sexta-feira, 5 de junho de 2015

Guiné 63/74 - P14701: (Ex)citações (275): Hospitalidade, brejeirice e ... instinto de sobrevivência das mulheres e bajudas fulas de Nhala, na receção aos "periquitos", em 29/4/1973 (António Murta, ex-alf mil inf MA, 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513, Aldeia Formosa, Nhala e Buba, 1973/74)



Vídeo (1' 02'' ). Alojado em You Tube > ADBissau
(Cortesia do nosso saudoso Pepito, 1949-2014. Gravação feita em Gadamael Porto, em setembro de 2013, cinco meses antes de morrer)



Vídeo (0' 44'' ). Alojado em You Tube > ADBissau 

(Cortesia do nosso saudoso Pepito, 1949-2014. Gravação feita em Gadamael Porto, em setembro de 2013, cinco meses antes de morrer)


1. Excerto do poste P14691 (*), da autoria do nosso camarada António Murta, ex-alf mil inf MA, 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (Aldeia Formosa, Nhala e Buba, 1973/74) [foto à esquerda]

(...) À chegada da coluna a Nhala, e ainda antes de termos descido das viaturas, num ápice, formou-se uma pequena multidão vinda da tabanca, sobretudo mulheres e crianças, que nos receberam com palmas, cânticos, enfim..., se não em apoteose, pelo menos com grande euforia.

Fiquei entre contente e surpreso, a achar tudo um bocado exagerado. Seria sempre assim? Não foi preciso passarem muitos dias para ter uma explicação, plausível, para aquele acolhimento tão efusivo.

E cantavam acompanhando com palmas:

Periquito vai pró mato / Ó lé, lé, lé!, Velhice vai no Bissau / Ó lé-lé – lé-lé!. 

Esta cantilena, soube depois, era conhecida em quase todo o território da Guiné (**). E eram-lhe acrescentados outros versos, que só aprendi mais tarde, muito brejeiros e, pareceu-me, ao sabor da inspiração do momento:

"Mulher grande cá tem cabaço, / Ó lé, lé, lé! / Bajuda tem manga dele / Ó lé-lé – lé-lé"
"Mulher grande cá tem catota, / Ó lé, lé, lé! / Bajuda tem manga dela / Ó lé-lé – lé-lé"


E voltavam ao princípio com o Periquito vai pró mato, etc. etc. (...)

A população de Nhala é Fula. Os adultos parecem muito indiferentes em relação a nós, ou mesmo frios. Dependem muito da tropa, mas estão fartos de tropa. As mulheres e as bajudas atravessam o aquartelamento para se deslocarem à fonte que fica a pequena distância, num baixio. Está sempre alguém a passar para um lado e para o outro com bacias à cabeça e com a roupa que nos lavam. (...)

As bajudas, algumas bonitas, e toda a criançada são uma simpatia. É contagiante a alegria delas e um bálsamo para a nossa saúde mental. Ainda assim, como já disse, os “velhinhos” de Nhala parece que já não beneficiam desse bálsamo. Aproveitando as recomendações deles, vamos escolhendo as nossas lavadeiras. A oferta é grande, de modo que se fazem “contratações” despreocupadamente.

E em matéria de sexo, como é? Já em Bolama aprendemos que há lavadeiras “que lavam tudo” por pouco mais que a mensalidade da roupa lavada. «Desiludam-se!». As fulas são muito reservadas e pouco permissivas.

Contam-nos um caso ou outro de envolvimento com militares, mas excepcionais e por questões de afecto. A tropa em geral vai brincando, mais ou menos inocentemente, com as bajudas mais velhitas, mas sem consequências nem gravidade. De vez em quando, por ocasião da entrega da roupa lavada aos soldados, lá vem uma delas fazer queixa:
- Alfero, o soldado Manel do teu pelotão apalpou minha mama!

E eu perguntava:
- Ai, sim? E não lhe deste uma estalada?

E estava o caso resolvido. (...) (***)

2. Comentário do editor LG:

A propósito da conferência “Filhos da guerra”, no âmbito do Festival Rotas & Rituais (Lisboa, Cinema São Jorge, 22 de maio de 2015), tomei nota no meu canhenho:

 “Temos dificuldade em abordar em público este problema, o das nossas relações com as mulheres guineenses no tempo da guerra colonial. Pior ainda, num público feminino ( e senão mesmo feminista), português e africano, ou de origem africana… Somos, os homens, facilmente “suspeitos de cumplicidade” uns com os outros… Os homens são todos iguais, em toda a parte, defendem-se uns aos outros, dizem elas…

"A intervenção, longa e incisiva,  do Jorge Cabral, em tempo de debate, acabou por provocar algum sururu na sala. Disse ele, em síntese:

- Defenderei até à morte a honra do soldiado português na Guiné. Nós não eramos  nenhum emprenhadores compulsivos. Mais: atrevo-me a dizer que 80% a 90% dos soldados portugueses na Guiné não tiveram quaisquer relações sexuais com mulheres africanos… E se querem falar de prostituição organizada (que no meu tempo praticamente se restringia a Bissau e, em pequena escala, a Bafatá), pois tenho a dizer que é muito maior hoje, só na capital da Guiné-Bissau, do que no meu tempo"…
__________

Notas do editor:


7 comentários:

Luís Graça disse...

António,

Obrigado por estas tuas finas e oportunas observações... Temos, alguns de nós, tendência para ver o mundo a "preto e branco" ou fazer generalizações abusivas... Nem todas as lavadeiras "lavavam tudo", nem todos nós procuravam obter favores sexuais a partir de uma posição de força (baseada no dinheiro, na autoridade, no posto, na cor da pele...).

Em contrapartida, é verdade é que o pouco crioulo que os soldados aprendiam giravam muito à volta do sexo: "partir catota", "cá tem cabaço", "parte punho"...

Cherno AB disse...

Caros amigos,

O Luis Graca reproduz aqui so uma parte do texto original de Antonio Murta, onde na sua parte final, aparece a seguinte frase:

"Era a forma deles colherem as simpatias da nova tropa, de quem iriam depender no futuro. Disse, ainda, que já conhecia a “receita” de experiências anteriores, para além das suas alianças interesseiras. Já não precisavam dos “velhinhos” que estavam de saída! Era uma opinião. Que carecia de confirmação. Mas, a ser assim, estava explicada a calorosa recepção que nos fizeram no dia da nossa chegada a Nhala."

Primeiro quero dizer que a alegria de acolher estrangeiros na nossa terra faz parte integrante da nossa educacao, da nossa cultura africana e da nossa filosofia de ser e estar, ontem e hoje, ainda, independentemente dos interesses que estiverem em jogo.

Quanto as Aliancas "interesseiras" pode-se dizer que os fulas nao eram a excepcao, pois que os proprios portugueses atraves do regime que sustentavam nao faziam outra coisa ha seculos, no intuito de conservar um pretenso direito de posse dos seus territorios ultramarinos.

A manifestacao de simpatia pelos "piriquitos" e a rejeicao dos "velhinhos" pode encontrar justificacao, entre outras motivacoes, primeiro pelas dificuldades de entendimento reciproco e, em Segundo lugar, devido a alguns atropelos e actos menos abonatorios em ligacao com a tropa como por ex: casos de desaparecimentos sistematicos de gado (ovino e caprino) das povoacoes mais proximas dos quarteis. Ha pouco tempo, um meu amigo, antigo combatente portugues em Fajonquito (1972/74), confessou-me que roubavam regularmente os nossos animais (ovelhas e cabras) para colmatar a insuficiencia de boa comida no quartel.


Sobre a dependencia, gostaria de saber que tipo de dependencia se tratava, pois nao devemos perder de vista que os fulas eram muculmanos e nessa qualidade tinham muitas reservas quanto aos produtos alimentares consumidos pelos soldados metropolitanos por razoes de ordem religiosa.De resto, nao me parece que houvesse assim tanta comida nos quarteis a ponto de criar uma dependencia assim tao forte.

O 'patacao' ganho pelas lavadeiras era insignificante se comparado com as necessidades reais de sobrevivencia das familias ou poupulacoes locais em qualquer cidade ou aldeia da Guine onde havia tropas estacionadas.

Portanto acho que existem preconceitos nao superados e falacias na leitura de algumas atitudes e comportamentos da populacao em relacao a tropa, neste caso em concreto.



Um abraco amigo,

Cherno AB

PS:/ CARO LUIS,

Ontem cruzei-me, inesperadamente, com a Jornalista Catarina Gomes na praca de Bissau velho, ao lado da Amura, quando ia a caminho da Conservatoria de Bissau onde tinha um encontro com elementos da Associacao "Filhos de Tugas".

manuel amaro disse...


Pois, pois...
Nem tanto ao mar, nem tanto à terra...
No meio termo é que está a virtude...
Com um ano de Quebo (Aldeia Formosa) e outro de Nhala, Enfermeiro e Professor, creio que terei conhecido, como poucos, o modo de vida e de relacionamento daquelas Comunidades com os militares.
Também conheci, de passagem, mas mais que suficiente para ter opinião, Buba, Nhacra, Cumeré, Dugal, Safim e João Landim.
Não sou apostador, mas se fosse, apostaria em como Nhala foi mesmo um exemplo de bom relacionamento. E este BOM abrange todos os ângulos de análise, do Murta e do Cherno.

Um abraço

Luís Graça disse...

Mail acabado de enviar a toda a Tabanca Grande:

Amigos e camaradas: Nunca serás de mais debruçarmo-nos sobre temas delicados como o dos nossos relacionamentos com a população local, e em especial as mulheres e as bajudas...

A 40/50 anos de distância, não é fácil ter uma visão objetiva, isenta, imparcial... Não podemos ser (nem queremos ser) juízes em causa própria... Falamos de "casos" que conhecemos ou vivemos... Mas nunca podemos generalizar... É bom que desafiemos a memória e contemos as nossas histórias com honestidade intelectual, sem cair no "historicamente correto"... Temos um fim de semana para acrescentar comentários a este poste, P14701...

Um abração a todos/as.

A. Murta disse...

Caríssimo Cherno.

Tens razão nalgumas observações que fazes, sobretudo no respeitante a alguns preconceitos e falacias e, até, em relação aos "desvios", sobretudo dos caprinos que também aconteciam em Nhala. Mas casos de racismo nunca tivemos.
Todavia, tenho que fazer um reparo e um esclarecimento. O texto que transcreves, embora com palavras minhas, traduz fielmente uma queixa e um desabafo de quem já tinha uma longa convivência com a população. A seguir, no texto, eu é que digo: "Era uma opinião. Que carecia de confirmação". Posso agora acrescentar que, salvo um incidente ou outro, (por exemplo, uma exigência de transporte imediato para a colheita que estava na bolanha), não tivemos razões de queixa que me lembrem.

O esclarecimento é sobre as tuas dúvidas quanto à dependência que, reconheço, não era sempre vital, era assim como diz o camarada Manuel Amaro: no meio termo. E não dizia tanto respeito à alimentação, embora as crianças andassem sempre de tacho na mão à hora das refeições da tropa. No entanto, dependiam das viaturas da tropa após as colheitas maiores nas bolanhas, sempre que apanhavam caça grossa que evitavam desmanchar no mato, sempre que precisavam de boleia, ou quando cortavam árvores para construir uma habitação. Mais importante, em caso de acidente grave (vi um tão feio!) ou um parto em perigo, era pedido apoio aéreo (para Buba) como se pediria para qualquer militar. Conheci dois casos que pareciam irremediáveis e que foram resolvidos com sucesso no hospital de Bissau. Haveriam outras situações, mas vou citar só mais uma: houve na tabanca de Nhala um incêndio aterrador que, lá mais para diante, irei mostrar aqui no nosso Blogue. Embora não se tenham conseguido salvar algumas das tabancas (palhotas?), foi com bombas de água da tropa e com todo o pessoal empenhado, orientado pelo nosso capitão, que se evitou uma tragédia. São alguns exemplos.

Em certa medida também dependíamos deles: dos guias competentes, da caça que nos traziam (sempre escassa), das lavadeiras, de alguma fruta e dos afectos que nos ofereciam.

Foi um gosto responder-te, caro Cherno.
Um grande abraço.
António Murta.

Juvenal Amado disse...

A população de Nhala é Fula. Os adultos parecem muito indiferentes em relação a nós, ou mesmo frios. Dependem muito da tropa, mas estão fartos de tropa.

Pois amigo Murta fazes vários reparos com os quais estou particularmente de acordo.
Em Galomaro-Cossé também a população era na sua esmagadora maioria Fula embora houvesse Mandigas praticamente assimilados e alguns manjacos. Também aí as lavandeiras só lavavam a roupa excepto num caso ou noutro, em que ouve partilha de sentimentos ainda que datados no tempo.
Está claro que quando queriam mais alguma coisa as bajudas sabiam ser sedutoras, fazerem-se mais desejáveis, mas pouco ou nada se avançava para além de uns apalpões e um toca e foge.
Conheci um caso próximo de um soldado ter tido um caso com uma mulher grande com a conivência mais ao menos do marido. O caso passou-se durante a reconstrução e ordenamento de aldeamento, que tinha sido destruído por um ataque. Desse relacionamento nasceu uma menina infelizmente morta pela demora que levaram a pedir ajuda ao quartel. Eu via e também vi a consternação do enfermeiro Catroga quando ma mostrou. O pai também estava bastante consternado, pois já havia contado à família a situação e estava firmemente decidido, a não a deixar lá ficar. Aliás praticamente todos mais chegados sabiam disso.

Possivelmente outros casos houve que não chegaram a tanto, mas nunca se pode considerar que isto aconteceu de forma generalizada, pois a sociedade Fula é bastante patriarcal e conservadora.

No entanto é sempre de lamentar os filhos que por lá ficaram esquecidos sejam muitos sejam poucos.

Cherno AB disse...

Amigo A. Murta,

Com este teu esclarecimento, estamos entendidos e concordo plenamente. De facto, em relacao a logistica a dependencia era completa, pois na altura nao existiam outras alternativas, para diminuir as distancias e o peso do trabalho fisico.

Contudo, a minha intervencao nao tem por objectivo inibir quem quer que seja de falar ou escrever, da sua opiniao, sobre os fulas, desde que seja feito com a necessaria honestidade intelectual que o Luis Graca referiu e dentro do respeito pela dignidade desse povo.

De resto, tenho acompanhado com muito interesse os seus apontamentos em relacao aos quais, tambem, quero encorajar a sua continuacao ate ao fim pois eh muito normal que os leitores do blogue concordem ou nao com o conteudo das publicacoes e queiram fazer observacoes porque eh isso que o enriquece e o faz diferente de muitos outros.

Um abraco amigo,

Cherno AB