quarta-feira, 29 de abril de 2015

Guiné 63/74 - P14543: Cartas de amor e guerra (Manuel Joaquim, ex-fur mil, arm pes inf, CCAÇ 1419, Bissau, Bissorã e Mansabá, 1965/67) (19): Sem nada para dizer

1. Mensagem do nosso camarada Manuel Joaquim (ex-Fur Mil de Armas Pesadas da CCAÇ 1419, Bissau, Bissorã e Mansabá, 1965/67), com data de 15 de Abril de 2015:

Meus caros editores:
Anexo mais um item da minha série "Cartas ...".
Ando a atrasar-me muito mas isto não está fácil embora o faça com todo o gosto e empenho. Não tenho tido é tempo para ser mais rápido. O Luís convenceu-me a continuar por mais uns tempos e umas cartas, fazendo-me acreditar um pouco mais no interesse desta tarefa.
Brevemente irá o item n.º 20.

Agradecido pelo vosso trabalho e atenção, até sábado em M. Real.
Um grande abraço
Manuel Joaquim


Cartas de Amor e Guerra

19. Sem nada para dizer

Foto 1 > Em Mansabá > “Apetece-me gritar que me deixem, todos!”
© Manuel Joaquim

Mansabá, 11/DEZ./66

Estou mesmo sem saber o que te dizer, como hei-de entrar em contacto contigo. A atmosfera um bocadinho irritante, talvez mesmo com certa dose de despeito, estúpido ou fundamentado, que tem há uns tempos rodeado as nossas relações, está na base deste empastamento de vazio, deste momento cheio de nada ter para te dizer.
E talvez fosse a melhor maneira de contactar contigo, gritar-te que nada tenho para te dizer. Porque, agora, é esta a verdade. Daqui a bocado poderá ser que não. Agora é.
Não sei porquê mas sinto-me cá dentro como que empastado, dorido, sazonado, crestado, indiferentismo doentio a bailar, plenamente consciente de que estou cheio de não vale a pena, de não te rales, de deixa correr. É um estado de espírito esquisito, algo fora do normal. Pois se até as horas que vão correndo, os dias, me não cansam na espera! Indiferente, ao ponto … (cala-te que é melhor, Manel, porque pode doer-te muito).
Escrever-te porque estás aflita sem notícias minhas, escrever-te porque te vejo aflita com o caminho que levam as nossas relações, será só isto o porquê de pegar nestas folhas, enchê-las e enviar-tas? Não, não é. Amo-te, penso eu. Está com certeza aqui a razão por que te escrevo. No “penso eu” vai o tal indiferentismo que me rodeia. Este indiferentismo crítico que me leva a julgar que se chegasse à conclusão de que te não amava ou de que me não amavas, levaria tudo com o mesmo à vontade, a mesma inconsciência com que pego num cigarro e o acendo.
Talvez te esteja a fazer sofrer com estas minhas palavras. A criar em ti a dúvida quanto aos sentimentos que te dedico. Esta vida é toda tão chata, tão pateta, tão fedorenta, tão nada! Isto é tudo tão nada, tão nada, tão nada! Quem sabe se nós não seremos mesmo nada?!?

Foto 2. © Manuel Joaquim > Mansabá, Dezembro/1966 > “ Esta vida é toda tão chata, tão pateta, tão fedorenta, tão nada!”

Apetece-me gritar que me deixem, todos! Apetece-me clamar que desejo viver sozinho, picar-me, doer-me, rir, brincar, chorar, cantar sem que incomode os outros, acamaradando com a natureza, com a inconsciência dos seres não humanos.
O meu estado psíquico não é de molde a dar-te alegria. Pelo que disse atrás tirarás a conclusão. Apesar de querer alegrar-te. Apesar de eu querer estar contigo, apesar de eu querer possuir-te, apesar de eu te querer, apesar de eu te amar.
E é mesmo, minha querida. Não vou dizer mais nada. Porque estou mesmo sem saber o que te hei-de dizer.
Calo-me e calo-te (?) com muitos e muitos beijos.
Amorosamente, sou o teu M.
____________

Nota do editor

Último poste da série de 28 de janeiro de 2015 > Guiné 63/74 - P14199: Cartas de amor e guerra (Manuel Joaquim, ex-fur mil, arm pes inf, CCAÇ 1419, Bissau, Bissorã e Mansabá, 1965/67) (18): Férias

9 comentários:

Carlos Vinhal disse...

Hoje o Manuel Joaquim publica uma única carta de amor e guerra, curta ainda por cima. Mas, ao escrever que não tem nada para dizer, diz tanto que, acho só nós os que estivemos "lá" e elas, as que estiveram "cá", percebem.
Quantas vezes tínhamos tanto para contar mas não escrevíamos para não inquietar quem nos iria ler. Por "cá", elas também tinham os seus problemas e continham-se.
As cartas e os aerogramas eram afinal quase só uma prova de vida. Mesmo quando não tínhamos nada para dizer além de estou vivo, por acaso. O meu camarada, por acaso, não, mas isso não te conto.
Carlos Vinhal
Leça da Palmeira

Luís Graça disse...

Depressão... Quem não passou, naquela terra e naquela guerra, pro momentos de depressão ? Negação, denegação, angústia, vazio...

Manel, tiveste a grande sorte de ter alguém que velava por ti, rezava por ti, que te escrevia e que lia as tuas cartas... Todos passámos por momentos muito difíceis, agravados pelo sentimento de alienação e exaustão física e emocional... Tu pudeste partilhar isso com alguém, uma mulher, que te amava, e que é hoje a tua copmpanheira e a mãe dos teus filhos... (Um grande beijinho para ela!)

E escrevias, Manel, o que só fez bem à tua sanidade mental... Eu também escrevia, mas era só para mim, nem as cartas, com mais raiva, consegui pôr no correio... Tinha medo de comprometer os amigos...

Escrevias e dás-nos agora o privilégio de partilhar essas cartas connosco... São documentos de uma época. Daqui a 50 anos vais ser citado por investigadores, historiadores...

Fraca consolação ? Pelo contrário, os teus vindouros vão ter orgulho em ti... Não tenho a tua coragem de publicar no blogue muito do que escrevi no meu "diário de um tuga"...

Hoje sorrio, ao reler certas merdas intelectualoides que escrevia... Transcrevo, ao acaso, um das folhas soltas que por aqui andam, no meu "arquivo morto":

Janeiro 8 [1971]

Às seis da manhã faz frio, e apesar do meu blusão de cabedal, o cacimbo penetra-me até aos alvéolos pulmonares como um gás letal.

Debaixo de uma árvore calcinada leio Henry Miller, a arma ao lado. Numa manhã de janeiro, algures na Guiné, enquanto homens e máquinas abrem uma estrada que provavelmente não conduzirá a parte nenhuma... [referência à nova estrada Bambadinca-Xime, em construção, a cargo da TECNIL, e a cujos trabalhos fazáimos segurança]...

A tua escrita tem outra autenticidade. E dou-te os parabéns por teres, desta vez, transcrito a carta na íntegra ou quase...

Força, continua...

Anónimo disse...

O Manuel Joaquim merece a nota máxima, entre todos nós, pela coragem...a coragem de expor, perante os seus camaradas, um aspecto tão íntimo da sua vida, enquanto combatente na Guiné. Na verdade uma faceta muito importante da vida de um combatente - a sua relação com a família ou pessoas muito queridas.
Este é um grande contributo para a história da guerra do ultramar.
Um abração
Carvalho de Mampatá

Luís Graça disse...

António, de Mampatá e de Gondomar!...


Muitos de nós, ex-combatentes, têm uma tremenda carga em cima das costas que vai fazer com que o nosso caixão corra o risco de vir a pesar muito mais do que devia...

Fizemos a puta da guerra que nós não escolhemos, fizemos a paz, fizemos o 25 de abril, ajudamos a construir um outro país, ajudámos as nossas mulheres a despirem o maldito preto do luto, do fado e da desgraça, ajudámos a "parir" novos países lusófonos...

E não vamos, camaradas, agora discutir se o "parto" foi distócico, porra!, somos hoje 250 milhões de falantes da língua portuguesa, ainda não percebemos a importância estratégica que isso tem para o nosso futuro comum!.. E ainda andamos, alguns de nós, com ar miserável, masoquista, a chafurdar na merda da descolonização e a lamber as feridas do passado!...

Tudo isto para dizer algo que gostaria que fosse óbvio, que um país, um povo, com mil anos de história e de identidade, como o nosso, tem que ter futuro!...

Da minha parte, e retomando o fio condutor do meu comentário inicial, eu não quero que o meu caixão seja tão pesado que os meus filhos e netos não o possam levar, dois de cada lado... Não quero que o meu caixão seja pesado para ass gerações futuras!...

Por outras palavras, quero ter esperança no futuro de todos nós... E quero ter esperança hoje, não amanhã!...

Dito isto, as cartas de amor e guerra do Manuel Joaquim à sua amada, Deonilde de Jesus, são das coisas mais lindas que temos publicado no nosso blogue... E dão-me orgulho por ter posto o meu modesto blogue ao "serviço" dos meus camaradas da Guiné...

Ao mesmo tempo, dão-me orgulho por pertencer a "esta minha gente"...

Sou português, cidadão do mundo, e acredito no meu país e no meu povo... E, quando morrer, camaradas, quero que o meu caixão - volto a repetir - vá leve, levezinho...

Tenho sonhos verde-rubros, camaradas!

Bispo1419 disse...

Meu caro Luís Graça,

Muito obrigado pelas tuas palavras e pelo incentivo que elas me trazem para continuar nesta tarefa.

Sim, desta vez houve transcrição integral de uma carta. Só lhe falta o "anel" de "Manel", a sua última palavra.

Este trabalho de transcrição não é fácil, há sempre alguma incomodidade pessoal na exposição de certas ideias e conceitos, agravada pelo "medo" de os leitores poderem fazer uma ideia errada sobre os respectivos correspondentes, eu e minha esposa, julgando-nos hoje através das nossas ideias e opiniões de há 50 anos atrás. Temos suplantado este medo, até agora.

Está também sempre presente a insegurança quanto ao interesse que muitos dos parágrafos das cartas poderão ter para os leitores deste blogue. As transcrições resultam, assim, da minha opinião sobre o seu valor documental. Normalmente, tudo o que considero "palha" é cortado, apesar de ter plena consciência de que é na "palha da História" que muitas vezes se descobre o fio da meada.
Talvez erradamente, penso assim facilitar a leitura e compreensão das cartas mas sei que o seu possível valor documental está dependente da conservação integral dos seus textos.

Cá irei continuar neste trabalho, convicto de não me pertencer a sua avaliação quanto ao seu interesse documental mas não menosprezando o seu interesse histórico futuro, sempre possível.

Um grande abraço, com a amizade do

Manuel Joaquim

Anónimo disse...



Amigo Manuel Joaquim:

A ti que te reconheço pela procura da verdade e autenticidade pouco mais poderei acrescentar ao que escreveram os nossos ilustre camaradas, Carlos Vinhal, Luís Graça e o Carvalho de Mampatá, que tenho a honra de conhecer pessoalmente.
Sobre essa tua carta, acho, sem querer entrar em especulações sentimentais ou exístenciais, que não me dizem respeito, que nos dá o retrato fiel de ontem e de hoje da tua honestidade humana e intelectual.
" Fui para Mansabá, os restantes 7 meses, já sonâmbulo e desinteressado
dos movimentos da Terra, contente com o cheiro e o calor dessa África,
que embala os homens como meninos, quando querem dormir."
Falando da minha ausência de relações femininas, físicas ou epistolares,da ausência de relações sociais de qualquer tipo, escrevi isto recentemente, pelo que compreendo bem o teu desligar o teu abandono, o grito dos apanhados do clima, "tirem-me daqui" só faltará acrescentar, (ninguém o dizia) "ou deixem-me morrer em paz".
Um grande abraço

Francisco Baptista

A. Murta disse...

Camaradas.
Ainda sobre o estado de espírito, o desespero, as tais "provas de vida" de que fala o Carlos Vinhal e a falta delas, enfim...
Eu estava há pouco mais de dez dias no meu sector, e tudo já se me afigurava insuportável, tal foi a reviravolta que deram ao que estava para ser a nossa intervenção. Escrevo para a minha namorada em 10-05-1973: «(...) Ultimamente ando com os nervos arrasados não sei por quê - não saberia? - e só me apetecia deitar abaixo, de uma vez para sempre, esta merda aqui e essa merda aí e toda a merda entre aí e aqui» Deixei de escrever. A ela e aos meus pais. Muito mais tarde, foi o Camarada Vasco da Gama, - a quem ainda hoje devo a maior gratidão, - que, num regresso de férias, (em que foi procurado pelo meu pai em Buarcos), me deu uma grande descompostura à chegada a Nhala e me despertou da injusta e ingrata atitude para com os meus.
Na verdade, foi uma altura em que tanto me "doíam" as cartas recebidas com notícias alegres como as carregavam lamentos e queixas. Refiz-me dessa crise mas ficaram sequelas. Tudo o que passámos tinha que ter um preço, e eu paguei o meu.
A. Murta.

Anónimo disse...

O que diz o Murta "obriga-me" a narrar o caso (case study) de um furriel de Nhala, destacado em Mampatá com o seu pelotão em reforço da segurança aos trabalhos da estrada Mampatá/Nhacobá. Ora, esse furriel, já falecido, meu grande amigo, após a leitura de mais um aerograma da família, autenticamente endiabrado com o os recados que lhe mandavam da terra, decide que não voltaria a escrever à família e prosseguia: Carvalho ! a minha gente pensa que eu estou aqui de férias, eles dizem-me o que tenho que fazer quando regressar...! eles não sabem que cada dia que aqui passo pode ser o último !? Mas eu também não lhes posso contar a verdade!
Este era o drama de muitos de nós, drama recorrente nas guerras.
Hoje, alguns, com saudade da sua juventude, dão-nos uma visão muito mitigada do que foi aquilo, contribuindo deste modo, para alguma distorção da realidade. Uma vez por todas: aquela guerra era fruto da irracionalidade, da injustiça, e da imbecilidade.
Um abração
Carvalho de Mampatá.

Hélder Valério disse...

Caro Manuel Joaquim

É claro que isto que hoje nos dás a conhecer tem a "carga" de ser uma carta que escreveste à tua mulher de hoje (e de sempre) e isso pode ter algo de constrangedor, por estar a entrar, por assim dizer, na intimidade das vossas relações.

No entanto, o cerne da questão é mesmo o que ela revela de 'estado de espírito' e isso podia ser revelado num qualquer outro tipo de documento, por exemplo num qualquer texto de reflexão, em abstracto, mas isso iria perder em autenticidade.

Por isso, agradecendo o teu sacrifício dessa exposição (e da tua mulher, claro), agradeço também que tenhas podido 'lançar cá para fora' essas angústias que te assolaram.
É que nesse aspecto não foste caso único! Apenas ou não verbalizaram ou calaram.

Por alguns destes comentários confirma-se o que digo e acrescento que eu próprio também passei por 'ondas de humor' semelhantes, resultantes de ter que lidar com tantas contradições... depois os amigos, familiares e namorada é que sofriam as consequências dessas situações!

Obrigado, Manel!

Hélder S.