística gráfico Lucien de Roeck, foi ele que criou o logo da Exposição Universal de 1958, preparava-me para sair, já tinha o estômago a bater horas mas não resisti ao fascínio de todo este grafismo arrebatador. À saída, fixei um último pormenor do museu, já deixara de chover e senti-me feliz por saudar este equipamento que tão bem me acolhera.
É um exterior singelo, convenhamos, com várias enxertias, ao sabor dos financiamentos dos doadores, uns ofereceram obras-primas e outros cuidaram de ir ampliando as instalações para as expor com pompa e garbo. E como é prática, há sempre um pedacinho de vegetação, dentro de algumas semanas vão irromper as flores, no auge da Primavera.
Vou desembolado pela fome, mas não resisti a esta surpresa, esta extravagante fachada de um restaurante, com tanto pechisbeque de cima a baixo. Agora é que vou mesmo à procura de uma sopinha, de uma salada e uma talhada de tarte, depois andarei a ver montras, o tempo está de chuva, é a situação ideal para ir à procura de pechinchas, CDs a um euro, que os há, confirmei, e em muito bom estado. E ao fim da tarde fui ouvir Schumann, e com muito prazer, no Conservatório. Foi um dia bem aviado, recolho-me a casa do anfitrião, jantar, um pouco de leitura e vale de lençóis, como é boa a vida de um reformado português em Bruxelas!
Só mais uns pormenores antes de apanhar o metro para regressar a Watermael-Boisfort. Em primeiro lugar esta fachada de um edifício dedicado ao ensino das artes e ofícios, faz parte daquela época esplendorosa entre guerras, muito dinheiro das minas, dos diamantes e de outras riquezas do Congo, eram tempos em que a arquitetura se conjugava com o metal e o vidro, na justa escala, reminiscência das construções palatinas. E chocou-me o contraste com aquele mamarracho ali à direita, um caixote informe, mais inadequado não podia ser.
São bastante conservadores, estes belgas. Mas não atraiçoam a História, nem a minimizam. Quando o partido comunista implodiu, centenas e centenas de intelectuais escreveram um documento apelando a que se respeitasse o seu património de luta, nas lutas laborais e na resistência ao ocupante alemão. Estes belgas conservadores deram com os costados nos mesmos campos de concentração ao lado dos homens de esquerda, e não se esquecem. A caminho da Gare du Midi, onde se pode apanhar o comboio para Paris ou para os principais centros do Norte da Alemanha, encontrei esta alameda Rosa Luxemburgo, não posso ficar insensível a estas memórias, por todo o lado se encontram lápides aos fuzilados e martirizados. Quando um povo se respeita, o dever de memória é fácil.
O mesmo se passa com esta Avenida de Estalinegrado, só conheço este nome aqui e em Paris, foi aqui que se deu a viragem e o princípio da queda do nazismo. A Bélgica não foi dos países mais sofredores mas ficou suficientemente marcada pela perseguição aos judeus e as muitas humilhações. Pois assim se respeita Estalinegrado, a cidade mártir. E já chega de considerações. Amanhã o dia é passado em Lovaina, a velha, a importantíssima cidade dos têxteis, dos curtumes e detentora de uma universidade que marcou a cultura europeia e cuja reputação chegou aos dias de hoje. Eu depois conto.
(Continua)
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Nota do editor
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