terça-feira, 4 de agosto de 2015

Guiné 63/74 - P14971: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (14): De 15 a 18 de Junho de 1973

1. Em mensagem do dia 30 de Julho de 2015, o nosso camarada António Murta, ex-Alf Mil Inf.ª Minas e Armadilhas da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (Aldeia Formosa, Nhala e Buba, 1973/74), enviou-nos mais uma página do seu Caderno de Memórias.


CADERNO DE MEMÓRIAS
A. MURTA – GUINÉ, 1973-74 

14 - De 15 a 18 de Junho de 1973

Da História da Unidade BCAÇ 4513:

JUN73/15 – Apresentou-se em Aldeia Formosa 1 elemento IN armado com metralhadora ligeira DEGTYAREV, chamado NHONA NBANA. Pertencia ao bigrupo de KANSEMBEL desde OUT72, depois de ter regressado da RÚSSIA. Revelou outros elementos de interesse.
- A sub-base da estrada CUMBIJÃ-NHACOBÁ atingiu hoje esta última localidade.

Do meu diário:

15 de Junho de 1973 – (sexta-feira) – Aldeia Formosa; Ida a Buba e regresso com dilúvio.
A missão de hoje foi escoltar a coluna na ida a Buba para trazer géneros.
À passagem por Nhala verifiquei que o temporal de ontem à noite fez ali bastantes estragos, não poupando uns quantos telhados de zinco e abatendo a frontaria da minha miserável tabanca.
[Pelos vistos, nesta época ainda não tínhamos em Nhala quarto para oficiais “periquitos”].
Soube pelo camarada C. L., que ali se encontra a substituir o Cap. B. da C., que alguns soldados tiveram perturbações mentais ao presenciarem o temporal. Houve um soldado socorrido que esteve longo tempo sem dizer nada com nexo, nem reconhecer as pessoas. Tal foi a visão nocturna dos relâmpagos que, com estrondo, rasgaram o dilúvio tocado a vento.

À chegada a Buba, a primeira coisa que logo à entrada me chamou a atenção, foi o estado em que se encontrava o telhado da escola local: saltou do lugar juntamente com a estrutura como se fosse um chapéu de palha e ficou no chão apoiado a uma das paredes. Como sempre, de cada vez que vou a Buba, fico com horríveis dores de cabeça, não sei se pelo nervosismo e irritação que me provoca a confusão dos carregamentos das viaturas, se pela desgastante viagem nas picadas em péssimo estado, percorrendo aos saltos na viatura, cerca de 30 quilómetros.

Demorámos ali muito tempo no carregamento de enormes caixas, algumas das quais com 900 kg. Para as fazer carregar nas Berliet, tivemos que esperar que a maré baixasse, para as viaturas poderem descer ao leito do rio e ficarem num plano inferior ao cais. Depois, através de pranchas de ferro, as caixas deslizaram seguras pelo cabo do guincho de outra Berliet colocada no lado oposto do cais, também no leito do rio.

Não há memória da saída duma coluna tão tarde de Buba, sujeita aos perigos que acarreta aquele trajecto à noite. Mesmo sem ataques. Passámos em Nhala ainda de dia, mas alguns quilómetros antes de Mampatá, já era noite fechada, com a agravante de sermos apanhados por mais um temporal. Quase de repente, o céu ficou completamente negro, iluminado, a espaços, pelos frequentes e longos clarões dos relâmpagos. A chuva não tardou e as grossas bátegas magoavam-nos a cara. Servimo-nos de algumas chapas de zinco que carregávamos na nossa viatura (porque o condutor ainda não tinha colocado a capota de lona) mas, apesar disso, não conseguimos evitar uma bela molha, gelada e abundante. A água ia já alta na picada, parecia um rio, e chegava a ser belo o efeito produzido pela luz amarela dos faróis projectada na barreira de água que os rodados levantavam, vendo-se, ainda, através dela, os farolins vermelhos da viatura da frente. Uma fonte luminosa em movimento com metro e meio de altura.
[Percebo a ênfase dada a tão singelo fenómeno, porque ainda hoje o recordo com invulgar nitidez].

Chegados a Aldeia Formosa, deixámos as viaturas para serem descarregadas amanhã.

16 de Junho de 1973 – (sábado) – Aldeia Formosa; Descanso.
Hoje, outra vez de descanso. É dia-sim, dia-não. Nada de especial a anotar.

Aldeia Formosa. Formosa, só se for pelos hibiscos à entrada do Comando...

Aldeia Formosa a cores. E eu também.

Aldeia Formosa cinzenta. Como eu...

17 de Junho de 1973 – (domingo) – Aldeia Formosa; O Pata Grande.

Saída da minha Companhia completa para protecção às obras da estrada. Eu fiquei com o grupo emboscado junto a uma “pedreira”, na zona de Cumbijã, onde ainda se tira terra para cobrir o piso da estrada em determinado sítio. Na “frente” nada de especial e, lá atrás, também não. “A Oeste nada de novo”. Para passar o tempo, entretenho-me a observar as formigas e a bicharada rastejante. Mesmo na berma da estrada está a nascer um bagabaga. Para já, não passa de um montículo com mais ou menos um centímetro cúbico. Mas cada vez são mais as formigas que chegam, incansáveis, com uma pequena baga de argila ainda húmida presa nas mandíbulas. Depõem a baga no montículo e desaparecem por entre o capim e as ervas, com a mesma pressa com que chegaram. Só que o local não é viável e toda esta canseira será em vão. Onde é que já se viu um bagabaga quase encostado ao alcatrão? Como lamento não ter aqui com que fotografar! De vez em quando, mando o cabo das transmissões fazer uma chamada para quebrar a monotonia.
Já depois de ter chegado a Aldeia Formosa, cerca das 16 horas e picos, soube que o meu camarada J. A. T. da 1.ª CCAÇ de Buba e, como eu, especialista de minas e armadilhas, levantou uma mina A/C (anticarro), bem perto do local onde estive todo o dia, mas para o lado de Nhacobá. Como ele previa, estava armadilhada e levou-lhe cerca de uma hora a levantar. Pelo requinte da maldade, adivinha-se o autor.
Temos, portanto, o Pata Grande & Cª. a meter-se connosco. De futuro a coisa vai ser mais delicada.


Da História da Unidade do BCAÇ 4513:

Jun73/18 – S. Ex.ª GENERAL CMDT CHEFE ANTÓNIO SPÍNOLA acompanhado da REPOPER visitou A. FORMOSA. Com o Exmº. MAJOR D. M. DESLOCOU-SE a NHACOBÁ e CUMBIJÃ. Graduou em Alferes o Fur. Mil. VIEIRA da CCAV 8351.

- Às 9h30 grupo IN não estimado flagelou durante 10 minutos da direcção S-SW com cerca de 50 granadas de morteiro 82 e RPG-2 as NT instaladas em NHACOBÁ na protecção aos trabalhos de Engenharia, sem consequências.

- Às 10h45 1 máquina de Engenharia D-7 accionou em NHACOBÁ 1 mina anticarro IN sofrendo danos graves.

- Pelas 11h15 a CCART 6250 detectou e levantou em NHACOBÁ 1 mina antipessoal IN PMD-44.

Do meu diário:

18 de Junho de 1973 – (segunda-feira) – A. Formosa; Dia de descanso; Visita do Gen. Spínola.

Hoje levantei-me acossado pela curiosidade: estava a acordar quando ouvi chegar à pista dois helicópteros. Como logo calculei, um deles trazia o “Caco-Baldé”, que vinha certamente avaliar o ponto da situação. Esteve aqui breves instantes e dirigiu-se depois para Nhacobá, pilotando ele próprio o helicóptero. Chegou ali algum tempo depois de ter havido um ataque, sem consequências, à Companhia que estava a chegar para proteger as máquinas que agora, ao que dizem, estão a preparar o terreno para se montar ali um destacamento. A curta distância do local em que o general se encontrava com alguns indivíduos, rebentou uma mina sob as lagartas duma das máquinas que, embora não ficasse impossibilitada de trabalhar, sofreu alguns danos. Esta manhã ainda foi levantada ali mais uma mina antipessoal.

Entretanto, aqui em Aldeia Formosa chegaram a juntar-se na pista três avionetas civis, não sei ao certo para que efeito, mas devem ter sido fretadas por militares, pois o avião militar que aqui costuma vir, não apareceu. Foi cedo ainda que o Gen. Spínola partiu para Bissau, passando de novo por aqui.

À tarde o Cap. de Operações J. A. C. chamou-me para ir ver a mina A/C levantada ontem pelo Alf. T., a fim de saber a minha opinião. Tratava-se de um modelo relativamente recente, embora eu o conhecesse, mas equipado com um dispositivo anti levantamento. Ainda no Gabinete de Operações apreciei, junto à mina, uma belíssima metralhadora de tambor, que foi trazida há dias por um elemento do PAIGC que se entregou com todo o equipamento.

Ultimamente têm-se ouvido uns boatos, ao que parece não descabidos, de que o meu Batalhão irá sair daqui de Aldeia para Cumbijã, deixando duas companhias em Nhacobá. Para aqui viria um Batalhão que está a chegar a Bolama para fazer a IAO, saído há pouco da Metrópole. Entretanto, o Batalhão que nós viemos render, só irá embora em Setembro, facto que tem desorientado e revoltado quase toda a gente, pois que assim, irão para a Metrópole depois de uma comissão de 27 ou 28 meses, quando o normal são 23.

Há outros boatos quanto à colocação do meu Batalhão depois de sair daqui, mas o que é certo, é que tanto uns como outros são bastante perturbadores, pois que, para além de uma exposição permanente a ataques nesses locais aventados, é sabido que voltaremos a não ter as mínimas condições de vida. (...).
[Segue-se uma série de lamentos que prefiro não transcrever e que só revelam ingenuidade e ignorância das verdadeiras agruras que ainda estavam para vir].

(continua)

Texto e fotos: © António Murta
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Nota do editor

Último poste da série de 28 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14940: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (13): 9 a 14 de Junho de 1973, com baptismo de fogo a 13

2 comentários:

Anónimo disse...

A mesma estrada.
O mesmo itenerário.
Transportar 3 obuses-14 desde Buba a Aldeia Formosa +3 camiöes modelo "Matador" carregados de granadas de artilharia,(muito para além do peso de carga recomendado!)
Época das chuvas; sem pontöes.
A coluna demorou 48 horas.
Minas,fornilhos feridos e mortos.(Sem evacuacöes aéreas devido ao incrível temporal)
Noite passada na picada sob chuvas torrenciais,trovoadas e viaturas atascadas.
Ano-1969
"Nostalgias" que, nem eu nem alguns outros Camaradas deste blogue,vamos poder esquecer.

Quem entäo pensaria que,mais tarde,outros "periquitos" tal iriam passar.

Um abraco do José Belo.

Anónimo disse...

Mais um relato fiel do que se passava por aqueles lados, em 1973. Nada escapa à atenção do Murta: colunas de reabastecimento, a estação das chuvas, o movimento na pista de Aldeia, as minas anti-pessoal e anti-carro, os trabalhos da engenharia, a visita do Spínola, as incertezas sobre as movimentações das companhias e tudo o mais que ainda vai ser publicado.
Este diário é algo de muito precioso para quem quiser estudar o que foi a guerra da Guiné.

Um abração
Carvalho de Mampatá