O General Spínola foi sempre o Com-Chefe nos dois anos em que estive na Guiné. Confesso que não gostava do estilo emproado dele, de monóculo e bengalim, não sei se copiado dum antigo general inglês ou alemão.
Sobre as suas capacidades de comandante militar, não se pode negar que não desse apoio aos soldados com as suas palavras e a sua presença nas visitas frequentes aos quartéis espalhados pelo território ou mesmo às tropas em algumas operações no mato.
Uma guerra de guerrilha, a história recente do século XX, têm-nos ensinado que não se consegue vencer militarmente. Só se poderá vencer se forem criadas condições sociais e políticas que possam retirar argumentos aos defensores dessa via armada e, acrescento eu, às potencias que apoiam essa solução. Sobre a condução da guerra, do que vi e ouvi, não achei que fosse um grande estratega. A grande operação "Mar Verde" realizada sob o seu comando, planeada e comandada pessoalmente pelo Comandante Alpoim Calvão, já muito debatida no blogue, foi um enorme fiasco. Dos vários objectivos militares e políticos somente se conseguiu realizar com êxito, a libertação dos nossos camaradas presos em Conakry. Já se falou muito nela, havendo opiniões diversas e nem sempre coincidentes. A minha opinião baseia-se no testemunho que ouvi ao Tenente dos Fuzileiros Lucas, natural de Coimbra, infelizmente já falecido.
Depois dessa operação o destacamento de fuzileiros africanos que ele enquadrava, regressou a Buba, donde tinha saído, talvez um mês ou dois antes. O Lucas, um grande camarada, sempre alegre e bem disposto, o maior cómico do quartel, veio triste, cabisbaixo e horrorizado com cenas de saque e selvajaria que presenciou. Já li no blogue descrições bastante pormenorizadas que se assemelhavam muito à descrição feita por ele, pelo que me abstenho de a reproduzir.
Tenho também presente uma grande operação, planeada em Bissau, como todas as grandes operações, realizada perto de Mansabá, que duas companhias de comandos africanos fizeram largadas de helis no Morés, depois da aviação e da artilharia terem bombardeado dois dias antes a zona. A aviação com todos os aviões de guerra disponíveis e a artilharia com obuses de longo alcance transportados para o destacamento de Cutia . Após esse bombardeamento intenso, ao terceiro dia, manhã cedo, foram largadas de helis duas companhias de comandos africanos. Um major, que comandava o COP 6, em Mansabá, no rescaldo da operação foi lá de helicóptero e disse-me, no regresso ao quartel, que não viu guerrilheiros e disse-me ainda que não gostou do que viu. Não lhe fiz perguntas pois pareceu-me entender o que ele disse. Pedimos cada um o seu whisky e a conversa ficou por aí.
General Spínola
A política de Spínola em relação à população "Por uma Guiné melhor" foi inteligente, mas nada tem de original já que os manuais de contra-guerrilha, há muito tempo, ensinavam isso. Terá agradado a alguns naturais da Guiné mas não a tantos que conseguisse retirar o apoio popular suficiente que a guerrilha precisava para prosseguir o seu esforço de guerra. Também não sei se o Caco Baldé conseguia agradar à população controlada pelo inimigo. Sendo muito popular entre a tropa em geral, era impiedoso perante chefes militares seus subordinados que ousassem discordar dele e que não demonstrassem submissão perante o Chefe. Já se falou aqui do caso do Tenente-Coronel Agostinho Ferreira, um homem recto, vertical, valente e sem medo de acompanhar tropas no mato, que foi Comandante do BCAÇ 2898, a que pertenci, depois de, por castigo, lhe ter sido retirado o comando doutro batalhão. Como o caso deste tenente-coronel houve outros com ou sem motivos justificáveis.
Spínola na Guiné tinha uma corte de fiéis que o adulava e era sobretudo a esses que ele apreciava. Sendo muito popular entre os mais humildes, isto é a população indígena e os soldados, penso que era uma atitude que sendo humana seria também bastante política. O General terá pensado no poder e com o livro "Portugal e o Futuro" vai inspirar o 25 de Abril e procurar abrir espaço para impor o seu ideário político ao país e que em relação às colónias, todos o sabem, preconizava não a independência, mas uma autonomia gradual. A ideia não seria má, só me parece que a guerrilha e muitos países que os apoiavam, alguns descaradamente e outros pela calada, já não estavam para esperar mais. Era uma experiência que a marcha da história já não consentia.
O levantamento das Caldas da Rainha planeado pelos oficiais spinolistas, provavelmente os mesmos que no Quartel General em Bissau planeavam as operações, e rapidamente abortado pelas forças do regime, foi o princípio do fim do General. Tal como a operação "Mar Verde", foi uma operação falhada. Não posso deixar de ressalvar que nessa operação se conseguiu um grande objectivo, o único, a libertação dos nossos camaradas presos.
Os operacionais que fizeram o 25 de Abril deram-lhe a Presidência da República mas não lhe garantiram todo o poder que ele ambicionava. Nesse tempo o país vivia agitado por uma democracia nascente em que os partidos, em guerra verbal, procuravam atrair ou manipular os cidadãos a apoiarem as suas teses e agitavam nas ruas, sobretudo os de esquerda, multidões ruidosas que condicionavam os governos da nação.
Spínola, com um projecto de poder muito pessoal, face à confusão institucionalizada, faz um apelo dramático ao "bom povo português" que não encontra o eco que esperava, e porque a maioria dos militares também não o apoiavam, retira-se para não mais voltar à ribalta da política.
Voluntarioso tal como o General Humberto Delgado, décadas atrás, ainda procura no estrangeiro congregar forças políticas e militares, mas mesmo, o bom povo português , em que ele tinha confiado, já tinha deixado de acreditar nele. A ser o Presidente da nação que ele ambicionava, eu compará-lo-ia ao Major Sidónio Pais por um certo pendor autoritário e por alguma demagogia popular (bom povo português!) . Dada a diferença de idades entre um e o outro, faltou-lhe o élan e o carisma entusiástico da juventude do Major Sidónio Pais ou até do General Humberto Delgado.
Este texto, que procura corresponder a uma ideia lançada pelo grande camarada Luís Graça, escrevi-o também para "calar" dois amigos nossos, o José Dinis, mais conhecido por JD, e o Carlos Vinhal, quando nos encontrámos há cerca de quinze dias, na companhia dum primo do J.D. e da esposa, ambos muito simpáticos, num café em Leça da Palmeira, não para resolver a situação complicada do país, mas para beber umas águas e cavaquear um pouco.
Um abraço a todos.
Francisco Baptista
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Nota do editor
Último poste da série de 30 de outubro de 2015 > Guiné 63/74 - P15305: Inquérito "on line" (13): Os três Comandantes da Guiné (Mário Vitorino Gaspar)
9 comentários:
Bom dia Francisco,
Cordiais saudações.
O monóculo de S. Exa., provavelmente, foi copiado de algum General Prussiano,já que ele,um Germanófilo,foi observador junto ao exército Alemão na frente russa.
"Se non è vero, è ben trovato".
Forte abraço.
VP
Francisco, gostei de ler o teu texto... Sempre o tratei, nos meus escritos "íntimos", por "Herr" Spínola... A mania do monóculo, que não era nada prático, era um "toque prussiano", que lhe ficou dos tempos em que, ainda jovem oficial, aos 31 anos, em 1941, integrou missão de estudo do Exército português para uma visita à Escola de Carros de Combate do Exército alemão e à frente germano-soviética... É como um brinquinho na orelha hoje em dia...
(...) "De visita aos trabalhos da estrada Bambadinca-Xime, esteve aqui de passagem , no destacamento da ponte do Rio Udunduma, com uma matilha de 'Cães Grandes' atrás, Sexa General António de Spínola, Governador-Geral e Comandante-Chefe (vulgo, o Homem Grande). Eu gosto mais de chamar-lhe Herr Spínola, 'tout court'. De monóculo, luvas pretas e pingalim, dá-me sempre a impressão de ser um fantasma da II Guerra Mundial, um sobrevivmente da Wermacht nazi." (...) ("Diário de um tuga", 3/2/1971.)
Hoje, que ele já não está fisicamente entre nós, não esqueço (e estou-lhe grato por esse papel) que ele ficará para a história de Portugal como um elemento (decisivo, tal como Costa Gomes) para a transição do regime autoritário do Estado Novo para a nossa atual democracia... Portugal tem, desde o liberalismo, uma já longa tradição democrática, interrompida pela Ditadura Militar e o Estado Novo (1926/74).
Cultivo o respeito pelas figuras da nossa história, com todas as suas misérias e grandezas... Umas mais do que outras... LG
... de resto, como eu tenho insistido deste o início do blogue, em 23/4/204, a história (incluindo a história da "nossa" guerra) não se escreve a preto e branco... Ab. LG
Na altura da dita visita de S. Exa. à frente russa (Leningrado), era Tenente da GNR,oficial às ordens do General Monteiro de Barros (seu sogro).
Forte abraço.
VP
Continuação :
S. Exa. não era, pois,integrante da Missão do Exércto Português à Frente Oriental.
Forte abraço.
VP
Meu amigo Francisco,
Pregaste-me a partida de referir a minha ida a Leça, situação clandestina que eu tinha escondido, e que vai provocar-me engulhos, talvez a carecerem de repetição, com outros peixes sápidos a enriquecerem o palato.
Sobre o teu texto, tenho que referir que concordo na generalidade, e que faço uma apreciação similar sobre a acção de Spínola. Chego até a ser mais crítico, o que, tratando-se de figura histórica, não deve ser poupado.
Respigo uma ideia que referes: a guerra de guerrilha «só se poderá vencer-se (por via militar) se forem criadas condições sociais e políticas que possam retirar argumentos aos defensores dessa via armada... e às potências que apoiam essa solução». Ora, é disso que tenho falado sobre a situação que se vivia em Angola, tanto, que a URSS tinha retirado o apoio ao MPLA, que os EUA tinham retirado o apoio à UPA/FNLA, e que a Unita era um movimento andrajoso apoiado pelos portugueses para combaterem algum núcleo do M que persistisse nas matas do leste. Em Angola respirava-se bom ambiente, e a economia tinha permitido a integração de uma boa parte dos elementos do M. Na Guiné, o nosso menino de Feijãoquito já fez algumas referências a propósito.
Um grande abraço
JD
Nota aalta para o texto do Francisco Baptista, sem criar crispações onde o autor põe a nu as suas opiniões pessoais.
Parabéns Francisco escrever assim sobre uma personagem ou um "mito": é obra só para os superdotados.
Um abraço
Colaço.
A missão em que participou o então Tenente de Cavalaria Antonio de Spínola,(missão de estudo),saiu de Portugal em Outubro de 41,regrssando em Novembro do mesmo ano, antes portanto,da Missão do Exército Português à Frente Oriental em 1942.
Forte abraço.
VP
É absolutamente normal que se sustentem opiniões diversas sobre figuras que foram motores da história, basta ouvir o que aparece escrito sobre De Gaule, Churchill, Estaline, Guevara e por aí adiante. O Francisco Baptista (pessoa que eu muito estimo) dá a sua opinião sobre Spínola e o seu papel na Guné e em Portugal. Não me vou pronunciar sobre a perspectiva geral aqui bem explanada mas não queria deixar de chamar a atenção para dois aspectos bem relevantes : a Operação Mar Verde e Spínola no centro da revolução. Relativamente à Operação Mar Verde discordo que se diga "...somente...a libertação de 25 combatentes portugueses", porque mesmo desconhecendo a posição hierárquica deste objectivo no âmbito da planificação da operação, este êxito, só por si, justificou aquela operação. Quanto ao papel de Spínola, no centro da revolução do 25 de Abril, não posso deixar de remeter para um plano secundário algumas opções (erradas ? ) que tomou, para realçar a coragem que assumiu ao publicar o Portugal e o Futuro, documento que não só abalou o regime como serviu de guião aos jovens capitães.
Um abração
Carvalho de Mampatá
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